Uma coisa é a História, outra bem diversa é a percepção da História implantada no imaginário. A maioria das pessoas não lê livros de divulgação histórica, pelo que a sua informação vem muitas vezes dos filmes de Hollywood – assim, para muitos, a Revolução de Outubro será a imagem que dela é dada no filme “Reds” (1981), de Warren Beatty, cuja fonte de inspiração foi Dez dias que abalaram o mundo (1919), do jornalista americano John Reed (1887-1920), que é, de longe, o mais popular relato – pelo menos no Ocidente — sobre estes eventos.

A Revolução pelos olhos de John Reed

Reed assistiu em directo à revolução mas não era um historiador e “aterrou” em Petrogrado no início de Setembro, “sem qualquer conhecimento da língua ou experiência da sua cultura política e sem contactos pessoais no Governo, na sociedade ou no movimento revolucionário” (Rappaport). Mais relevante ainda, Reed não tinha um ponto de vista neutro: era um entusiasta do socialismo, era um opositor da guerra com a Alemanha e estava em Petrogrado ao serviço das publicações socialistas The Masses e New York Call. Quando regressou aos EUA, em 1918, fez discursos apaixonados em defesa da Revolução Bolchevique, manifestando a esperança que ela não tardasse a chegar ao seu país. As suas posições radicais – nomeadamente as reservas expressas em relação à democracia ocidental e a defesa da ditadura do proletariado – levaram a que fosse expulso do Socialist Party of America em Agosto de 1919, ao que Reed e outros radicais da ala esquerda do partido responderam com a fundação do Communist Labor Party of America.

John Reed, ca. 1910-15

Nem por isso, Reed deixava de ser um jornalista talentoso e suficientemente honesto para admitir no prefácio de Dez dias que abalaram o mundo que “as suas simpatias não eram neutras”. E a simpatia de Reed pela causa revolucionária não o impediu de exprimir reservas em relação a alguns aspectos da Revolução, sobretudo quando regressou à Rússia em 1919 e se apercebeu da actuação da Cheka, a polícia política soviética (antecessora da NKVD e do KGB) e quando, em 1920, no II Congresso do Comintern, em Moscovo, assistiu à actuação intimidatória de Grigory Zinoviev. Os atritos subsequentes com Zinoviev aumentaram as suas dúvidas quanto ao caminho tomado pela Revolução.

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Todavia, Reed, que faleceu em Moscovo em Outubro de 1920, recebeu do regime soviético a honra de ser sepultado como um herói, na Muralha do Kremlin, um túmulo reservado a altas figuras do movimento comunista e a que só mais dois americanos tiveram direito: o activista Bill Hayward (1869-1928), fundador dos Industrial Workers of the World, e Charles Ruthenberg (1882-1927), fundador do Partido Comunista dos EUA.

Funeral de John Reed, Moscovo, Outubro de 1920

Mas a informação mais relevante sobre a isenção de Dez dias que abalaram o mundo vem da apreciação ao livro feita por Lenin, expressa na introdução que escreveu em 1919 para uma reedição da obra: “Li-o com grande interesse e sem que a atenção afrouxasse por um instante. Recomendo-o sem reservas a todos os trabalhadores do mundo. Eis um livro que gostaria de ver impresso em milhões de exemplares e ver traduzido em todas as línguas. Fornece um relato verídico e vívido destes eventos tão determinantes para a compreensão do que realmente é a Revolução Proletária e a Ditadura do Proletariado”.

Quando Stalin ascendeu ao poder em 1924, após a morte de Lenin, manifestou o seu desagrado com o livro, pois mostrava a Revolução como obra de Lenin e Trotsky (que entretanto se tornara no seu maior inimigo) e apenas mencionava o seu nome en passant. Stalin determinou a proibição do livro, que só voltaria a circular na URSS após a sua morte em 1953.

Capa da tradução alemã de Dez dias que abalaram o mundo, publicada em 1922 pelo Comintern

O ano de 1917 visto pela comunidade estrangeira de Petrogrado

Em Apanhados pela Revolução: Petrogrado 1917 (Temas & Debates), Helen Rappaport, uma especialista na história da Rússia – dela pode também ler-se em português Os últimos dias dos Romanov (Alêtheia), um vívido e arrepiante relato dos eventos que desembocaram no massacre da família imperial numa cave de Ekaterinenburg, em 1918 – escolheu dar voz aos muitos estrangeiros – sobretudo britânicos, americanos e franceses – que estavam em Petrogrado como diplomatas, funcionários de bancos e empresas, jornalistas e espiões e cujas cartas, diários, memórias, artigos de jornal e livros fornecem uma visão alternativa à perspectiva de John Reed. Rappaport não só conduziu um exaustivo trabalho de pesquisa como conseguiu cerzir esta diversidade de relatos numa narrativa que se lê “com grande interesse e sem que a atenção afrouxe por um instante”, mas que dificilmente agradaria a Lenin.

Florence Harper, uma das vozes escolhidas por Rappaport para relatar o ano de 1917 em Petrogrado. Harper era jornalista, mas também desenvolvia actividade como enfermeira num hospital de campanha

A edição portuguesa substituiu o índice remissivo de 25 páginas da edição original por um índice onomástico de sete páginas. O “Glossário de testemunhas oculares” é muito útil, pois permite que o leitor identifique facilmente os autores dos relatos. A tradução, escorreita, é de Artur Lopes Cardoso.

“Apanhados pela Revolução”, de Helen Rappaport (Temas e Debates)

A Revolução de Fevereiro

A Revolução de Outubro não era inevitável. Na verdade, nem sequer a Revolução de Fevereiro, que levara à abdicação do czar e à constituição do governo provisório de Kerensky, o fora. Depreende-se do livro de Rappaport que o misto de conservadorismo rígido e indiferença arrogante com que Nicolau II conduziu os destinos da Rússia foi a principal razão para o seu fim, uma perspectiva também patente em Os últimos dias de Nicolau II, de Robert Service, publicado recentemente pela Desassossego (ver Robert Service: “Nicolau II era esperto, dissimulado e fanático”).

A “recepção sumptuosa para oitenta membros do corpo diplomático no salão de baile do Palácio de Catarina, em Tsarskoe Selo”, no dia de Ano Novo de 1917, que foi também a última aparição pública de Nicolau II, é bem sintomática do que estava para vir, pois sob a profusão de candelabros e espelhos dourados e as amabilidades distribuídas pelo czar a inquietação era bem visível. O primeiro-secretário da embaixada americana observou que o czar parecia “mais um autómato que precisava de corda do que um autocrata em condições de esmagar qualquer resistência que encontrasse” e o embaixador francês Maurice Paléologue reparou que “entre todo o ilustre e magnífico séquito do czar não havia um único rosto que não denotasse ansiedade”.

O Hotel Astoria acolhia numerosos elementos da elite estrangeira em Petrogrado e várias das testemunhas do livro de Rappaport estavam nele hospedadas

A Revolução de Fevereiro foi, em última análise, espoletada pela fome e esta resultou não tanto da falta generalizada de alimentos na Rússia (embora, claro, o facto de a economia estar debilitada por três anos guerra não ajudasse) como da incapacidade da administração czarista, minada pela incompetência e corrupção, em fazer chegar os alimentos a Petrogrado. A maioria dos manifestantes e grevistas que afluíam às ruas e praças não tinha motivações políticas e gritava “Dai-nos pão e voltaremos para os nossos postos e trabalharemos”. Os socialistas captaram bem o sentimento popular quando fizeram imprimir panfletos em que se lia “Nós pedimos pão, destes-nos chumbo”.

Manifestação, Petrogrado, Fevereiro de 1917

Mas enquanto as greves se multiplicavam e a agitação nas ruas crescia, o czar continuava alheado no quartel-general do Exército russo, em Mogilev, a 800 Km de Petrogrado (embora não fosse um estratega e a sua presença ali fosse meramente simbólica), ao mesmo tempo que a czarina lhe descrevia, por carta, os tumultos como “um movimento de desordeiros”, “rapazes e raparigas que andam a correr pelas ruas, a gritar que não têm pão, só para excitar a população”.

A população não tinha efectivamente pão e alguns dos residentes estrangeiros chegaram a contratar criadas extra cuja única função era irem para as longas filas para aquisição de bens e outros produtos de primeira necessidade. No meio desta penúria, os teatros, os salões de baile e as festas da aristocracia prosseguiam, tentando dar uma ilusão de normalidade.

Quando os acontecimentos começaram a ficar fora de controlo, o czar respondeu com mais repressão e o embaixador britânico, Sir George Buchanan, percebeu rapidamente que “estratégias draconianas e repressivas […] não resolveriam nada”, enquanto Maurice Paléologue reflectia: “Em 1789, 1830 e 1848, três dinastias francesas foram derrubadas porque só se aperceberam demasiado tarde do significado e força do movimento que se opunha a elas”.

Durante a Revolução de Fevereiro o Hotel Astoria foi palco de cenas de violência, pois sobre o seu telhado foi instalada uma metralhadora da polícia que disparou sobre os manifestantes. A turba entrou no hotel, fez vários mortos e entregou-se ao saque. Nesta foto do átrio do hotel após a pilhagem, pode ver-se a carpete manchada de sangue, no extremo esquerdo

Quando as tropas enviadas para reprimir as manifestações se passaram para o lado dos revoltosos, as autoridades perderam o controlo da situação e o “ódio à antiga ordem” tomou conta das ruas. As lojas e as casas dos ricos e poderosos foram assaltadas e pilhadas e muitos aristocratas foram linchados pela turba ou executados sumariamente.

A 14 de Março (1 de Março pelo calendário juliano) o czar viu-se forçado a abdicar.

No meio da tragédia, Rappaport deixa lugar para um apontamento hilariante: quando a família do conde Vladimir Freedericksz, ministro da corte imperial, solicitou abrigo ao embaixador britânico, após a sua casa ter sido saqueada, Lady Buchanan, a esposa do embaixador retorquiu: “Não sei por que razão deveria acolher a condessa Freedericksz quando ela não me convidou uma vez sequer para sua casa ou para o seu camarote na Ópera”.

Queima de símbolos czaristas, Petrogrado, 27 de Fevereiro de 1917

Euforia revolucionária

Nem todos os estrangeiros se aperceberam do que realmente se passara e alguns deixaram observações de extraordinária candura: “Esta tremenda mudança foi forjada sem excessos, sem insultos às mulheres, sem qualquer crueldade”; “As multidões não são tão barulhentas sequer como as que vemos numas eleições inglesas”; “A vida normal fora interrompida por pouco mais de um dia”; outros registavam como tinha sido bom viver “nestes dias maravilhosos”.

Após o triunfo inesperadamente rápido da Revolução de Fevereiro e a abdicação do czar, “a Rússia tinha de regressar ao trabalho, mas a igualdade acabada de descobrir […] tinha, tal como uma bebida forte, subido à cabeça das pessoas. Cheios de expectativas impossíveis e entregues a sonhos irracionais de dias de trabalho grandemente reduzidos e salários enormemente aumentados”, os operários levaram à redução dramática da actividade ou até à paralisação das indústrias, incluindo as que eram vitais ao esforço de guerra.

Ao mesmo tempo, brotavam espontaneamente comités auto-nomeados que pretendiam controlar os mais variados e ínfimos aspectos da vida e tirar daí dividendos. A justiça passou a ser administrada sumariamente pela turba: uma acusação infundada do roubo de uma carteira num eléctrico podia redundar facilmente num linchamento.

Governo Provisório, Março de 1917

Lenin entra em cena

A 16 de Abril (3 de Abril pelo calendário juliano a que a Rússia continuava anacronicamente presa) desembarcava na Estação Finlândia, uma figura que iria alterar o rumo dos acontecimentos. Lenin passara boa parte dos últimos 17 anos exilado no Ocidente e só conseguira chegar a Petrogrado porque a Alemanha, sabendo da sua determinação em retirar a Rússia do conflito, providenciara o seu transporte a partir de Zurique (a viagem é detalhadamente descrita por Catherine Merridale em Lenine no comboio, publicado recentemente pela Temas & Debates – ver Há 100 anos, uma viagem de comboio de Lenin mudou o mundo)

Assim que chegou, Lenin começou a incitar a multidão à violência: “Quereis enriquecer? Há dinheiro nos bancos. Quereis palácios? Ide pra onde vos apetecer […] Não quereis caminhar na lama? Parai aqueles carros! […] Tudo isto vos pertence – é a vossa vez – agora estais no poder”. Com discursos como este, é natural que as ruas de Petrogrado passassem a ser percorridas por multidões entoando slogans joviais como “Vamos pilhar! Vamos cortar gargantas! Vamos estripá-los!”

Os diplomatas estrangeiros foram lestos em traçar o perfil de Lenin: para o embaixador francês, era uma combinação de “sonhador utópico e fanático, profeta e metafísico, cego a qualquer ideia do impossível ou do absurdo, alheio a todos os sentimentos de justiça ou piedade, violento, maquiavélico e louco de vaidade […] uma mistura de Savonarola e Marat, Blanqui e Bakunin”. O jornalista americano Arno Dosch-Fleurot reconheceu rapidamente a eficácia de Lenin. “Regressara havia pouco mais de três semanas e o efeito das suas actividades podia ser visto em todos os lados” e trouxera algo que até então faltara à revolução: “violência com uma doutrina”.

O seu principal adversário era Aleksandr Kerensky, a principal figura do Governo Provisório e o único elo de ligação entre os deputados de tendência moderada da Duma (Parlamento) e o Soviete de Petrogrado, do qual era membro.

Kerensky, de pé no automóvel, discursa aos soldados,1917

Ao ouvir Kerensky discursar, a 21 de Julho, Jessie Kenney, uma sufragista de passagem por Petrogrado, concluiu: “Fora um excelente advogado, era um entusiasta, um orador eloquente, mas não tinha o domínio de si mesmo que os outros possuíam […] Era perfeitamente óbvio que não era um adversário à altura de Lenin, que, implacável e dominador, passaria impiedosamente por cima de tudo e de todos que se cruzassem no seu caminho”. A jornalista Retha Dorr tinha opinião similar: a Kerensky não faltava magnetismo, mas não seria capaz de “segurar aquela enorme populaça russa – desorganizada, rude, turbulenta e ávida – pelo cachaço e forçá-la a ouvir a voz da razão”.

O Governo liderado por Kerensky, Junho de 1917

A Revolução de Outubro

Entretanto, o caos continuava a crescer em Petrogrado, apesar dos esforços do Governo Provisório para restabelecer a ordem – um americano que vivia em Petrogrado há 18 anos resumia assim a situação em meados de 1917: é “a pior, a mais miserável, a mais fedorenta de todas as cidades da Europa, as ruas são más, a mão-de-obra inútil, não há saneamento, não podemos beber a água, os quartos estão cheios de percevejos”. Um médico americano completava o quadro, descrevendo os russos “como um grupo de crianças que, após um longo período de opressão, adquiriam de súbito uma liberdade que se transformou em indisciplina […] A ideia suprema do povo de Petrogrado parecia ser não fazer nada”.

O economista americano Raymond Robbins fez um prognóstico certeiro quanto à evolução dos acontecimentos, baseado nas filas para aquisição de alimentos: “Se ficarem menores, o Governo sobrevive; se aumentarem, morrerá”. Tal como acontecera na Revolução de Fevereiro, não seriam as convicções ideológicas das massas a ditar o rumo dos acontecimentos, mas a satisfação das necessidades básicas – numa analogia com a famosa frase da campanha eleitoral americana de 1992, poderia dizer-se “São as filas do pão, estúpido!”.

Fila para comprar pão, Petrogrado, 1917

Em Julho, manifestações de operários e soldados exigiram a entrega do poder ao Soviete de Petrogrado e o Governo respondeu lançando as tropas contra a multidão e ordenando a prisão de Lenin, que teve de disfarçar-se e desaparecer de circulação. Pela mesma altura, o general Lavr Kornilov, comandante supremo do Exército russo, decidiu marchar sobre Petrogrado a fim de esmagar definitivamente o Soviete, mas a tentativa gorou-se devido aos operários bolcheviques que sabotaram as linhas férreas e os comboios que deveriam conduzir as suas tropas. O incidente veio minar ainda mais a autoridade do Governo, devido à posição ambígua assumida por Kerensky durante o episódio Kornilov, “dividido entre o seu medo de ajudar um movimento contra-revolucionário e o seu desejo sincero de afirmar a autoridade do Governo”, como observou lucidamente um conselheiro da embaixada britânica.

Petrogrado, Julho de 1917: Exército dispara sobre manifestação pró-bolchevique

Enquanto muitos estrangeiros começavam a abandonar a cada vez mais caótica e insalubre Petrogrado, a 19 de Agosto chegava o escritor Somerset Maugham, enviado pelos serviços secretos britânicos com a missão de evitar a revolução bolchevique, uma tarefa obviamente bem além das suas capacidades e meios. 18 dias depois chegava John Reed, com a sua companheira, a jornalista feminista Louise Bryant.

A impressão de Maugham sobre os bolcheviques não podia ser mais diversa da de Reed: ficou pasmado com a disponibilidade das massas para ouvirem longos discursos proferidos “com grande fluência, mas um fervor monótono” por oradores que poderíamos ver “a discursar no comício do candidato radical num círculo eleitoral do Sul de Londres” e com o facto de criaturas tão medíocres estarem “a dirigir este vasto império”.

Quando ouviu Trotsky discursar – prometendo libertação da “escravatura em relação ao governo capitalista de Kerensky, o instrumento dos imperialistas britânicos e franceses” e asseverando que a Revolução Russa estava a atingir o ponto em que a Revolução Francesa se encontrara “quando os jacobinos ergueram a guilhotina” –, o jornalista Arno Dosch-Fleurot ficou convencido de que “haveria uma revolução bolchevique bem sucedida”. Leighton Rogers, funcionário da delegação do National City Bank também ficou impressionado com Trotsky: “é o rei dos agitadores; podia gerar um tumulto num cemitério” e “[fala com] o entusiasmo e a verborreia de um fanático incapaz de acompanhar o fluxo das suas ideias e que não se preocupa com o rigor”.

Perante o crescendo da retórica bolchevique, Kerensky mostrava-se cada vez mais incapaz de agir – para Maugham, ele dava mostras de ter “mais medo de fazer a coisa errada do que desejo de fazer a certa”. Quando a 7 de Novembro (25 de Outubro pelo calendário juliano) os bolcheviques passaram à acção, o Governo Provisório apenas teve do seu lado os cadetes, miúdos de quinze e dezasseis anos que foram facilmente eliminados. Em pouco tempo a Rússia ficou – nas palavras do telegrama enviado para Londres pelo embaixador britânico – “nas mãos de um pequeno grupo de extremistas, que estão resolvidos a impor a sua vontade ao país por métodos terroristas”.

O Palácio de Inverno, onde estava instalado o Governo Provisório

Nos dias seguintes, o Instituto Smolny, que era o centro de operações do Soviete de Petrogrado, tornou-se num “caldeirão de debate político, rivalidades e invectivas”, que uma residente francesa na cidade descreveu assim: “reuniões com um número sem fim de grupos cindidos ou sessões plenárias, votações intermináveis de pontos de ordem ou correcções de pontos de ordem. Debates inúteis […] que se arrastam sem interrupção, durante todo o dia e toda a noite. Uma torrente sem fim de oradores cujas mãos estão presas pelos grilhões do dogmas partidários e só conseguem ver as coisas através dos seus olhos mortos de teóricos desligados da realidade”.

Assembleia do Soviete de Petrogrado, 1917

O adido militar da embaixada francesa tinha opinião análoga. “Fundam-se partidos, criam-se cartéis […], são formados comités e também assembleias de comités e comités de assembleias: todos afirmam estar a salvar o país e o mundo, mas todos os dias ouvimos falar em novas cisões e numa qualquer reconciliação apressada”.

Lenin frente ao Instituto Smolny; quadro de Isaak Brodsky

Nos seus discursos antes da Revolução de Outubro, Trotsky fizera promessas miríficas: “iremos dar-vos: em primeiro lugar, paz, em segundo, pão; e em terceiro, terra. Sim vamos tirar toda a terra aos ricos e dividi-la entre os camponeses; e vamos reduzir as horas de trabalho, meus camaradas das fábricas, para quatro, com o dobro do salário que recebeis agora. E vereis os criminosos do antigo regime e do governo autocrático de Kerensky serem castigados, juntamente com os capitalistas detentores das propriedades que vos escravizam a vós e aos camponeses […] Proletários de todo o mundo, uni-vos: vós não tendes nada a perder a não ser os vossos grilhões!”.

Cartaz das eleições de 12 de Novembro

Todavia, as eleições de 12 de Novembro, a que concorreram 19 partidos, deram aos bolcheviques apenas 175 dos 715 lugares da Assembleia constituinte, sendo o segundo partido mais votado após os Socialistas Revolucionários, com 370 lugares. Mas Lenin não estava disposto a aceitar este resultado inesperado – adiou a abertura dos trabalhos da Assembleia de 28 de Novembro para 5 de Janeiro e quando ela rejeitou os decretos propostos pelos bolcheviques, ordenou a sua dissolução. Uns dias antes, a 31 de Dezembro, Leighton Rogers escrevia numa carta para a família. “É terrível pensar no futuro da Rússia. Não só está fora da guerra como estará fora do nosso mundo durante muitos anos vindouros”.

O que Rogers dificilmente seria capaz de prever é que passariam 72 anos até que a Rússia regressasse ao mundo.