E se fosse você a escrever a Constituição? Se pudesse escolher como se mede o sucesso da economia? Se as empresas não trabalhassem só para maximizar lucros? E se o dinheiro não fosse o objetivo? Aos 43 anos, Christian Felber viaja pelo mundo a tentar transformar o capitalismo com a sua economia para o bem comum, onde as empresas se avaliam por mais do que os lucros que conseguem no final do ano. Utopia? Com mais de duas mil empresas a aderir aos seus princípios, em 10 países, garante que tem provas que é real.
Quando se dedica a um país começa por ler a Constituição e ver o que nela está consagrada. A desigualdade, garante, não está proibida, mas também não pode ser ilimitada. A solidariedade está lá consagrada, nalguns casos de forma literal. A soberania, diz, é dar o poder aos cidadãos acima de tudo. É o que acontece? “Nesta altura é só uma palavra, sem significado.”
O austríaco, professor de economia em Viena, diz que esta é uma dessas alturas em que a solidariedade deveria aparecer, referindo-se em especial ao caso da Grécia e da sua muito elevada dívida pública, e lembra a solidariedade mostrada em 1956 por um grupo de países que perdoou metade da dívida da Alemanha, na sequência da saída da Segunda Guerra Mundial. Em troca, a Grécia – e não só – têm de abrir completamente o seu sistema fiscal: transparência e coordenação total, para que os mais ricos não escondam o seu património. Felber esteve em Portugal a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, onde participou na conferência Os Direitos Humanos e os Desafios do Século XXI.
Como avalia a situação atual?
Estamos a falar de uma situação de emergência, porque temos rácios de dívida pública muito elevados em níveis pouco habituais. Estamos a cortar despesas sociais com custos na qualidade de vida, na segurança social e coesão social. Eu faço o que faço sempre. Investigo que valores estão nas constituições dos países da União Europeia, que valores estão nos tratados europeus e quais são as lições históricas, e elas, muito claramente, consagram a solidariedade e a ideia de que tem de se evitar um excesso de desigualdade.
Agora temos um aumento da desigualdade na Europa, mas com um pouco de solidariedade, o que já fizemos com sucesso no passado, podemos reduzir a dívida pública destes países para um nível que a deixe fora de perigo, abaixo dos 60% exigidos no Tratado de Maastricht.
Um esforço de grupo como o clube de Paris?
Sim. Veja o que aconteceu em 1956 com a Alemanha. Foram 20 ou mais países que se juntaram, incluindo a Grécia, e cortaram a dívida externa da Alemanha para metade, e agora poderíamos fazer o mesmo. Agora até estamos em melhores condições, porque em 1956 a propriedade privada tinha sido destruída em muitos países, mas nesta altura temos um rácio de propriedade privada muito elevado. Nas contas do Banco Central Europeu, vale cinco vezes o PIB. Se taxarmos 1% da propriedade privada, conseguiríamos reduzir a dívida pública em 5%. Se fossem 10 anos desta taxa, poderíamos reduzi-la a 50%.
Mas quem pagaria?
Aqueles que têm tanta riqueza que não a usam para o bem comum. Várias constituições obrigam ao uso da riqueza em prol do bem comum, da propriedade em prol do bem comum. Eu sei que, por exemplo, nas constituições de Espanha e Alemanha diz literalmente que podemos ter propriedade privada, que podemos ter desigualdade, mas ao mesmo tempo a propriedade privada tem de servir o bem comum, o que já não é o caso, porque se for usada para a especulação não há uso para o bem comum. Se for usada para pagar dívida pública, é mais coerente com as nossas constituições. Há várias constituições que dizem também que a propriedade privada não pode ser ilimitada. É bom que exista propriedade privada, é bom que exista desigualdade, mas não pode haver desigualdade ilimitada.
Quem lideraria o processo?
Seria através da União Europeia. Acho que está na altura de nos lembrarmos do que aconteceu na Alemanha em 1956. Foi a Alemanha que eliminou uma parte da população grega na segunda guerra mundial. É altura de nos lembrarmos disso, não como vingança, mas como um tempo em que a solidariedade foi necessária e foi praticada. Penso que chegámos novamente à altura em que é preciso solidariedade.
Esse perdão de dívida deve ser feito com ou sem condições associadas?
Teria que haver um preço. Não concordo de todo com o sistema fiscal de Grécia e Espanha – e de outros países – e o preço teria de ser total transparência e coordenação fiscal completa como condição para haver solidariedade. Caso contrário, seria um convite aos mais ricos para esconderem novamente a sua riqueza.
Essa seria a única condição? E o que acha da direção nas políticas por atores externos, como a troika na Grécia?
Em princípio sem mais condições. Sem ajustamento estrutural e sem privatizações, mas poderíamos falar dos critérios de convergência. Não nos critérios orçamentais que já existem, mas sim nos critérios de convergência associados e ambientais. Se a União Europeia já tem critérios destes acho que é legítimo apertar com todos os países para evitar situações de dumping ou de falta de solidariedade nas políticas económicas dos vários Estados-membros.
Para além da dívida, o que acha que está a falhar na União Europeia?
Na União Europeia continuam a misturar meios com objetivos, no que diz respeito à economia. O PIB [Produto Interno Bruto] é o melhor exemplo. A defesa do TTIP [tratado transatlântico de comércio que está a ser negociado entre a UE e os EUA] é feita principalmente com o impacto no PIB, apesar de ser homeopático. Na Alemanha, o Governo fez um inquérito a perguntar às pessoas se querem continuar a ter o PIB como medida de sucesso económico ou se preferem ter um indicador mais abrangente como o Gross National Happiness da OCDE ou um produto do Bem Comum, o resultado foi que apenas 18% queriam manter o PIB. 67% votaram a favor de substituir o PIB.
A União Europeia não leva isto a sério, continua a argumentar que precisamos deste comércio livre, apesar de aumentar a desigualdade, de eliminar a produção agrícola de menor escala, apesar de destruir a diversidade cultural, apesar de não respeitar os direitos humanos. Precisamos de mais participação no processo democrático. A União Europeia ainda não aprendeu com os desastres anteriores.
Como se democratiza mais o processo europeu?
Deixando as pessoas escrever e votar o tratado fundamental, não interessa se se chama Constituição ou Tratado. Depois disso, aposto, porque perguntei a mais de 50 mil pessoas em 25 países diferentes até agora, que não existiriam bancos demasiado grandes para falir, nem sequer existiram bancos orientados para o lucro. E, atenção, serem privados não é o problema. Têm é de ser orientados para investimentos reais, que passassem na avaliação do bem comum, que limitaria a desigualdade, reduziria a dívida pública e conservariam a agricultura de pequena dimensão.
Quais são os melhores indicadores para além do PIB?
O Better life índex, da OCDE, Happy Planet Index ou o Gross National Happiness, mas nós temos uma proposta concreta. A nossa ideia é de um indicador que seria composto pelas pessoas que, nas suas comunidades, definiriam os vinte ingredientes mais importantes para medir a qualidade de vida. Esse seria o indicador local. Fazendo o mesmo processo de síntese, passar-se-ia o resultado para uma assembleia nacional ou europeia, que veria quais seriam os mais frequentes e com mais apoio e deixariam algumas alternativas para os cidadãos tomarem uma decisão e assim construírem um indicador, que até poderia ser alterado no futuro se as prioridades mudassem.
Tem estudado muito as constituições…
Queria saber se estipulam o bem comum. É esse o propósito.
…e defende mudanças a essas constituições?
A nossa proposta de longo prazo é que as constituições venham a ser escritas pelos cidadãos. Os parlamentos aprovariam leis, mas com base em constituições escritas pelos cidadãos.
E como é que isso é possível?
Através de assembleias locais, que colocariam as questões fulcrais sobre as constituições, ou sobre os tratados europeus. Esta primeira parte do processo demoraria um ano. Depois seriam tomadas decisões por forma a delegar numa assembleia nacional ou europeia para que, então, fossem tomadas as decisões finais sobre os limites da desigualdade. No final deste processo, as decisões finais seriam colocadas a referendo e o resultado disso seria a futura Constituição do país.
Está a defender a limitação do poder dos parlamentos?
Certamente que isto limitaria o poder dos parlamentos, mas não o eliminaria. Apenas reequilibraria a balança do poder entre os cidadãos e os seus representantes. Estamos numa altura em que os representantes têm virtualmente todo o poder e os cidadãos praticamente nenhum. Acho que esse é o problema fundamental. Soberania quer dizer estar acima de tudo. Nesta altura é só uma palavra, sem significado. Se tomado literalmente, colocaríamos este poder constitutivo acima de tudo, do Parlamento e do Governo, mas não para fazer leis ou governar, apenas para escrever constituições.
O poder direto dos cidadãos seria limitado à Constituição…
Sim, mas, caso não confiem no Governo e no Parlamento, podem corrigir ou complementar esse poder.
Isso não deve ser feito através de eleições?
Sim, devia. As eleições continuariam a existir e a funcionar da mesma forma, elegendo o poder legislativo e executivo. Isto seria apenas dar um poder adicional dos cidadãos.
Fale-me do seu movimento. Que resposta está a ter?
O nosso crescimento está a ser rápido e sustentado. Temos agora mais de 2000 empresas que aderiram. Destas, 350, de 10 países diferentes, já adotaram voluntariamente os balanços do bem comum. As constituições de Espanha e Alemanha obrigam a que a propriedade sirva o bem comum. O que falta numa constituição democrática é que aqueles que são mais coerentes com os princípios do bem comum têm um melhor tratamento do que as que não o fazem.
Que tipo de melhor tratamento?
Nos impostos, nas taxas, prioridade nos contratos públicos, melhores condições de financiamento dos bancos… Também estamos a criar um banco para o bem comum.
Mas como é que avaliam esses princípios de forma prática?
Primeiro avaliamos o impacto do investimento no ambiente, no ecossistema, na coesão social e distribuição, na dignidade humana e direitos humanos, na Democracia. Apenas se nenhuma destas propriedades comuns for expropriada é que o processo pode avançar para a análise financeira. Se passar estas duas análises é que recebe financiamento, e quanto melhor pontuação tiver na primeira análise melhores as condições desse financiamento.
O objetivo é acabar com o capitalismo?
É transformá-lo. As instituições continuariam a ser as mesmas. Nós trabalhamos com empresas, com municípios, com universidades, até trabalhamos com bancos e bolsas de valores. Estas instituições podem continuar, mas algumas devem transformar-se eticamente. Isto quer dizer que a principal orientação da empresa deixa de ser a maximização dos meios [dinheiro] e passa a ser alcançar os objetivos [melhorar a qualidade de vida].
Isto é o fundamental do modelo. De acordo com as constituições, o objetivo da economia é proporcionar uma boa vida, com qualidade, felicidade e satisfação. O dinheiro é só o meio para o alcançar. Atualmente, medimos o sucesso na economia com lucros financeiros, com o retorno sobre os investimentos e com o PIB e estes três indicadores só medem a disponibilidade dos meios, não avaliam se o objetivo é atingido. Se o objetivo é o bem comum, então temos que mudar para um produto de bem comum, para um balanço do bem comum e para uma avaliação dos investimentos à luz do bem comum.
Já conseguiram mudar a forma de atuação de um banco, por exemplo?
Até agora temos três bancos que aderiram ao balanço à luz do bem comum [a primeira fase]. Mas já estão a fazer a mudança de orientação.
De onde?
Alemanha e Áustria. Dois deles são cooperativas, um deles com quase 800 empregados, ou seja, um banco grande, e o outro com 300 pessoas. Nas suas raízes, ambos eram muito orientados para o bem comum por isso não é nada de novo para eles, mas sim o relembrar da sua história. Além disso, desde a década de 70 que estão a surgir bancos éticos que praticam quase 100% do que estamos a propor.
Como vê temos provas empíricas. Existem bancos éticos e regras históricas sobre as cooperativas que mostram que aquilo que estamos a propor não é nada de novo, muito menos utópico. Agora, isto depende das regras, do enquadramento legal que exista na economia e que estabeleça que tipo de bancos pode ser bem-sucedido.
Já conseguiram provocar a mudança na lei?
Não é um dos nossos primeiros objetivos, é algo mais para o longo prazo e nós somos um movimento jovem, começámos há apenas cinco anos. Ainda não mudamos as regras legais do jogo, mas já conseguimos levantar estes temas junto dos corpos políticos eleitos, desde os municípios até ao Parlamento Europeu e todos eles decidiram que as empresas com este tipo de balanço e municípios para o bem comum têm vantagem nos contratos públicos. Agora, temos o modelo e o balanço em dois programas governamentais em duas regiões na Alemanha e na Áustria.
Quais são os países onde têm mais procura?
Alemanha e Áustria, Itália e Espanha.
E fora da União Europeia?
Temos grupos locais já na América Latina. Em setembro vamos começar a trabalhar nos Estados Unidos. Depois de nos focarmos conscientemente na União Europeia.
Acha que os EUA vão ser um desafio maior?
Estou a contar com isso. Mas já fui surpreendido muitas vezes na minha vida e conto ser surpreendido mais vezes.