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No final do ano passado assistiu-se a uma situação inédita no internato médico em Portugal: 114 jovens médicos ficaram de fora do concurso que lhes permitiria concluir a especialização. Isto levou os estudantes de Medicina, com o apoio da Ordem e de alguns diretores de faculdades, a defenderem a redução do número de vagas nos cursos de Medicina. Será que esta é a solução para o problema da falta de capacidade atual para formar na especialidade todos os médicos que terminam o curso? A resposta não deixa grande margem para dúvidas: não. Ainda assim, há quem continue a defendê-la.
114
No concurso de especialidade para iniciar funções a 1 de janeiro de 2016 ficaram de fora 114 médicos que o Governo permitiu que pudessem exercer no Serviço Nacional de Saúde. Especialistas apontam para mais quatro centenas de médicos de fora do concurso do próximo ano.
Com o atual panorama começaram também a surgir declarações que sugerem existir já um “excedente” de médicos. Mas terá mesmo Portugal médicos a mais? Ou terá o Serviço Nacional de Saúde um problema de atratividade e falta de planeamento?
Falta de médicos. Um problema de distribuição
Olhando para as últimas estatísticas da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal é dos países com mais médicos por mil habitantes — 4,3 — acima da média da OCDE (3,3). Acontece que, em nota de rodapé, a própria organização sublinha que este número poderá estar sobrestimado em cerca de 30%, o que faria logo com que Portugal derrapasse na tabela, ficando abaixo da média dos Estados-membros. O bastonário garante contudo que o valor apontado (de 4,3 médicos por mil habitantes) já corresponde ao número de médicos com quotas em dia e menos de 70 anos inscritos na Ordem dos Médicos, ou seja, o número de médicos autorizados a praticar em Portugal.
Mas se olharmos apenas para o universo de médicos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS), então aí o cenário passa a ser outro e o rácio baixa para 2,7 médicos por 1.000 habitantes, abaixo da média da UE28, como se pode verificar na comparação efetuada pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), no Balanço Social de 2014. Porém, a comparação é sempre arriscada pois os critérios utilizados para a contabilização de médicos nos diferentes países podem ser distintos.
O bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, mantém a sua convicção: “Não há falta de médicos em Portugal”. E a prova disso, afirma, é que “nem o privado, nem o setor social se queixam da falta de médicos, só o SNS se queixa”. “Porquê?”, questiona o bastonário, antes de dar a resposta: “Porque não lhes paga o suficiente. O Governo remunera jovens especialistas com 2.800 euros brutos, por 40 horas por semana, com 18 horas de urgência. Os médicos preferem ir para o setor privado ou emigrar. Nos últimos quatro anos saíram do país mais de mil médicos.”
Também a investigadora Paula Santana, do Grupo de Investigação em Geografia da Saúde da Universidade de Coimbra, que realizou em 2013 um estudo para a Ordem dos Médicos sobre a evolução prospetiva dos médicos no SNS, e que já participou noutro estudo para o Ministério da Saúde, entende que “não temos médicos a mais na generalidade do sistema de saúde português” — “o que temos é médicos a menos no SNS”. “Essa carência é ainda mais evidente em algumas especialidades médicas, como a medicina geral e familiar, e decorre mais do défice de atractibilidade do setor público do que da inexistência de profissionais.”
Paula Santana introduz o problema da má distribuição geográfica dos recursos médicos e aí culpa os sucessivos Governos. “As medidas tomadas nos últimos anos, com a possibilidade de acumular parte do salário com as pensões de reforma ou a atribuição de incentivos para colocação de profissionais em zonas carenciadas foram demasiado tímidas e revelaram-se completamente ineficazes na retenção de profissionais.”
O bastonário fala mesmo em falta de vontade do poder executivo para fixar os médicos no SNS e exemplifica com uma medida que chegou a sugerir ao anterior Governo e que não foi aceite, que era o regresso da figura da dedicação exclusiva (com um pagamento adicional equivalente a 40% do salário base do médico). “Nenhum ministro da Saúde esteve interessado em separar o público do privado, mas todos, hipocritamente, falam disso. Se não têm dinheiro não falem disso.”
“Má distribuição” é o que também Maria Amélia Ferreira, diretora da Faculdade de Medicina do Porto, acredita existir no SNS. “Do ponto de vista objetivo não temos médicos a menos, temos é má distribuição. E isso é responsabilidade política e poderá ser colmatada com planificação e criação de condições mais atrativas para os médicos”, defende.
Na mesma linha, Duarte Nuno Vieira, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, considera que Portugal “tem um número de médicos plenamente adequado para as necessidades do país”. Porém, “em simultâneo existe uma má distribuição desses médicos em termos geográficos e uma má distribuição por especialidades”. Exemplo dessa carência verifica-se na especialidade de medicina geral e familiar, sublinha o responsável.
E a verdade é que, segundo dados recentes do próprio Ministério da Saúde, disponíveis no Portal do SNS, faltam mais de 600 médicos de família no SNS para dar resposta aos 1.082.737 utentes, sendo que é em Lisboa e Vale do Tejo que a situação é mais grave.
“Para esta má distribuição contribuem fatores diversos, entre os quais se destacam por exemplo as condições de trabalho menos atrativas nas zonas mais interiores do país. No SNS, o problema da falta de médicos faz-se sentir porque as condições salariais e de trabalho oferecidas pelo setor privado são muito mais atrativas e têm levado um cada vez maior número de médicos a optarem por ele”, assegura Duarte Nuno Vieira.
Termos falta de alguns especialistas nalgumas regiões “não significa que tenhamos poucos médicos no país”, sublinha André Fernandes, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM). “Eles não estão é adequadamente distribuídos nem nos sistemas público-privado, nem nas especialidades, nem nas unidades de saúde. Temos um problema de fixação de médicos.”
Já Jorge Roque da Cunha, do Sindicato Independente dos Médicos, responde, em contracorrente, que “temos falta de médicos nos serviços públicos e em todos os graus da carreira médica”. E em algumas especialidades, como medicina do trabalho, medicina legal, oftalmologia, ortopedia, anestesia e outras, essa carência resulta de “alguma ‘contenção’ na atribuição das capacidades formativas”.
Mas a quem se deve esta má distribuição dos médicos por especialidade e zona geográfica? Aí, Paula Santana não é a única a atribuir culpas aos sucessivos governos. O bastonário dos Médicos atira: “Mas quem é que contrata os médicos? Não é o Estado? E não vi despedir nenhum conselho de administração por má gestão.”
“A somar a este problema”, acrescenta o sindicalista Jorge Roque da Cunha, “a nossa classe profissional apresenta-se neste momento com uma estrutura etária envelhecida.” Um estudo recente de João Correia da Cunha, da secção sul da Ordem dos Médicos, mostra precisamente que existe “carência de médicos no setor etário intermédio”.
Rui Nogueira, presidente da Associação de Medicina Geral e Familiar, alerta para o problema concreto que decorre da estrutura etária dos médicos. “A maior parte dos médicos atinge a idade da reforma por volta de 2020. Haverá um grande volume de colegas a aposentarem-se nesses anos. Um problema que será maior em medicina geral e familiar”. Aliás, o próprio Ministério da Saúde prevê que, pelo menos no caso dos médicos de família, o pico de aposentações vai ocorrer nos anos de 2020 a 2022, sendo que até 2055 se deverão reformar mais de 5.000.
Para o médico Jorge Roque da Cunha, “é fundamental que o Estado cumpra a sua obrigação de planear a médio prazo o colmatar das necessidades evidentes” e para isso será preciso, tal como já tinham defendido os anteriores, “criar incentivos (e mesmo sem ser em zonas carenciadas)”. Caso contrário, “vamos continuar a ter este défice, uma vez que quem termina o internato na maioria ou emigra ou passa a exercer em exclusivo no privado”.
Este problema de planeamento foi aliás sublinhado, por exemplo, no Plano Nacional de Saúde 2004-2010, do Governo de então. “Os problemas relativos aos recursos humanos para a saúde refletem uma relativa falta de políticas e planeamento a longo prazo no passado. Este é certamente um dos maiores desafios que o Sistema de Saúde Português terá de enfrentar nos anos vindouros”, lê-se no documento, que foi ainda mais longe: “Um aumento do número total de profissionais de saúde não resolve o problema do ajustamento dos recursos humanos da saúde às necessidades da população a nível local”.
“É fundamental que o SNS se torne um empregador mais competitivo”
Reagindo às críticas deixadas a vários governos de pouco ou nada terem feito para fixar médicos no SNS, Marta Temido, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde, disse ao Observador que “um dos objetivos do Ministério da Saúde é o de aperfeiçoar a gestão de recursos humanos e promover a valorização dos profissionais de saúde”. “É fundamental que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) evolua para se tornar um empregador mais competitivo, designadamente através da adoção de incentivos financeiros e de outra natureza.”
Quanto às assimetrias que existem no país, a responsável do Ministério da Saúde afirma que o Governo procurará corrigi-las, “com base num melhor planeamento da distribuição de recursos médicos face às necessidades assistenciais”. E para o caso dos médicos de família até já existe uma ferramenta — o Power Bi — que resulta da articulação da ACSS com a Coordenação da Reforma do Serviço Nacional de Saúde para os cuidados de saúde primários. O Power Bi mostra, por exemplo, quantos médicos existem em cada centro de saúde e quantos ainda fazem falta para dar resposta a toda a população, revelando quais as zonas mais carenciadas.
“A informação será naturalmente considerada aquando da abertura dos próximos procedimentos concursais para colocação de médicos”, atesta Marta Temido, adiantando que a “a distribuição de médicos hospitalares deverá seguir progressivamente um racional idêntico, investindo-se no reforço do regime de incentivos para colocação de médicos em estabelecimentos carenciados”.
Em resposta ao Observador, a ACSS revelou ainda que está “a desenvolver um modelo de planeamento e projeção de necessidades de profissionais médicos e de enfermagem”.
Reduzir numerus clausus nunca terá impacto no imediato. E ministro do Ensino Superior não concorda
“Independentemente do número de médicos que temos agora, o que tenho a certeza é que temos estudantes de Medicina a mais para as capacidades formativas existentes”, afirma André Fernandes, da ANEM, redirecionando a conversa.
Por causa disso e na sequência do concurso de especialidade que deixou de fora mais de 100 jovens médicos, no final do ano passado, várias pessoas vieram defender que é preciso reduzir o numerus clausus nas faculdades de Medicina. A ANEM apresentou mesmo uma proposta ao Governo, que mereceu o apoio de várias outras entidades, entre as quais a Ordem dos Médicos.
Os estudantes sugerem que se acabe com o contingente adicional de 15% de vagas para alunos licenciados e se vá reduzindo, nos próximos cinco anos, o número de vagas do contingente geral em 3 pontos percentuais, num total de 15% ao fim desses anos. Ao todo, propõem uma redução de 30% das vagas em cinco anos, para um máximo de 1.300. Ainda assim acima daquele que era o número apontado como “necessário” (1.175) pelo professor Alberto Amaral, da agência de acreditação de cursos superiores, num relatório de 2011.
Questionado sobre o assunto e sobre a disponibilidade para avaliar a proposta, o Ministério da Ciência e do Ensino Superior não quis fazer qualquer comentário, porém, em entrevista ao jornal Expresso, no passado fim de semana, o ministro Manuel Heitor deixou claro que não vai cortar vagas nos cursos de medicina. “Eu acho que há um défice de qualificações em todas as áreas, incluindo em Medicina. Se chego ao Hospital de Faro e não há médicos é porque não há clínicos a mais”, justificou o ministro, acrescentando que “temos hoje uma economia com pouca capacidade de absorção, mas isso não deve levar a uma redução da oferta”.
Já Marta Temido, da Administração Central do Sistema de Saúde, disse apenas que o Ministério “está muito atento à evolução das necessidades do setor” e que “esta é uma matéria que implicará articulação interministerial”.
Quem não concorda com esta sugestão é Pedro Pita Barros, economista especialista em saúde. “A opção não faz sentido se resultar unicamente das considerações de reserva de mercado para os profissionais de medicina. Defender essa visão é pretender que o papel do ensino superior na área da medicina seja fornecer profissionais médicos para o Serviço Nacional de Saúde”, justifica o professor da Nova School of Business and Economics. Merlinde Madureira, da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), também discorda. “Não me parece razoável construir muros à volta das faculdades de Medicina.”
Do lado contrário, completamente a favor desta medida, está o bastonário, para quem “o contingente de 15% de vagas para licenciados é um absurdo”. A Ordem dos Médicos subscreveu a proposta que a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) já entregou ao Ministério da Ciência e Ensino Superior e ao Ministério da Saúde. Ainda assim admite que “é inevitável durante os próximos 12 anos formarmos médicos muito acima das necessidades”.
Este ano, à semelhança dos últimos, de acordo com os dados disponíveis no portal da Direção-Geral do Ensino Superior (DGES), abriram 1.441 vagas na 1ª fase, mais 14 na 2.ª fase e a faculdade que recebeu mais alunos foi a da Universidade de Lisboa. No Porto, por exemplo, entraram 245 novos estudantes, acima daqueles que têm sido os números apontados pela diretora da faculdade.
“Há muito que as faculdades de medicina reclamam que têm numerus clausus muito acima das capacidades formativas. Desde 1999 que a Faculdade de Medicina do Porto diz que tem capacidade para 190 alunos e todos os anos tem 245, mais 15% para o contingente dos alunos já com licenciatura e mais atletas de alta competição e filhos de embaixadores. Chegam aos 300 alunos”, reclama Maria Amélia Ferreira, sublinhando que “para formar um médico precisamos de ter bons teatros anatómicos, investigação clínica, estruturas hospitalares com especialistas e clínicos de qualidade que ensinem em números reduzidos e isto não e compaginável com turmas de 10, 12 ou 13 alunos”. No caso do Porto, garante, até se tem conseguido manter a qualidade porque a faculdade tem 30 hospitais filiados.
Na mesma linha, Duarte Nuno Vieira referiu que “o número de alunos que está a entrar anualmente nos cursos de medicina condiciona fortemente a qualidade do processo pedagógico, o que se agrava com o facto de várias escolas médicas disporem de instalações perspetivadas para um numerus clausus que nada tem a ver com o atual e de orçamentos absolutamente insuficientes”. Exemplo disso é a própria faculdade que dirige, em Coimbra, que, diz, “foi perspetivada para pouco mais de 100 alunos por ano, confrontando-se atualmente com mais de 300”.
E além dos problemas ao nível da qualidade da formação, surgem outros que Duarte Nuno Vieira intitula de “éticos”. “Não se afigura eticamente aceitável ter, por exemplo, 15 ou 20 alunos a examinarem um doente numa aula prática”.
André Fernandes, presidente da ANEM, exemplifica esta realidade de forma mais visual — “imagine-se numa consulta de ginecologia onde estão, além do médico, mais quatro estudantes a observá-la” — e fá-lo não só para mostrar o problema ético, mas também o problema de formação. “Não podemos praticar nem ter o mesmo nível de contacto com os doentes.”
Também o sindicalista Jorge Roque da Cunha insiste que “as faculdades de Medicina estão a rebentar pelas costuras”. Alerta, porém, que “o acesso aos cursos de Medicina não deve ser mais limitado sem haver razões válidas e concretas que o justifiquem”. Até porque no passado a redução das vagas nos cursos de Medicina tiveram um efeito bastante negativo.
Em 1979/1980 havia 800 vagas em Medicina no País. Depois disso foi diminuindo progressivamente até às 190 vagas em 1986, altura em que o número começou a crescer a um ritmo lento. Só em 2001/2002 se conseguiu ultrapassar as 800 vagas existentes no final da década de 70. Entre 1995 e 2010, de acordo com um estudo levado a cabo pela ANEM em 2011, registou-se um aumento de 250% no número de vagas para os cursos de Medicina. “E nos últimos 20 anos aumentou 400%”, avança o presidente da ANEM, explicando que o problema não foi o aumento inicial. Esse “foi necessário”. “O problema é que formar um médico demora mais de 10 anos e já tínhamos atingido o número necessário, mas como continuava a haver falta de médicos, eles continuavam a aumentar as vagas. Não souberam pôr um travão a tempo.”
O que agora a ANEM sugere é uma redução muito mais suave, acreditando haver elementos suficientes para perceber que não causará problemas no futuro. A verdade é que também não resolve o problema atual, da falta de capacidade pós-graduada, para formar os jovens médicos, admite André Fernandes.
E mesmo no futuro, pode não adiantar de nada, assinala a investigadora de Coimbra, Paula Santana: “Os resultados desta alteração deverão ser monitorizados de perto, uma vez que podem produzir consequências como, por exemplo, o aumento da procura de formação de portugueses em universidades europeias, não originando, consequentemente, diminuição da procura para a formação específica”.
Porque não se aumentam vagas do internato?
Mas se reduzir vagas nas universidades não vai resolver o problema no imediato, porque é que então não se aumentam as vagas do internato da especialidade com vista a formar todos os jovens médicos?
“Não há margem para isso porque não há doentes para tanto interno treinar. Havia cerca de 1.470 jovens candidatos ao concurso de especialidade, mas vieram mais cerca de 300 do estrangeiro (maioria portugueses que tiraram o curso fora). As vagas não chegaram. É impossível abrir vagas para todos e se o fizéssemos seríamos o único país do mundo a fazê-lo. Em Espanha abrem 6.000 vagas por ano e há 13 mil candidatos”, aponta José Manuel Silva. “Estamos a formar jovens acima das necessidades do País”, assegura.”Reformaram-se 430 médicos em 2015, acabaram a especialidade 1.050 e entraram na especialidade 1.569. Está a ver o ritmo a que estamos a produzir especialistas? A um ritmo como nunca houve. O Estado não pode transmitir a ideia de falta de médicos ou que estamos a formar poucos médicos. Nunca formámos tantos especialistas como agora.”
O que é o internato médico?
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O internato médico é a formação pós-graduada a que os jovens licenciados em Medicina estão sujeitos para alcançarem uma especialização. Este está organizado em dois períodos: o ano comum — um ano de formação geral em que o interno passa por vários serviços — e a especialização (com um número de vagas de acordo com a idoneidade atribuída pela Ordem dos Médicos aos serviços) que depende da realização de um teste de seriação e pode variar entre quatro e seis anos, dependendo da especialidade. Nesta fase, o interno já tem autonomia.
E os estudantes acham que “a Ordem coloca o travão no sítio certo”. “Há sempre formas de alterar esse número, podemos sempre pedir que a Ordem reveja as idoneidades e que a ACSS aumente contratações, aumentando assim o número de tutores, mas não acredito que mesmo aumentando consigamos absorver a quantidade de médicos que vão estar a sair das universidades”, afirma André Fernandes.
Já Maria Amélia Ferreira, do Porto, sublinha que “não adianta abrir vagas em locais onde não haja capacidade de formação e especialistas que possam dar essa formação”. Isto porque é preciso “continuar a garantir a qualidade da formação pós-graduada”.
Para alargar o espaço de formação, a Ordem até já permite que qualquer especialista, “independentemente do grau”, possa ter internos. “Neste momento nós abrimos o número de vagas possível em todas as especialidades e ainda no ano passado alterámos o programa de anestesia para permitir acomodar mais 14 internos por ano e também no ano passado alterámos o programa de medicina geral e familiar para permitir mais 50 internos por ano”, explica o bastonário.
Olhando para a evolução do número de vagas ao longo da última década, verifica-se que houve um aumento de 75% em 2016 face a 2006, sendo que a especialidade que sentiu um dos maiores aumentos foi a de medicina geral e familiar, que corresponde já a cerca de 30% do total de vagas a concurso. Em 10 anos abriram mais de 14.500 vagas de especialidade. Foram ocupadas 14.157.
Merlinde Madureira, da FNAM, acredita que é ainda assim possível abrir mais vagas. “Se quisermos resolver o problema temos de bater o país de norte a sul e ver porque é que não são dadas idoneidades. Não acredito que se isso for feito não haja possibilidade de formar mais internos”, defende a sindicalista.
Também o médico e sindicalista Jorge Roque da Cunha acredita que as vagas “podem ainda ser alargadas com maior persistência da Ordem e organização, aproveitando a obrigação/disponibilidade dos médicos em serem tutores”. Contudo, defende que “não podemos embarcar na demagogia de dizer que haverá vagas de internato complementar para todos e para sempre.”
Já Rui Nogueira, da Associação de Medicina Geral e Familiar, considera que será muito difícil conseguir abrir para lá de 1.700 vagas no concurso de especialidade. Por isso, uma das sugestões que deixa — indo no sentido oposto daquilo que está em marcha que é acabar com o ano comum (1.º ano de internato, quando se termina o curso superior) em 2018 — é a de “aumentar a duração do ano comum de 12 para 18 meses”. O que se consegue com isso? “Ganhar tempo”, responde de imediato.
Pedro Pita Barros deixa no ar uma pergunta: “Temos mesmo incapacidade de formar médicos na especialidade ou as várias análises são feitas por quem está interessado na redução de vagas?”
Alunos, médicos e diretores de faculdades preocupados com a possibilidade de haver médicos indiferenciados
Sem solução fácil à vista, resta o problema. “Deixar que muitos jovens médicos fiquem sem especialidade é um erro que terá consequências fortemente negativas no futuro para a qualidade da saúde em Portugal”, Duarte Nuno Vieira.
“A nossa preocupação é a magnitude que isso poderá vir a atingir.” Olhando para a lista das pessoas que fizeram prova nacional de seriação há 2.300 jovens aptos a concorrer à especialidade, em junho deste ano. Sabendo que as capacidades andam à volta das 1.600, e já contando com alguns que se vão desvincular por saberem que não têm hipótese, haverá cerca de 400 que ficarão sem conseguir fazer especialidade”, antecipa André Fernandes.
Em relação aos 114 que ficaram impedidos de aceder à especialização, o Ministério da Saúde assegurou que eles se pudessem manter em funções no SNS e estão “tal com os restantes, integrados em equipas”. Além disso, “reconhecendo a necessidade de médicos no SNS, em conjunto com o Ministério das Finanças, o Ministério da Saúde encontrou um mecanismo legal, constante do Orçamento do Estado, que permite esta solução excecional, garantindo-lhes a repetição da prova nacional de seriação em 2016 e uma nova possibilidade de ingresso na especialidade”, avançou ao Observador, Marta Temido, da ACSS.
Quanto a este cenário apontado como certo por muitos, o Ministério da Saúde não se pronunciou, pelo que não é possível, para já, perceber o que acontecerá aos que não conseguirem vaga no próximo concurso da especialidade. Certo é que os internos têm um papel muito importante na prestação de cuidados de saúde. Em 2014, de acordo com o Inventário dos Recursos Humanos da Saúde, havia 8.515 internos no SNS, o equivalente a mais de 30% do total de médicos naquele ano (26.960). Em janeiro, segundo dados da ACSS, eram já mais de 10.400.