1. Devo começar este texto com uma prévia ressalva: pessoalmente, não penso que seja urgente proceder a qualquer revisão da Constituição actualmente em vigor e, menos ainda, que seja necessário elaborar uma nova Constituição (no que, inclusivamente, acompanho os autores do projecto apresentado pelo Observador…).
Não significa isto, claro, que concorde com todo o (extenso e denso) articulado da nossa Lei Fundamental ou que não existam nele aspectos mais negativos ou passíveis de aperfeiçoamento (que os há, e de resto haverá sempre); significa, sim, que, em minha opinião, nenhum desses “defeitos” é tão gritante ou nocivo que imponha, por si só, uma revisão especificamente destinada a eliminá-lo. Aliás, a actual Constituição já foi revista por sete vezes (1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005), e nem por isso deixaram de se escutar vozes, de todos os quadrantes, a apontar a Constituição como causa dos nossos males… o que, no mínimo, legitima a suspeita de que também não seria a próxima revisão a resolver miraculosamente todos os problemas, reais ou imaginários, que volta e meia continuam a ser-lhe assacados.
É verdade que, contra este argumento, poderá sempre invocar-se que isso é assim justamente porque esta Constituição já nasceu torta e, por isso, de acordo com o ditado popular, tarde ou nunca se endireita – o que, então, demonstraria a imprescindibilidade de escrever uma Constituição inteiramente nova, não bastando rasurar ou emendar a “velhinha” e “datada” Constituição de 1976. Por razões que não devo detalhar aqui para não alongar excessivamente este texto, devo confessar que o argumento não me convence. Pelo contrário: sem excluir a pertinência de algumas das críticas – porque esta Constituição, como aliás qualquer outra obra humana, tem inevitavelmente defeitos, como referi –, parece-me que este discurso “anti-Constituição”, sobretudo quando proveniente de membros da classe política, mais não é, na maior parte das vezes, do que um álibi para mascarar falhas ou incapacidades próprias.
De todo o modo, se este discurso fosse fundado e precisássemos efectivamente de uma outra Constituição, nesse caso afigura-se-me que seria preferível mudar de paradigma e não apenas de articulado, isto é, definir a filosofia global enformadora da Lei Fundamental e depois redigir o correspondente texto constitucional em conformidade com essa mundividência pré-anunciada, em vez de tomar como base de trabalho a Constituição de 1976 e ir paulatinamente amputando-a ou acrescentando-lhe remendos.
Com todo o respeito pelos autores do projecto, se a intenção subjacente a esta iniciativa era a de apresentar à comunidade uma “nova” Constituição, supostamente “desideologizada”, que “libertasse” a sociedade do “espartilho” e do “peso opressor” do Estado, penso que melhor teria sido optar por outro modelo, verdadeiramente mais “minimalista” – como, por exemplo, o projecto de Constituição elaborado por Paulo Otero a pedido do Partido da Nova Democracia –, do que “apenas” reformular o texto da Constituição de 1976.
2. Dito isto, a posição de princípio que acabei de enunciar não significa que a iniciativa do Observador não tenha os seus méritos e que inexistam no projecto quaisquer pontos positivos.
De facto, numa “comunidade aberta de intérpretes da Constituição” (Häberle), as opções vertidas na Lei Fundamental podem e devem estar permanentemente sujeitas a escrutínio e discussão popular. Nesse aspecto, só por promover a divulgação do nosso texto constitucional e o debate público sobre o mesmo (ainda que com o risco de fomentar a multiplicação de founding fathers, todos jogando o passatempo “descubra o constitucionalista que há em si”…), esta iniciativa já seria de aplaudir.
Concretamente quanto ao projecto em si, sendo inviável proceder aqui a uma apreciação global de todas as suas alterações face à Constituição actual, focar-me-ei apenas sobre algumas das suas principais novidades em matéria de organização do poder político.
Neste âmbito, destacaria as seguintes inovações no projecto:
a) O prolongamento do mandato do Presidente da República, de 5 para 7 anos, contrabalançado pela impossibilidade de reeleição para um segundo mandato (artigo 61.º, n.os 1 e 2);
b) A redução do número máximo de deputados à Assembleia da República (de 230 para 200), ainda que continue a adoptar-se um sistema de eleição proporcional, com vista a “assegurar a representatividade da sociedade portuguesa” (artigos 73.º e 74.º, n.os 1 e 2), eliminado-se todavia a referência à utilização do método de Hondt;
c) A eliminação do monopólio partidário na apresentação de candidaturas à Assembleia da República, passando estas a poder ser apresentadas também por associações de cidadãos, isoladamente ou em coligação (artigo 76.º);
d) A reformulação da proibição de constituição de organizações que perfilhem a ideologia fascista, proibindo-se agora, mais amplamente, a constituição de organizações que “perfilhem ideologia totalitária” (artigo 28.º, n.º 4);
e) A exigência de aprovação do programa do Governo pela Assembleia da República (por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções) para que o Governo entre plenamente em funções, sendo a sua não aprovação causa de demissão do Governo [artigos 95.º, n.º 2 e 97.º, n.º 1, alínea d)].
3. Compreendem-se (ou intuem-se) facilmente os objectivos subjacentes a cada uma destas alterações propostas, embora algumas delas possam acarretar alguns riscos ou ser mais controversas.
A primeira visa reforçar a posição arbitral do Presidente da República, prolongando ainda mais a duração do seu mandato face ao da Assembleia da República e visando evitar que a actuação presidencial durante o seu primeiro mandato seja politicamente condicionada em função da (expectativa da) sua reeleição para um segundo mandato, que deixa de ser possível.
A segunda visa, aparentemente, libertar recursos para que a Assembleia da República possa desempenhar melhor as suas funções, nomeadamente criando um corpo de funcionários especializado (embora isto não seja inteiramente coerente com a supressão, pelo projecto, do actual artigo 181.º, presumindo-se que esta eliminação se deva à questionável dignidade constitucional desta disposição).
A terceira, aliás já muito reclamada na opinião pública, traduz-se na perda do exclusivo partidário na Assembleia da República, pelo que se trata de uma alteração de louvar, embora, em casos extremos (e por força da atenuação do papel da disciplina partidária), possa conduzir a uma excessiva dispersão no seio do Parlamento.
A quarta estende a protecção da nossa democracia contra todas as “ideologias totalitárias” e não apenas contra uma ideologia concreta e identificada: com esta previsão, a Constituição passaria a consagrar, agora sim, uma democracia plenamente “protegida” ou “militante”. Trata-se de uma opção coerente e, nesse sentido, mais apurada do que a actualmente consagrada no artigo 46.º, n.º 4 da Constituição de 1976 (já que não são apenas os partidos de “ideologia fascista” que ameaçam a democracia, mas sim todos os partidos anti-democráticos, qualquer que seja a corrente política a que pertençam); não obstante, permanece a dúvida sobre se a opção fundamental a tomar nesta matéria deverá passar por proibir formalmente a existência dos partidos “anti-sistema” (sabendo que a sua mera proibição não impede a sua disseminação na clandestinidade) ou, pelo contrário, por “acolher” estes partidos no seio do próprio sistema democrático.
Por último, a quinta pretende, inquestionavelmente, assegurar a governabilidade, ao impor que apenas um Governo com apoio parlamentar maioritário possa subsistir. Não se trata de uma proposta nova, pois já desde os anos 70 esta solução tem sido defendida (contando-se entre os seus defensores, entre outros, Jorge Miranda, Pedro Lomba e Manuel Braga da Cruz). Sendo o objectivo, em si mesmo, positivo, receia-se, contudo, que este mecanismo dificulte excessivamente a formação do Executivo, tanto mais que o projecto continua a preconizar a proporcionalidade do sistema eleitoral e não faz já qualquer referência ao método de Hondt (que, de algum modo, tempera a proporcionalidade em benefício da estabilidade parlamentar).
Por outro lado, a consagração desta solução continua a deixar algumas questões por esclarecer, nomeadamente se a aprovação do programa do Governo pela Assembleia da República (i) deve ter por escopo sindicar a conformidade deste programa face ao programa eleitoral do(s) partido(s) vencedor(es) das eleições ou se significa, objectivamente, uma concordância parlamentar face às políticas ali previstas (um verdadeiro “contrato de legislatura”, portanto) e, neste segundo caso, (ii) se fica ou não o Parlamento impedido de propor medidas ou apresentar projectos de lei que contrariem as linhas essenciais daquele programa, nomeadamente em sede de discussão do Orçamento de Estado (que constitui tão-só a versão quantificada das opções desse programa).
Isso, porém, já seria assunto para um outro texto…
Marco Caldeira é Assistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa