A proposta de lei de Orçamento de Estado para 2017 contém, porventura, o maior ataque de que há memória em Portugal à Justiça. Assim. Nem mais nem menos.
Em Portugal é claro que, já hoje, as custas judiciais são um entrave claro, evidente e inadmissível no acesso à justiça. O seu valor é de tal forma elevado que apenas os muito pobres (porque beneficiam de apoio judiciário) e os muito ricos podem aceder a este serviço essencial, em grande medida privilégio do Estado e que, verdadeiramente, distingue os Estados de Direito dos outros.
Se hoje uma qualquer empresa pensa mil vezes nas custas judicias antes de recorrer a Tribunal; se toda a classe média foi afastada dos Tribunais e, consequentemente, do acesso à justiça pelo incomportável nível das custas judiciais, sendo aprovada a proposta de orçamento de Estado tal como se encontra, passarão a reservar-se os tribunais, verdadeiramente, apenas para os mais pobres ou apenas para uma elite de empresas e pessoas.
Sejamos claros: não é possível, razoável ou minimamente justificado que o Estado reserve para si o exercício da justiça (salvo raríssimas exceções) para depois impor à justiça um preço desproporcional que afasta dos Tribunais as empresas e os cidadãos.
Será, com toda a certeza, o que acontecerá se for aprovada a atual proposta de orçamento do Estado, que altera o regulamento das custas judicias eliminando a possibilidade de o Juiz, nos processos de valor superior a EUR 275.000,00, considerando a especificidade e complexidade da causa, bem como a conduta das Partes isentar (ou reduzir proporcionalmente) o pagamento da taxa de justiça remanescente. Esta era uma regra essencial e que, aliás, vinha sendo utilizada com mestria pelos juízes para preservar certa proporcionalidade entre o serviço prestado e as custas devidas. Embora não tenha conhecimento de estatísticas específicas sobre esta matéria, a prática confirma que este era um expediente utilizado com imensa frequência, diria mesmo, utilizado todos os dias pelos Tribunais, pelo que todos os operadores judiciais tinham já interiorizado a sua importância e razoabilidade.
Aliás, enquanto escrevo este artigo recebo a homologação de uma transação judicial em que as Partes, ainda antes da realização da audiência de julgamento, chegaram a acordo tendo requerido a dispensa de pagamento da taxa de justiça remanescente, o que foi deferido. Caso se mantenha esta norma na versão final do orçamento, num caso onde nem julgamento houve, cada uma das partes teria pago cerco de dez mil euros de taxa de justiça remanescente.
Donde, onde havia bom senso, ponderação e proporcionalidade, reservando-se uma benéfica discricionariedade à Magistratura e, consequentemente, ao sistema que o permitia respirar, passará a reger uma regra cega, desnecessária e inibidora do recurso a um serviço fundamental do Estado, impondo-se que por cada fração de EUR 25.000,00 acima do valor de EUR 275.000,00 sejam devidas mais 3 unidades de conta (EUR 306) a pagar ao Tribunal.
Poderá, para os leigos, parecer pouco, mas para quem calcorreia todos os dias os Tribunais é um aumento nunca visto (que se junta a outros aumentos recentes) e que permitirá que uma ação em Tribunal possa custar dezenas ou centenas de milhares de euros, muitíssimo mais que em qualquer Tribunal Arbitral, por exemplo. Aliás, estou mesmo em crer que um sistema tão desproporcional terá que ser, necessariamente, inconstitucional.
Se o copo, manifestamente, já estava cheio, esta é gota que o fará transbordar, com impacto, sobretudo, nas transações comerciais e na vida das empresas, porquanto, é no campo da litigância comercial (bem como administrativa e fiscal) que se concentram os processos de valor superior a EUR 275.000,00, cujo valor passará a ser incalculável.
Ora, se hoje as empresas se queixam, diariamente, de que não vale a pena o recurso aos Tribunais (e quantas vezes injustamente), a ser aprovada a norma em discussão pura e simplesmente deixarão de o poder fazer, sob pena de, em cada litigio, jogarem a sua sobrevivência “crónica”. Pode alguém compreender que, por exemplo, uma empresa não possa, pura e simplesmente, impugnar um concurso público, porquanto sujeita ao pagamento de centenas de milhares (e sim, serão centenas de milhares) de euros de custas judiciais? Mais do que isso, poderá uma empresa deixar de poder impugnar uma liquidação de impostos por receio de não conseguir pagar a taxa de justiça? E este é um problema fundamental, a impugnação de um concurso público de 20 milhões de euros poderá significar uma taxa de justiça remanescente de mais de 240 mil euros ou, a impugnação da liquidação de um imposto de 5 milhões de euros poderá significar uma taxa de justiça de quase 60 mil euros.
Como é evidente, não é possível nem aceitável um regime em que os cidadãos e as empresas pura e simplesmente deixam de poder recorrer aos Tribunais, sobretudo para se defenderem de atos ilegais do próprio Estado, porque este, primeiro, reservou para si a exclusividade na administração da justiça, mas depois impõe uma taxa à sua utilização que, na prática, exclui qualquer possibilidade de reposição da legalidade. Ora, como facilmente se intui um País onde as empresas não podem recorrer aos Tribunais não tem qualquer competitividade. Um país sem Tribunais acessíveis não é um Estado de Direito.
Advogado