A avaliar por diversas reflexões suscitadas pelos resultados das recentes eleições norte-americanas e do referendo inglês que ditou o Brexit, muitos não terão ainda aparentemente interiorizado o que se está hoje a passar sob os nossos olhos.

Do mesmo modo que tempos houve em que os médicos nos propunham a sangria dos pacientes como terapia, importaria hoje que os políticos não errassem no diagnóstico para assim lograrmos defender adequadamente os regimes demo-liberais das pulsões populistas que, já dentro de portas, os ameaçam de destruição.

Independentemente da posição que cada um de nós possa adoptar sobre a natureza do populismo – se é uma ideologia, ou tão somente uma praxis –, creio que poderemos todos convergir, por ora, no consenso académico que vem definindo populismo como o discurso que divide a sociedade em dois grupos homogéneos e antagónicos, o ‘povo puro’ e a ‘elite corrupta’, na pressuposição de que esses dois grupos têm interesses irreconciliáveis e que conduz ao enfatizar da soberania nacional e/ou popular. Comum aos diversos populismos – porque os há de direita e de esquerda – é sempre a estratégia do “eles” contra “nós”, bem como a reivindicação de que as elites falharam ao povo e que usurparam a democracia…

O filósofo Daniel Innerarity veio recentemente sustentar que os sistemas políticos – leia-se, as democracias ocidentais – têm-se revelado incapazes de gerir a crescente complexidade do mundo, expondo a sua impotência perante aqueles que ofereçam uma qualquer simplificação tranquilizadora, ainda que eventualmente resultante de uma falsificação grosseira da realidade: “Quem falar hoje de limites, responsabilidade, interesses partilhados, tem todas as probabilidades de perder face a quem estabeleça separações absolutas entre nós e eles, ou entre elites e povo […] Pouco importa que muitos candidatos proponham soluções ineficazes para problemas mal identificados, contanto que ambas as coisas – problemas e soluções – tenham a nitidez de um muro ou sejam tão gratificantes como sabermo-nos parte de um nós inquestionável.”

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Ora, a par do inegável crescimento de uma mundividência simplista, de tipo binário, entendo que deve ser também reconhecida a eclosão de uma nova realidade de que a eleição de Donald Trump e o Brexit são também expressão: mais que eleger-se, hoje, deselege-se; revela-se nos actos eleitorais muito mais rejeição do que projecto. Estes comportamentos – a que Innerarity chamou de “soberano negativo” – são expressão de uma profunda desesperança: “já não se vota para solucionar, mas sim para expressar um mal-estar. E, na mesma lógica, são eleitos aqueles que optem por encabeçar os protestos contra os problemas, em detrimento daqueles que se propõem corrigi-los. Por isso, a competência ou incompetência dos candidatos passou a ser um argumento tão pouco relevante. O decisivo [para um candidato] passou a ser representar o mal-estar melhor do que o outro.”

Eis uma boa ilustração da “corrida para o abismo” descrita por Jorge Sampaio.

Se, aqui chegados, estivermos em condições de consensualizar e identificar, enfim, as causas (pelo menos algumas) do crescente sucesso daquela que é hoje uma séria ameaça à democracia, importaria que o estivéssemos também de identificar a terapia adequada ao diagnóstico, de modo a assegurar que aquela, ao invés de nos sangrar, fortaleça.

Reproduzo as palavras de Innerarity: “Equivoca-se quem julgar o incremento dos extremismos a partir dos movimentos antidemocráticos que deram lugar aos totalitarismos do século passado. Diferentemente daqueles, os actuais utilizam uma linguagem democrática. O que sucede é que têm uma ideia simplista da democracia e absolutizam uma das suas dimensões. Por isso não faremos frente a essa ameaça, a menos que ganhemos uma batalha conceptual que torne inteligível e atractiva a ideia de uma democracia completa. A democracia é um conjunto de valores e procedimentos que há que saber conciliar e equilibrar (participação cívica, eleições livres, avaliação de peritos, soberania nacional, protecção das minorias, primazia do direito, representação política…). Os novos populismos têm uma retórica democrática porque adoptam um desses valores e absolutizam-no, desconsiderando todos os demais. Degrada-se a democracia quando se absolutiza o instrumento plebiscitário ou quando entendemos a democracia como soberania nacional impermeável a quaisquer obrigações além das nossa fronteiras. Se os populismos resultam tão aceitáveis para sectores cada vez mais amplos da população não é por haver cada vez mais fascistas entre nós, mas sim porque há cada vez mais pessoas que se deixam convencer que a democracia é só isso. Por essa razão, a tais ameaças em nome da democracia, à sua mutilação simplista, só se faz frente com outro conceito de democracia, mais completo, mais complexo.”

É, pois, esta a batalha decisiva. Se abdicarmos de a travar, não poderemos queixarmo-nos senão de nós próprios…

Vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS, membro do Secretariado Nacional do PS