O Professor Carlos Farinha Rodrigues do ISEG é o grande especialista português da desigualdade económica em Portugal e apresentou ontem o seu novo estudo promovido pela FFMS sobre o período crítico de 2009 a 2014 . O tema é hoje um domínio de investigação altamente sofisticado graças à contribuição de décadas de Anthony Atkinson, de quem Carlos Farinha foi discípulo e que já veio a Portugal várias vezes por iniciativa da FFMS, a qual publicara há pouco tempo importante material sobre a questão.

Sofisticada como é, nem por isso o estudo da desigualdade económica deixa de constituir um domínio permeado por toda a sorte de problemas teóricos e metodológicos, bem como filosóficos e políticos, frisando frequentemente o terreno escorregadio do «politicamente correcto». Tratando-se, pois, de uma distribuição que pode ser medida com rigor através do Coeficiente de Gini, essa medição torna-se no entanto delicada – e minada por preconceitos de ordem moral – quando se trata da distribuição de rendimentos entre pessoas (não falando da riqueza, que é ainda outra coisa e não há capacidade de medir com rigor!).

Parecendo, pois, algo de simples e claro, a desigualdade de rendimentos torna-se rapidamente uma fonte de divergências, nomeadamente quando é acompanhada, como acontece no estudo de Carlos Farinha, pela chamada «pobreza relativa», que já mudou de critérios várias vezes. Para mim, o melhor estudo sobre «pobreza relativa», conceito ideológico inquinado de nascença, é do Prémio Nobel Amartya Sen, insuspeito de tolerância à desigualdade.

São, porém, duas coisas muito diferentes. A desigualdade de rendimentos é, em princípio, absoluta e rigorosa. Ora, no período crítico de 2009 a 2014, durante o qual Portugal foi levado à beira da bancarrota, em boa parte por ter sido diminuído bruscamente o índice de desigualdade graças a intervenções assistencialistas sem apoio financeiro na economia real, o país manteve-se depois, com o empréstimo da «troika» e a sua posterior intervenção, durante todo o período de 2011 a 2014, na mesma casa dos 0.34. Ora, no conjunto de países da UE, que se contam entre os países relativamente mais ricos do mundo, um tal Coeficiente de Gini situa Portugal um pouco acima da média europeia (quanto mais baixo, melhor!), entre países como o Reino Unido, a Itália, a Grécia e a Espanha, sendo oito os membros da UE acima de Portugal. Ora, onde queríamos nós que Portugal estivesse, se os Estados Unidos têm um Gini de 0.41 e o Brasil 0.53?!

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Em contrapartida, com o empréstimo internacional e o ajustamento financeiro, Portugal viu o seu PIB reduzido. Mesmo assim, foi dos países intervencionados o segundo que menos perdeu, cerca de 5% do PIB, tendo pois a recessão sido menor do que em Espanha e em Chipre, e muito menor do que na Grécia. Finalmente, a «pobreza relativa» aumentou de 18% para 19,5% da população, podendo subir a 24% se formos mais exigentes ainda quanto à relatividade da pobreza. Exercícios como o chamado «índice de privação» da UE, tirando alguns sinais do período mais agudo da contracção económica, não resistem a uma análise sociológica rigorosa, pois nem a suposta privação alimentar ou de automóveis e electro-domésticos aumentou!

Resta – e não é pouco – a acentuada perda de rendimentos do decil mais baixo da população, o que terá ficado a dever-se, segundo toda a probabilidade, à redução dos mecanismos assistenciais, do tipo RSI, mas sobretudo – e esta será, penso, a maior lição do aturado estudo de Carlos Farinha – dos problemas estruturais da economia e da própria sociedade portuguesa, os quais começam pelo baixíssimo nível comparativo de educação, ligado por sua vez à baixa qualidade e à precariedade do emprego, com a quebra brutal na construção civil e na restauração.

Confirma-se pois que o alto nível de pobreza, relativo ou não, é devido às baixas remunerações e às baixas pensões dos trabalhadores mais velhos do sector privado, bem como ao conservadorismo do sistema fiscal, o qual continua mais baseado no IVA do que no IRS, continuando a carga fiscal a ser baixa comparativamente à europeia. Mesmo assim, observou-se que o aumento da progressividade do imposto de rendimento foi a principal causa da manutenção do mesmo nível de desigualdade no país ao longo do período.

Do mesmo modo, ressalta do estudo que a redução das desigualdades e, sobretudo, da «pobreza relativa» dependerá sobretudo da troca de impostos indirectos sobre o consumo, que afectam proporcionalmente mais os «pobres», por impostos directos sobre o rendimento. A instrução, nomeadamente profissional; a abolição gradual das brutais diferenças entre o emprego privado e o público, o garantido e o precário, apontando para uma convergência dos rendimentos salariais, como Centeno propunha antes de ser ministro; bem como a racionalização fiscal e o aumento da progressividade do IRS; tudo isto no conjunto fará mais pela redução da igualdade e da pobreza do que todos os programas assistencialistas, que só servem para disfarçar a realidade e para reproduzir os bem conhecidos factores de reprodução da pobreza.