O artigo que Maria Filomena Mónica escreveu em resposta ao Padre Gonçalo Portocarrero, a propósito de um texto por este publicado, no qual o autor tecia uma série de considerações acerca do matrimónio e da diferença entre pôr termo a um casamento ou pedir a declaração de nulidade do mesmo, merece alguma reflexão da nossa parte.
Ora vejamos. A socióloga começa por, em comentário à ideia de que a doutrina católica sobre o matrimónio é complexa, dizer que “esta conceção aristocrática é obsoleta, dado que a Igreja inclui, além do Papa, dos cardeais e dos sacerdotes, os fiéis”. Pois claro que a Igreja é composta por todos nós. Mas em que medida é que isso diminui a complexidade da questão? Porventura é por a Igreja ser composta por todos os fiéis que a análise da problemática matrimonial tem de ser despida de considerações teológicas e jurídicas?
Parece-me, aliás, que o problema da Maria Filomena Mónica não é a ignorância acerca de aspetos da doutrina católica, mas a absoluta incapacidade para captar as nuances categoriais ao nível jurídico. Na verdade, qualquer aluno do segundo ano de uma licenciatura em Direito percebe a diferença entre a anulabilidade e a nulidade e entre a invalidade e a resolução de um negócio. Pois bem, Maria Filomena Mónica, é sobretudo disso que se fala, também, a este nível! E, portanto, não tem razão quando imputa ao Vaticano a responsabilidade pela sua incompreensão. Podê-la-ia superar lendo um pouco – leituras simples, refira-se – antes de extrair conclusões precipitadas. O Vaticano não é responsável quanto ao ponto. Ponto.
Como também não é pela sua incapacidade para perceber aspetos teológicos. Se é certo que os sacerdotes sabem mais do que eu, não é menos seguro que ninguém me impede de aceder ao conhecimento pelo facto de ser mulher: alguém devia, em rigor, avisar Maria Filomena Mónica de que há teólogas e que os livros de teologia estão disponíveis para compra ou consulta em bibliotecas. Assim haja vontade e boa-fé. Nem é menos certo que há determinados aspetos da doutrina católica aos quais podemos aceder abrindo-nos à ação do Espírito Santo em nós.
Mas voltemos ao que interessa: ditam as regras que quando se quer contraditar uma posição, para mais sustentada em argumentos racionais, se deve cumprir um ónus de contra-argumentação. Maria Filomena Mónica prefere desferir um ataque ad hominem e insistir que a diferença entre a nulidade e a anulabilidade é uma bizantinice. Curiosamente, a nossa legislação civil (respeite ou não ao matrimónio) está repleta de bizantinices. Se eu lhe tentasse explicar que, para além destas duas hipóteses, um negócio ainda pode ser inexistente e ineficaz, talvez a incompreensão aumentasse. Há vícios que podem determinar que se anule um negócio; há vícios mais graves que geram a nulidade do negócio.
Numa tentativa de redução da complexidade – e portanto correndo o risco de imprecisões que, noutros contextos, seriam inaceitáveis – podemos dizer que se A e B simulam celebrar um contrato de arrendamento, este contrato é nulo, o que significa que ab initio não produziu efeitos (embora, em matéria civil, possa ainda produzir alguns efeitos, razão pela qual se autonomiza uma outra categoria, mais grave, que é a inexistência). Se A e B celebrarem aquele mesmo contrato de arrendamento por A ter uma errada representação da realidade, considera-se que o negócio é anulável, sanção menos grave, que apenas se justifica pela necessidade de compatibilizar a proteção da vontade do declarante com a tutela da confiança do declaratário. Mas se A e B tiverem efetiva e validamente celebrado o contrato de arrendamento e se A deixar de pagar a renda, o contrato pode ser resolvido, ou seja, B pode pôr termo a um negócio que existia. Se transpusermos isto para o casamento, no plano civil, podemos concluir que A e B, casando validamente, pese embora a vocação de perpetuidade que reveste o casamento, se podem divorciar, isto é, podem pôr termo à relação jurídica familiar, mas, ao invés, pode suceder que A e B casem sem que o casamento seja válido.
No plano canónico, o casamento é visto como um sacramento que, por razões teológicas, é indissolúvel. Quem casa casa-se para toda a vida. Simplesmente, para que esse ato de entrega incondicional, absoluta e ilimitada no tempo seja efetivamente um matrimónio, é necessário que se cumpram determinados requisitos. Designadamente (e como nos contratos que se celebram no plano civil) é necessário que haja vontade quando os noivos dizem o sim e se comprometem. Se tal vontade não existia ou estava por algum motivo viciada, a entrega, o compromisso deixam de existir. Não existindo, não há sacramento. O que a Igreja faz é reconhecer – no termo de um processo previsto para o efeito – que o sacramento nunca existiu. Daí falar-se de nulidade do casamento (se a Maria Filomena Mónica preferir e para não se baralhar, poderia falar, em termos não técnico-jurídicos, de declaração de inexistência do matrimónio).
Talvez a Maria Filomena Mónica não precise de jurisconsultos católicos para nada. Bastar-se-ia, porventura, com um jurisconsulto, independentemente do adjetivo que o possa suceder. Talvez tal fosse suficiente para não revelar uma ignorância teimosa em tão grande escala. Já precisa, estou certa, de um sacerdote católico que lhe permita reencontrar-se e aliviá-la de tanta amargura contra a Igreja, revelada nas insinuações infundadas, nas suspeições soezes que profere. Essas sim não merecedoras de qualquer resposta.
Professora da Faculdade de Direito de Coimbra