À saída do cinema um acontecimento muito frequente é: duas pessoas que acabaram de ver o mesmo filme contam uma à outra, e completam-se mutuamente, a história do filme que acabaram de ver. Não é plausível que o façam para se relembrarem de uma coisa que afinal de contas acabaram de ver. E com certeza não procuram assegurar-se de que ambas o viram. O seu esforço cooperativo não parece cumprir um propósito claro.
O nosso entusiasmo pelo filme mostra-se também muitas vezes na vontade que temos de contar a sua história a pessoas que não o viram. Para quem não o viu, porém, ouvir contar a história de um filme é como ouvir contar um sonho alheio: fica com a sensação de que a história interessa a quem a conta; mas só consegue sentir impaciência.
Quem conta a história de um filme é como um caçador que vai à caça com equipamento que comprou numa loja de brinquedos. Parte a correr atrás de um coelho com uma espingarda de madeira, e a fazer barulhos de tiros. Percebe-se que quer apanhar qualquer coisa que lhe interessou; mas o modo como o faz é inadequado. Ao contar a história do filme está apenas a mostrar a intensidade do seu interesse pelo filme; e essa intensidade é muitas vezes comovente. A intensidade alheia porém raras vezes é a nossa; e se for comovente pode sê-lo ainda menos. Perceber um filme não é como caçar um animal ou resolver um problema de palavras cruzadas; não é dizer o que se passa nele, ou explicar o que o filme quer dizer. Perceber um filme é fazer justiça a esse filme.
É um bom princípio, e talvez o único possível, falar dos filmes a partir daquilo que nos interessa; e aquilo que nos interessa é aquilo de que nos lembramos. Como num sonho, podemos até ficar envergonhados por ter reparado em coisas que não parecem ter interesse para mais ninguém. É normal lembrar-nos só de uma côr, de uma cara, de um movimento, da posição de uma pessoa, da luz, de uma música, de duas ou três palavras engraçadas; e mesmo de pormenores da história. Qualquer filme pode ser qualquer dessas coisas; o cinema, a ser alguma coisa, são as coisas de que nos lembramos dos filmes, e as coisas em que reparámos.
Um filme, no entanto, não é bem como um sonho que se teve. Ao contrário do que acontece normalmente com os sonhos, muitas vezes só nos conseguimos lembrar daquilo que vimos algum tempo depois de ver o filme. A regra para fazer justiça a um filme devia ser: enquanto não nos lembrarmos bem daquilo que vimos, o melhor é ficar calado. O cinema nasceu mudo: e nós devíamos sair calados.