Numa véspera de Natal, a avó de uma amiga ia fazer filhoses enroladas. Ninguém na sua família mas saberia ensinar. Temendo que a receita se perdesse para sempre, fiz-me convidada. Uma tarde, porém, não bastou para memorizar o processo, apesar dos meus apontamentos. Fixei que, como um texto ou uma história, a massa deve descansar. Deixámo-la de lado num alguidar por umas horas, envolta num cobertor, ao longo das quais, justificada por excertos da sua autobiografia, ou um coração magoado, amaldiçoou muitas vezes o clero e a vida do campo. Voltei a casa com a certeza absoluta de que jamais saberia voltar a enrolar por mim mesma as tiras de massa no azeite quente, nem sequer com o auxílio de uma espátula comprida de madeira, de que me tornei nesse dia a feliz legatária. Planeei regressar no Natal do ano seguinte, mas não o fiz; e nunca mais o fiz.
Soube no inverno de 2015 que a minha querida professora de filhós já não está em condições de cozinhar. Dentro de alguns anos, tentaremos, quem sabe, recriá-las de cabeça, apenas para falharmos ano após ano; até que, por falta de termo de comparação, esquecido a que sabiam as filhoses originais, a falha se torne perfeita, perfeita sobrevivência — receita de família; talvez de outra família. Noutra tarde, de outro Natal, outra senhora tentara ensinar-me uma outra receita de filhós, segundo a qual cada uma se deve estender e enfarinhar sobre o joelho: feitas com laranja e aguardente, começavam a ser preparadas em Novembro, eram preservadas em caixas de plástico espalhadas pela casa, e distribuídas pela vizinhança. Quis também repeti-las no Natal seguinte, mas não o fiz, e nunca mais o fiz. Muitas vezes, chegamos aos nossos apenas quando deixou de existir cozinha possível onde conversar horas a fio. A esta aproximação diferida, por tentativa e erro, após erro, após erro, a uma memória daquilo que sabiam fazer na perfeição, chamaremos um dia a nossa especialidade.
Tanto do que são os nossos cadernos de receitas irá dar neste género de redespertares tardios e difíceis, como alguém que tenta trautear uma canção de que não consegue lembrar-se. As nossas mesas de Natal estão repletas de simulacros da habilidade e do critério de gosto dos nossos mortos. Numa das casas do nosso Natal, segue-se a receita de sonhos de uma tia solteira, amada e falecida precocemente. Lembro-me da tarde em que ela me convocou a sua casa para experimentarmos uma receita de sonhos herdada, anotada num caderninho almofadado. Estava já doente e não tinha braços para dar a volta à massa; além disso, sabia menos que eu de cozinha. Buscava no entanto em cada bolha de ar as bolhas de ar do tempo em que observara outros fazê-lo, corrigindo-me como uma professora austera. Sonhos segundo o caderno não era bem o que queria. Queria antes as bolhas de ar num alguidar de novo na Baixa da Banheira, onde a enterrámos há tanto tempo. A calda de açúcar que outrora os acompanhava foi substituída em casa por um polvilhado de açúcar e canela. Ainda me sabe a errado. Mas, passados vinte anos, a repetição do erro engendra um primor distinto a que nenhum paladar se afeiçoa com nostalgia. Mais cedo ou mais tarde, estes sonhos errados serão a última migalha de alguém.
Olho para a mesma mesa e vejo o bolo de baunilha de uma matriarca desaparecida. Saem mal os ovos moles, e o bolo resulta seco: símbolo do reconhecimento tácito de que perdê-la tem sido um esforço para engolir por garfadas uma fatia irremediavelmente massuda e indigerível de um bolo que fizemos para a homenagear, mas ficou mal feito. Divorciada há vinte e cinco anos, uma ex-nora informa-me por Skype que, para o almoço de Natal, decidiu fazer este ano um ensopado como o da sogra. O casamento falhou, mas não o ensopado, a não ser no sentido em que falham todos os ensopados de todas as noras. Os nossos mortos não sobrevivem pela mão das melhores cozinheiras da família, mas sobretudo nas tentativas goradas do cozinheiro desastrado em cada um: os erros salientam um pouco a sua ausência. Se prestarmos atenção, as nossas mesas de Natal são este prolongamento dos que partiram: facas de plástico para esventrar queijos da serra, a pressa com que se come o que levou tanto tempo a cozinhar, halos de migalhas da matéria da vida.
E existe depois o nosso almoço de Natal à lareira, algures na Margem Sul, numa saleta roubada a uma varanda a que, a partir das duas e meia em diante, sem hora marcada, vão chegando sucessivas levas de iguarias com origem nos vários ramos da família, decididas de acordo com uma distribuição de tarefas combinada nos dias anteriores, e com a paleta de paladares de cada um dos agregados. De início, os convivas tendem para o que se trouxe da sua própria casa, antes de se aventurarem nas contribuições de primos. A pouco e pouco, as travessas dançam sobre a mesa, entornando um copo. Um cabrito para lá, um fricassé para cá, todos igualmente resfriados pelas viagens mais ou menos longas até àquela vivenda geminada; todos, carnes e arrozes, receitas especiais de todos os dias, habitualmente cozidos demais. Que esteja quase tudo frio, e um pouco espapaçado, ou ressequido, é sinal de ninguém se importar de percorrer uma certa distância em parte em memória daqueles que já não o podem fazer.
As mãos das noras vão-se parecendo-se com as mãos das sogras como as mãos das mães se parecem com as das filhas, com os seus arabescos natalícios na unha do indicador. Cães parecem-se com donos ou esforçamo-nos para que se pareçam: medrosos uns, caniches outros. Antes do almoço, folheio um álbum antigo de um casal amigo da família, há muito desaparecido; faço-o com a ajuda de uma madrinha que vai identificando entusiasmadamente “o par de jarras” que se vê nas fotografias: “olha eu aqui!”, “olha eu aqui!”, “olha nós aqui!”, “esta sou eu”. Mais tarde, cravo ao anfitrião, um tio jardineiro-amador, um jarro do seu jardim para replantar na varanda. Ensina-me que os jarros são uma praga, dando-me a sua receita para o transplantar enquanto examinamos duas raízes tuberculosas, e gabamos um canteiro com vida própria. Ao entardecer, gravo à socapa um fado cantado à mesa como no tempo de um avô poeta, que jamais admitiria que se começasse a almoçar às quatro da tarde no dia de Natal. (Os cabelos branqueando, mas o Tejo é sempre novo…) Saindo por momentos para fumar, revisito os canteiros dominados por uma colecção de plantas abortada, entre motorizadas, bidons de água, gatos vadios e roupa na corda; e compreendo que ‘praga’ (no sentido botânico, e por vezes no bíblico) é um belo sinónimo de ‘família’: que viemos para dominar, destruir, tomar, esgravatar, cavar esta terra.
Mortos os nossos mortos, viramo-nos para as suas receitas e talentos, na esperança de uma ressurreição mimética. Filhos sexagenários, até então desapaixonados da comida insossa da sua mãe, incitam as mulheres a que aprendam a fazê-la. Filhas e netas revezam-se, ano a ano, na tentativa de acertar num pudim molotov que não coube a ninguém por testamento. E cada Natal é este menu de erros, tentativas, aproximações seguidas à risca, fados e atrasos, halos de migalhas, carne seca demais, sonhos engordurados: a pauta adulterada dos anos que precedem o momento em que alguma coisa se torna própria, muito antes de nos esquecermos para sempre do que lhe dera origem. Um dia, o comprazimento associado à receita original (e sabemos lá onde esta começa) é superado pelo comprazimento associado às tentativas de a reproduzir, em que obtemos, sem que o tenhamos procurado, a maravilha nunca antecipada de nos deixarmos para trás como quem deixa cair um lenço do bolso pelo caminho, sem se lembrar de alguma vez o haver perdido. Uma perda não notada, não chorada, não patética. Seguir caminho sem sequer termos ocasião de nos despedirmos de nós e sem lugar à melancolia de haver um antes e um depois, como se a condição de finalmente acertar numa receita fosse a de que aquele que acerta não tenha modo de reconhecer que acertou. A possibilidade de nos deixarmos finalmente para trás é a benesse imerecida contida na execução de um ensopado aldrabado pela falta de ingredientes idênticos a dois mil quilómetros de distância, vinte e cinco anos depois.
Robert Adams escreveu um dia sobre Garry Winogrand que este estava à mesa da mesma maneira que fotografava, “virando-se para todos, tirando prazer da sua companhia e da boa comida”, deixando em redor, ao sair da festa, “um desmazelado anel de migalhas, que dava vontade de sorrir”. Quando os nossos partem, fica também deles, quase sempre, um destes halos de migalhas. No fim da festa, nas mesas descompostas em minutos, a forma dessas migalhas devolve-nos o estilo da nossa ocupação. Mas tal como as receitas não nos trazem de volta as avós, as migalhas não nos reconduzem a ninguém. Procurar ver pessoas nas migalhas parece-se com avistar um poliedro num sonho de Natal. Tentar ressuscitá-las através de receitas assemelha-se a fritar um sonho em forma de esfera. O resultado, no entanto, são sempre estas esponjas disformes, inimitáveis, particulares. Continuámos cá: falhando aos jarros, trocando as jarras, perdendo o paradeiro, esquecendo a receita, enquanto nos especializamos em iguarias que ninguém provou, ninguém guardou, todos conhecem.
Djaimilia Pereira de Almeida estudou Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa. É autora do livro “Esse Cabelo” (Teorema, 2015).