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PATRICIA DE MELO MOREIRA

PATRICIA DE MELO MOREIRA

O Capital segundo Piketty

É o livro do momento. E a polémica que cruza todas as latitudes. "O Capital do Século XXI", do economista francês Thomas Piketty, aqui analisado por Vítor Gaspar.

Está anunciada para outubro a publicação, em Portugal, de O Capital no Século XXI de Thomas Piketty. Ainda antes da publicação, já se nota o seu impacto no debate na esfera pública portuguesa. A edição francesa está disponível desde setembro de 2013 e a edição inglesa saiu em março de 2014. Com essa publicação reacendeu-se um debate global que tem sido de uma intensidade e qualidade raras. Destaco a contribuição de Branko Milanovic, John Cassidy, Paul Krugman, Robert Shiller, Kenneth Rogoff, Ricardo Hausman, Dani Rodrick, Brad de Long, Jeff Frankel, e muitos outros. Em Portugal, foram publicados múltiplos comentários incluindo de dois dos nossos melhores economistas: Ricardo Reis e Luís Cabral.

Le Capital au XXIe siècle
Éditions du Seuil, setembro 2013

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edição inglesa
Capital in the XXI century
translated by Arthur Goldhammer
Harvard University Press, 2014

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O livro tem sido um enorme sucesso de vendas. Há semanas tinha já vendido mais de 50 mil exemplares, na versão francesa, quase 100 mil exemplares, na versão inglesa e a Harvard University Press prevê vendas totais da ordem dos 200 mil exemplares. Um recorde nos mais de cem anos de existência desta prestigiada editora. De que trata o livro? Porquê o sucesso? O que é que eu acho?

De que trata o livro?

As tendências na distribuição do rendimento foram um tema importante para os economistas do século XIX. Para alguns exemplos destacados – David Ricardo e Karl Marx – existia uma tendência para a concentração ilimitada da riqueza, em pequenos grupos privilegiados. Para Ricardo, o rendimento (e a riqueza) ficariam cada vez mais concentrados nos proprietários fundiários. Para Marx, a concentração beneficiaria os capitalistas dado o funcionamento irresistível das leis de acumulação do capital. Naturalmente estas tendências de longo prazo na distribuição de rendimento estariam associadas a profundas dinâmicas sociais e políticas. Esta associação entre os fenómenos económicos, sociais e políticos caracterizava a abordagem de Economia Política prevalecente no século XIX.

Karl Marx também escreveu sobre a desigualdade e é óbvia a tentação de associar a sua obra à de Piketty

Getty Images

Um outro percursor importante de Piketty foi Simon Kuznetz. O seu estudo de 1953, Shares of Upper Groups in Incomes and Savings (A Parte dos Grupos mais Ricos no Rendimento e Poupança) é o primeiro estudo sistemático sobre a distribuição do rendimento ao longo do tempo. Baseia-se nos dados da declaração do imposto sobre o rendimento, introduzido nos EUA em 1913, e em séries longas sobre o rendimento nacional nos EUA. Este tipo de dados não se encontrava disponível para os autores do século XIX. Na sua lição, como presidente da Associação Americana de Economistas, em 1955, apresenta a ideia de que a distribuição do rendimento se tornaria mais assimétrica numa primeira fase de desenvolvimento; em seguida estabilizaria para finalmente, registar uma tendência de diminuição. De um ponto de vista político, a mensagem é clara: se prosseguido com paciência, persistência e determinação o crescimento económico acabará por beneficiar todos.

Piketty está para Kuznetz como este estava para Ricardo e Marx. De facto, está associado ao trabalho de compilação de bases de dados de grande qualidade, nomeadamente referentes a rendimento e riqueza. Sobre rendimento trata-se da World Top Incomes Database. Este projeto é conjunto com Facundo Alvarez, Tony Atkinson e Emmanuel Saez. Piketty, Atkinson e Saez publicaram, em 2011, uma resenha do trabalho no Journal of Economic Literature. A base de dados cobre mais de vinte países e, no caso da França, os dados cobrem o período desde o final do século XVIII. Os dados sobre a evolução histórica da riqueza aparecem no capítulo X.

O “tour de force” do livro prende-se com as forças que levam à concentração da riqueza (e por essa via também do rendimento). Como no caso anterior, o ponto de partida é empírico. O segundo gráfico no livro mostra a evolução do rácio entre a riqueza e o rendimento na Alemanha, França e Reino Unido no período 1870 – 2010. Também esta curva tem uma forma de U.

O tema central do livro aparece logo nos dois gráficos iniciais. O primeiro mostra que a parte do primeiro decil da população nos EUA tem uma forma de U ao longo do período de cem anos entre 1910 a 2010. Este padrão refuta a conjetura de Kuznetz acima referida. A evolução recente tem sido determinada pelo comportamento dos rendimentos mais elevados. A interpretação que o autor favorece é política: os dirigentes empresariais têm frequentemente uma influência determinante na fixação das suas próprias remunerações.

Mas o “tour de force” do livro prende-se com as forças que levam à concentração da riqueza (e por essa via também do rendimento). Como no caso anterior, o ponto de partida é empírico. O segundo gráfico no livro mostra a evolução do rácio entre a riqueza e o rendimento na Alemanha, França e Reino Unido no período 1870 – 2010. Também esta curva tem uma forma de U.

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Piketty sustenta que a evolução recente não é um acidente. Pelo contrário, decorre do resultado de poderosas forças de divergência. Trata-se de um argumento complexo. Em concreto, quando a taxa de remuneração da riqueza (taxa de juro para simplificar) excede a taxa de crescimento do produto nacional, temos as condições que permitem conceber uma sociedade dominada pelos detentores do capital. De facto, nestas condições, basta aos capitalistas poupar uma parcela da sua riqueza para que esta – e o correspondente rendimento – acumulem mais depressa do que cresce o produto. Nestas condições, os patrimónios herdados tenderão a dominar a importância de uma vida inteira de trabalho. E Piketty conclui: uma tal situação mina os valores de justiça social e de recompensa do mérito e do esforço que são os fundamentos contemporâneos da democracia.

Acrescem adicionalmente alguns factos. Em primeiro lugar, Piketty também destaca que a distribuição da riqueza ou património (a que chama capital) é muito mais desigual que a distribuição do rendimento. Para camadas largas da população não existe um património ou riqueza líquida significativa. Em segundo lugar, documenta que desde a antiguidade até hoje a taxa de juro excedeu, em regra, a taxa de crescimento do produto. Os gráficos 9 e 10, do capítulo 10, apresentam a remuneração do capital respetivamente bruta e líquida de imposto para a economia mundial no seu conjunto.

A parte final do livro – a quarta parte – propõe alterações no Estado Social, no imposto progressivo sobre o rendimento e um imposto sobre o património (a nível global).

Thomas Piketty

AFP/Getty Images

Piketty pondera um futuro de baixo crescimento dada a desaceleração demográfica e dos processos de inovação e considera que estão criadas as condições para uma tendência de aumento de desigualdade e da importância do património na distribuição do rendimento. Para ele este é um cenário que deve ser evitado por opção consciente de política.

A parte final do livro – a quarta parte – propõe alterações no Estado Social, no imposto progressivo sobre o rendimento e um imposto sobre o património (a nível global).

Para mim a frase mais inspiradora do livro encerra o capítulo 16: “A informação deve alimentar as instituições orçamentais e democráticas; mas não é um fim em si mesma. Para que a democracia consiga, um dia, recuperar o controlo sobre o capitalismo, é preciso partir do princípio que as formas concretas de democracia e do capital estão ainda e sempre a ser reinventadas.” (tradução do autor desta recensão a partir do original francês, página 940).

“A informação deve alimentar as instituições orçamentais e democráticas; mas não é um fim em si mesma. Para que a democracia consiga, um dia, recuperar o controlo sobre o capitalismo, é preciso partir do princípio que as formas concretas de democracia e do capital estão ainda e sempre a ser reinventadas.”

Porquê o sucesso?

A distribuição do rendimento é um tema sensível e saliente. O contraste entre a riqueza e o rendimento do 1% mais próspero e do resto da população presta-se a uma comunicação política eficaz: “99% contra 1%”. Questões de distribuição são centrais à política. Em períodos de crise, a sensibilidade a estas questões é exacerbada. Existe um natural ressentimento numa sociedade em que os ganhos nos períodos de prosperidade são privados – e beneficiam os mais ricos – enquanto as perdas, na crise, são socializadas – prejudicam os mais pobres. Um sistema político e social que justifica tais perceções é dificilmente sustentável.

O contraste entre a riqueza do 1% mais próspero e do resto da população presta-se a uma comunicação política eficaz: “99% contra 1%”

AFP/Getty Images

Nesta perspetiva, frases como a reproduzida acima, tocam fundo na sensibilidade de um grande número de pessoas. Em alguns casos, estas preocupações estão associadas a tomadas de posição radicais. A ideia de que o sistema político e social garante privilégios indevidos aos mais ricos e mais poderosos é prevalecente. O livro responde de uma forma informada, racional e estruturada a estas ansiedades e preocupações.

Um outro tema fundamental é o da economia de mercado como ordem espontânea. Será a economia e a sociedade de mercado um sistema autorregulado que conduz a equilíbrios com propriedades desejáveis? São as crises, os desequilíbrios, as desigualdades patologias corrigíveis (decorrentes, por exemplo, de desvios face ao paradigma de concorrência perfeita) ou, pelo contrário, consequências do próprio sistema?

Em Economia existe uma longa tradição de argumentos pessimistas (daí a expressão “dismal science”). Poderíamos considerar muitos exemplos. Mas os argumentos mais próximos de Piketty devem-se a Keynes. Keynes argumentou que uma economia de mercado, mesmo em condições ideais de concorrência perfeita não dispõe de mecanismos que garantam a manutenção do pleno emprego.

Será a economia e a sociedade de mercado um sistema autorregulado que conduz a equilíbrios com propriedades desejáveis? São as crises, os desequilíbrios, as desigualdades patologias corrigíveis (decorrentes, por exemplo, de desvios face ao paradigma de concorrência perfeita) ou, pelo contrário, consequências do próprio sistema?

As primeiras linhas, do capítulo 24, da Teoria Geral afirmam que: “Os defeitos mais proeminentes da sociedade económica em que vivemos são a sua incapacidade para assegurar o pleno emprego e a sua arbitrária e iníqua distribuição da riqueza e dos rendimentos.”. E umas páginas depois, ao considerar o possível impacto das ideias defendidas na Teoria Geral, continuou: “No momento presente as pessoas estão à espera de um diagnóstico mais fundamental; mais preparadas para o receber; e ansiosas por o pôr em prática, bastando para tal que seja plausível.”.

Também para o autor francês a diferença entre taxa de juro e taxa de crescimento do produto (r>g), a mais poderosa das forças de divergência, é tanto mais verosímil, quanto “mais perfeito” for o mercado de capitais (página 57). A retórica é poderosa e segue uma tradição distinta. Os tempos não poderiam estar mais próximos do espírito retratado por Keynes.

O que é que eu acho?

Gostei e continuo a ler Piketty – recomendo-o. Sendo assim é claro que tenho imensas opiniões sobre o livro. Demasiadas para o propósito desta recensão. Pelo que me concentrarei em dois aspetos que me parecem fundamentais.

Devemos tender para a versão pessimista de Piketty ou para a versão otimista de Keynes? Eu tendo para Keynes.

Getty Images

Em primeiro lugar a força de divergência fundamental (r>g). O livro reporta séries históricas da antiguidade até hoje que mostram r-g significativamente acima de zero. Esta série é impressionante. No entanto o período coberto pelo “regime capitalista” cobre apenas os últimos 300 ou 350 anos. Neste período verificou-se um forte crescimento económico e populacional. Piketty considera que o abrandamento do crescimento associado conduzirá ao alargamento do hiato entre r e g. Keynes, pelo contrário, pensava que a acumulação de capital tenderia a produzir “the euthanasia of the rentier”. Esta seria positiva, uma vez que permitiria a libertação da sociedade da força opressiva da acumulação de capital. Devemos tender para a versão pessimista de Piketty ou para a versão otimista de Keynes?

Como sou intrinsecamente otimista tendo para Keynes. Penso que se podem encontrar fundamentos para esta atitude no próprio Capital no século XXI. De facto, Piketty destaca logo na Introdução uma série de forças de convergência: a acumulação e transmissão de conhecimentos, a educação, a mobilidade dos fatores de produção e a integração de mercados. Parece-me que, por exemplo na página 56, Piketty reconhece que o resultado da interação das forças de convergência e das forças de divergência é incerto. A ênfase no livro é colocada nas forças de divergência. Estas são intrínsecas ao funcionamento do capitalismo. A difusão de conhecimentos e a formação e educação das populações dependem, de forma decisiva, de escolhas públicas e políticas.

Em tudo o que é humano, social e político a incerteza é dominante. A procura das melhores soluções é uma tarefa de Sísifo. A exigência de certeza, comum no debate público, é inatingível. O Capitalismo no Século XXI não fecha o debate. Pelo contrário. É uma referência incontornável para a continuação do debate.

Mas existe uma questão teórica mais geral. r>g é uma condição comum em modelos teóricos de crescimento. É especificamente condição para a eficiência na afetação de recursos ao longo do tempo. Se não se verificar, então é possível melhorar o bem-estar de todas as gerações diminuindo a taxa de poupança. Repare-se que esta condição se aplica em modelos que geram uma evolução estacionária de todos os rendimentos. Por outras palavras, é possível compatibilizar teoricamente r>g com níveis constantes de desigualdade. Esta linha de argumentação está desenvolvida em dois contributos muito recentes. O primeiro de Per Krusel e Tony Smith, e o segundo de Debraj Ray. Krusel e Smith discutem as dificuldades para o argumento de Piketty decorrentes de casos em que a taxa de crescimento do produto se aproxima de zero. Agradeço a Ricardo Reis ter-me chamado a atenção para estas duas referências.

Em segundo lugar, o livro baseia-se num conjunto de informação impressionante e invulgarmente bem ponderado e documentado. O autor é líder na investigação empírica da distribuição de rendimento e riqueza. Os dados e documentação da informação estão e sempre estiveram disponíveis na internet (ver acima). No início da conclusão escreve: “… as fontes coligidas no quadro deste livro são mais abrangentes do que as dos autores anteriores, mas são imperfeitas e incompletas. Todas as conclusões a que cheguei são por natureza frágeis e merecem ser postas em causa e debatidas. A investigação em ciências sociais não tem vocação para produzir certezas matemáticas que possam substituir-se ao debate público, democrático e contraditório.”

Este ponto parece-me fundamental. Em tudo o que é humano, social e político a incerteza é dominante. A procura das melhores soluções é uma tarefa de Sísifo. A exigência de certeza, comum no debate público, é inatingível. O Capitalismo no Século XXI não fecha o debate. Pelo contrário. É uma referência incontornável para a continuação do debate.

Vítor Gaspar, 2 de Junho de 2014

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