“Olá, eu sou a Ana e como compulsivamente.” Muda o sujeito, mas a frase ouve-se repetidamente. Tantas vezes quantas as pessoas que desejem fazer uma partilha. São cerca de seis minutos em que cada comedor compulsivo pode partilhar com os companheiros as dificuldades ou vitórias da semana que passou. As emoções são evidentes e o maior desejo é aguentar mais 24 horas sem sucumbir ao impulso de comer sem regras.
Ouvir as histórias dos outros ajuda os membros do grupo a perceberem que as dificuldades que sentem são comuns às de outras pessoas. “A história daquelas pessoas era a minha história. Já não me sentia um ET”, conta, ao Observador, João (nome fictício, porque o anonimato é uma das regras do grupo), referindo-se à primeira reunião a que assistiu, quando percebeu que não era o único a sofrer daquele problema.
Já fazia terapia individual em Portugal, com um terapeuta especializado em adições, mas o primeiro encontro desse género a que assistiu foi no Brasil. Estar numa reunião deu-lhe mais força. Por um lado, percebeu que havia pessoas que já tinham estado no “fundo do poço”, como ele, e que estavam a conseguir recuperar. Por outro lado, ficou a conhecer as estratégias que cada um usava para sair do ciclo vicioso.
Peso máximo: 110 quilos
Antes de iniciar o programa tinha atingido o peso mais elevado de sempre – cerca de 110 quilos. As dietas “yo-yo” da adolescência tinham-no feito perder 30 quilos de cada vez, para logo ganhar esses e outros mais. Mas só se apercebeu que tinha chegado ao limite, e que precisava de ajuda, quando tomou consciência do comportamento que tinha nas festas – escondia-se na casa-de-banho para poder comer tudo o que queria sem dar nas vistas. Não só comia muito, como comia muito depressa.
João considera que atingiu o pico da doença quando ainda estava na universidade. Tinha um ritual. Comprava tudo o que era chocolates, bolachas, bolos e refrigerantes no supermercado, mas antes de chegar a casa já tinha comido os chocolates todos. Já em casa, comia até ficar maldisposto. Como ficava cheio de culpa deitava o resto no lixo. “Passado uma hora e meia, já não me sentia tão cheio, já não me sentia com tanta culpa, e ia ao caixote do lixo buscar as coisas para continuar a comer.”
Dar o primeiro passo para sair deste ciclo vicioso – comer, ficar com culpa, diminuir a autoestima, compensar o desânimo com a comida, ficar com culpa, … – passa por admitir que se é impotente perante a comida e que se perdeu o controlo. Para João foi apenas o primeiro passo de um programa de 12. O método Minnesota, como lhe chamam os terapeutas, é utilizado noutros grupos de adictos como Alcoólicos Anónimos ou Narcóticos Anónimos.
Deixar o vício em 12 passos
A reunião das segundas-feiras, que decorre numa sala da Igreja S. João de Deus em Lisboa, espaço pelo qual pagam uma importância simbólica, começa sempre com a leitura desses 12 passos, um guia para a recuperação das pessoas, seguida da leitura das 12 tradições, um conjunto de regras para manter os grupos em funcionamento. Desta vez foi João que coordenou a reunião. A sala já tinha sido arrumada por um companheiro e o chá preparado por outro. As tarefas atribuídas a cada um ajuda-os a sentirem-se úteis e a aumentarem a autoestima.
“Quando a autoestima sobe, a compulsão desce”, afirma João, sobre a forma de quebrar o ciclo vicioso da ingestão desregrada de comida. “Há uma série de passos que permitem começar a lidar com os padrões de comportamento autodestrutivos.” Um deles é assumir que “sozinhos não conseguimos”. Telefonar aos companheiros quando se está com vontade de comer algo que não se quer, ajuda a resistir. Outra opção é o recurso a profissionais como psicólogos ou nutricionistas.
“Normalmente as pessoas chegam aqui porque têm um problema de excesso de peso e depois acabam por descobrir que esse problema é apenas a ponta do iceberg. A parte de lidar com as emoções e os sentimentos e a parte de espiritualidade, que não tem de ser religiosa, é muito importante na nossa vida”, refere João, explicando que a doença assenta em três pilares – a parte física, mais visível, a parte emocional e a espiritual. Mas lembra que o grupo dos comedores compulsivos não tem só pessoas com excesso de peso, também tem anoréticos.
O peso da família
O contexto familiar tem muita influência, tanto para a pessoa se tornar comedor compulsivo como para deixar de o ser. João sempre conheceu a mãe obesa. Não vai ao ponto de afirmar que é uma questão genética, mas ver a mãe comer compulsivamente não lhe deu a devida educação alimentar. “Quando cheguei à escola primária já era o gordo da turma.” Já nessa altura ia às escondidas pôr o dedo nas taças de arroz doce quente.
Alimentos com açúcar são os alimentos gatilho de João, são aqueles que o levam a comer compulsivamente. Sabendo disso, a sobrinha fez-lhe uma mousse de manga sem açúcar numa das festas de família, um dos muitos sinais do apoio dos mais próximos. Mas João sabe que isso não acontece com todos os companheiros. Há casos em que os familiares e amigos insistem com os comedouros compulsivos: “um dia não são dias” ou “só um bocadinho não te vai fazer mal”. Ou, pelo contrário, tornam-se agressivos: “se queres emagrecer fecha a boca”.
A maior parte das pessoas ainda não sabe como lidar com um comedor compulsivo. Para os vícios que não são socialmente aceites, como o consumo de álcool ou drogas, há poucas dúvidas de que deixar de consumir seja a solução. Mas ninguém pode deixar de comer. Além disso, para certos vícios, como o do tabaco, conhecem-se bem os riscos, mas a morte pela comida é silenciosa, aparece camuflada de enfarte ou AVC (acidente vascular cerebral).
João considera que, tal como para outras adições, o risco de compensar o vício que se deixa com outro novo é enorme. Muda o vício, continua a compulsividade. “Mas o risco é tanto menor quanto maior for a espiritualidade desenvolvida com o programa.” No caso deste comedor compulsivo praticar yoga resultou bem, mas poderia ser outro desporto.
“Há pessoas que fazem desporto compulsivamente, tal como há pessoas que trabalham compulsivamente, mas essas são compulsões bem vistas na sociedade. As pessoas que trabalham demasiado, acabam por se tornar bem sucedidas e portanto tem consequências benéficas”, diz João, acrescentando que as pessoas que se exercitam compulsivamente sentem-se bem porque ficam com um corpo mais bonito.
O programa, tal como a vida das pessoas, tem altos e baixos, mas são os princípios do programa que ajudam os comedores compulsivos a enfrentarem as adversidades. “Nos últimos meses ganhei um bocado de peso porque tenho tido algumas complicações na minha vida, mas tenho a certeza que caso não estivesse abstinente dos meus alimentos gatilho, tinha voltado a estar assim”, conta João, enquanto aponta para uma fotografia que o mostra antes de perder quase 20 quilos.
Partilhar receios para diminuir o risco
Antes do final da reunião, cada pessoa tem um minuto para partilhar com os outros aquilo que serão os potenciais perigos e esperanças para a semana seguinte. “Permite às pessoas anteciparem o perigo. Quando o fazem esse perigo diminui muito”, diz João.
Os alimentos gatilho nem sempre são açúcares, também podem ser gorduras, mas o efeito é sempre o mesmo – comer compulsivamente. Deixar esses alimentos pode ser o suficiente para começar a emagrecer, porque a abstinência do alimento gatilho diminui a vontade de comer todos os outros alimentos. Porém, também traz consigo efeitos secundários – a ressaca do vício -, que podem levar 90 dias a ser ultrapassados.
O desejo irresistível de comer açúcar desapareceu em menos tempo para João e, tirando o cansaço, não sofreu com a abstinência. “Esse desejo irresistível passou a ser uma coisa resistível. Já não me preocupa.” Em Agosto completará cinco anos sem consumir a substância de que era adicto. “Já comi açúcar de uma forma perfeitamente irracional. Agora, se pensar que vou estar até ao fim da minha vida sem comer açúcar, não me causa qualquer problema ou constrangimento.” João finaliza: “hoje em dia, sou livre”.