Dizem que é um louco. Um maluco, que faz e diz o impensável. A reputação persegue-o. A alcunha também. Chamam-lhe mesmo assim, El Loco. Razões há muitas. E até alguns mitos. Um deles germinou em 1992, na Argentina, semeado por uma humilhação. O Newell’s Old Boys, clube de Rosario, equipa do coração de Marcelo Bielsa, acabara de perder 6-0 contra o San Lorenzo. O maior rival. Os adeptos não gostaram. Odiaram. E colocaram-se diante da casa do treinador, aos berros, a protestarem. Até que Bielsa abriu a porta e confrontou-os — com uma granada na mão. Eram centenas e todos desataram a fugir.

Histórias há muitas. E, verdade ou não, esta é uma das que embala a reputação de Marcelo Bielsa. O argentino, de 59 anos, que hoje treina o Marselha, líder do campeonato francês, deve tudo ao Newell’s. Louco ou não, foi lá, em Rosario, que nasceu, interessou-se por uma bola de futebol e começou a jogar com ela. Tornou-se futebolista no Newells. E treinador, já agora. Em 1992, no ano do tal episódio da granada, ganharia o Torneo Clausura (na Argentina, o campeonato divide-se em duas edições) e chegaria à final da Copa dos Libertadores. Perdeu-a, nos penáltis, para o São Paulo.

Venceria outros dois campeonatos pelo Newell’s (em 1990 e 1991). Fez história, aí sim. Tanto que, hoje, o estádio do clube tem o seu nome inscrito. E, pelos vistos, a pegada de Bielsa no clube não ficará por aqui — o treinador vai dar mais de 1,5 milhões de euros ao Newell’s. Assim, de livre vontade. Porquê? Para ajudar a erguer um hotel no centro de treinos do clube para os jogadores pernoitarem em estágios ou nos dias antes dos jogos. El Loco, afinal, também é generoso.

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Mas Bielsa pediu uma coisa. “Não quero o meu nome a aparecer em lado nenhum”, terá dito, segundo o Clarín, diário argentino, ao falar sobre a doação com os responsáveis do clube de Rosario. O montante oferecido pelo treinador já terá sido aprovado numa assembleia extraordinária realizada com sócios do Newell’s, e será investida na obra, que já decorre e cujo término está previsto para setembro de 2015. Até agora, os jogadores da equipa ficavam hospedados num hotel que dista vários quilómetros do estádio e centro de treinos do clube.

O novo edifício será “moderno, austero, durável e com baixos custos de manutenção”, conforme Bielsa o pediu. Terá quartos e camas para 36 jogadores e, escreveu o Clarín, concentrará pormenores de todas as instalações onde Marcelo já andou a dar ordens. E não foram poucas: além do Newell’s e Vélez Sarsfield (onde também foi campeão, em 1998), da Argentina, o técnico esteve no Atlas e América, do México, antes de passar pelo Espanyol de Barcelona.

Isto antes de passar seis anos a treinar a seleção argentina (1998-2004) e cinco a fazer o mesmo no Chile (2006-2011). Depois veio a aventura em Bilbao, num Athletic onde só podem jogar bascos e que guiou até à final da Liga Europa e da Copa do Rey. Perderia ambas. Ainda ficaria uma temporada no clube, já depois de se envolver em confrontos físicos com um responsável pelas obras do novo centro de treinos do clube, por não concordar com a forma do projeto. Pronto, aí está El Loco. E ele próprio ajudou a rechear esta reputação.

Quando lhe deram a coroa para reinar sobre o Newell’s, em 1990, Bielsa pegou num mapa da Argentina e dividiu-o em 70 partes. Depois, pegou num Fiat 147, percorreu-as todas e, pelo caminho, ia parando em várias terras e cidades. Em cada uma perguntava quem eram e onde podiam encontrar os miúdos que melhor jogavam à bola. Foi assim, por exemplo, que descobriu em Murphy, a cerca de 300 quilómetros de Rosario, um pibe (criança, em argentino) de 13 anos chamado Mauricio Pochettino, homem que hoje treina o Tottenham, em Inglaterra.

No Chile, quando era o homem do leme da seleção, mandou construir um muro com cinco metros de altura em redor do campo de treinos da equipa. “Não se treina com 100 jovenzinhas a gritarem o nome de um jogador”, chegou a dizer. Nos anos que contou a fazer de selecionador argentino, tocou-lhe levar a equipa ao Mundial de 2002. Correu mal: os albicelestes jogaram pouco, somaram quatro pontos e não passaram da fase de grupos. A Argentina ia para o relvado com três defesas centrais e as críticas multiplicavam-se.

Juan Sebástian Verón, o médio careca que ainda brilhava na altura, recordou uma vez como, no balneário e durante essa Copa, todos falaram do tema. Bielsa, às tantas, pediu aos jogadores que votassem: preferiam jogar com uma linha de três ou de quatro defesas? Todos votaram e Marcelo contabilizou o sufrágio. Ganharam os quatro defesas. No final, disse-lhes: “Bom, isto demonstra qual é o modelo que vocês preferem. Quero-vos anunciar, portanto, que vamos jogar com uma linha de três. Tchau.” Virou as costas e saiu do balneário.

Louco ou não? As histórias sucedem-se. Para Marcelo Bielsa, contudo, a auto-avaliação foi mais simples. Viu-se no primeiro dia em França, quando aterrou no Marselha e se sentou pela primeira vez com dezenas de jornalistas à frente. A pergunta não demorou: porque lhe chamam El Loco? “Pois algumas respostas que escolho não coincidem com as que se escolhem habitualmente”, respondeu. Cada um sabe de si.