Qualquer pessoa pode pedir ajuda à Marinha para deitar ao mar cinzas resultantes de uma cremação. Desde 1999, que um despacho interno da Armada de Guerra estabelece as regras para que uma cerimónia desse género decorra “com dignidade”.

A polémica rebentou esta semana por causa das cinzas do comandante Alpoim Calvão, lançadas ao mar a partir da fragata Corte Real. O BE indignou-se e interrogou o Governo sobre a utilização de meios públicos, questionando ainda o facto de se tratar de uma figura polémica que os bloquistas recordam como “figura chave do movimento bombista” após o 25 de abril.

Segundo confirmou ao Observador fonte oficial da Marinha, um despacho interno de 1999, era chefe do Estado-Maior da Armada o almirante Vieira Matias, diz que todos os capitães de porto, quando receberem um pedido para lançar cinzas ao mar “resultantes de cremação”, devem “garantir a dignidade inerente ao ato e a segurança dos participantes”. A Marinha, contudo, “analisará caso a caso”.

“É uma atitude de cidadania e de colaboração da Marinha com a sociedade”, justifica ao Observador, o almirante Vieira Matias, explicando o que o motivou a dar aquelas instruções em 1999 e que ainda vigoram. “Só espíritos muito tortuosos podem pôr isso em causa”, afirma, acrescentando que a análise “caso a caso” tem a ver com “as capacidades materiais” do momento da Armada.

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Esta ajuda da Marinha pode traduzir-se na presença de um oficial da Armada na praia para a cerimónia de lançamento das cinzas “resultantes de cremação” ou no transporte da urna num navio até alto-mar para aí serem lançadas.

Desde o início do ano, o Porto de Lisboa recebeu cinco pedidos a que deu resposta afirmativa. Foram todos de familiares de militares, mas isso não quer dizer que pedidos de civis não possam ser atendidos. Segundo fonte da Marinha, há vários casos, pelo país, de pessoas que gostavam de velejar ou até de surfistas, que deixaram em testamento a vontade de que as suas cinzas fossem lançadas ao mar. Não há números totais porque o ramo não faz essa contabilização de todos os pedidos que chegam através das capitanias.

Segundo a Marinha, o transporte em navios não representa um custo acrescido pois estes atos são feitos durante missões operacionais, ou seja, são marcados para dias em que está prevista a saída de um navio, por exemplo, para missões de patrulhamento das águas.

“Na verdade, não fazemos divulgação disto porque não é como se fosse um serviço que prestamos. Há uma indicação interna apenas para garantir alguma dignidade”, explicou o porta-voz da Armada, comandante Santos Fernandes, ao Observador.

Figura controversa

No requerimento apresentado na Assembleia da República, o BE perguntou ao ministro da Defesa se teve conhecimento e autorizou a realização, esta quinta-feira, da cerimónia de lançamento ao mar das cinzas do comandante Alpoim Calvão “a bordo de uma embarcação da Marinha e com a presença das maiores figuras” do ramo.

“Não se percebe a que propósito, ou com recurso a que figura institucional, a Marinha portuguesa procedeu a esta cerimónia de homenagem” a bordo de uma fragata e “durante uma missão operacional” do ramo, argumentou a deputada Mariana Aiveca, perguntando: “Teve o ministro [José Pedro Aguiar-Branco] conhecimento da realização” do evento?”, ou seja, “anuiu à realização de uma cerimónia que homenageia, em nome da Marinha portuguesa, uma figura chave do movimento bombista que atacou cidadãos e sedes partidárias na década de 1970?”.

Segundo o BE, trata-se de uma “figura cujos contornos políticos são controversos e divisores na sociedade portuguesa” e a Marinha não cumpriu o dever de “pleno respeito pela neutralidade política”.

Na cerimónia de Alpoim Calvão, participaram familiares e o chefe de Estado-Maior da Armada. A Marinha divulgou antecipadamente a realização do ato e fez mesmo um comunicado a defender a sua posição.

“Marinha é uma organização quase milenar com um sentido de dever e honra, que faz com que preste a mais justa e elementar homenagem a um herói nacional e da Marinha, no seu adeus final. Colocar em questão e utilizar este ato solene para atacar a Marinha é para nós inclassificável. O comandante Alpoim Calvão era um homem com H grande, um português destemido, que em campo de batalha era respeitado pelos seus homens e muito mais pelo inimigo”, lê-se no comunicado divulgado.

“Após o fim da Guerra o Comandante Alpoim Calvão voltou à Guiné onde foi bem recebido por aqueles contra quem havia combatido e que o consideravam um verdadeiro amigo. Foi dos poucos portugueses que investiu na Guiné e nunca abandonou o seu povo. Era um Homem que não se agachava sob o fogo inimigo, um líder nato, um patriota, um marinheiro que muito nos honrou. O Comandante Alpoim Calvão é um herói nacional a quem a Marinha reafirma todo o seu empenho em o distinguir com esta última homenagem”, acrescentou esta quinta-feira a Marinha.

Alpoim Calvão foi o comandante da “operação Mar Verde” na Guiné, em 1970, durante a guerra colonial, e um dos militares com mais condecorações das Forças Armadas, incluindo a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, a do Comportamento Exemplar (a última, atribuída em 2010) e duas cruzes de guerra, entre outras.

Depois da revolução, pediu licença ilimitada nas Forças Armadas. Participou nos preparativos da Maioria Silenciosa (28 de setembro), no 11 de março, fugiu a pé para Espanha e fundou o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP).