O lusodescendente Michael dos Santos foi formalmente identificado pelo Ministério Público francês como um dos carrascos do Estado Islâmico. Abouh Uthman, batizado como Michael dos Santos, tem 22 anos e viveu com os pais na localidade de Champigny-sur-Marne, nos arredores de Paris. As autoridades francesas conseguiram registar “indícios precisos e claros” da identidade do jihadista através do vídeo divulgado pelo Estado Islâmico.

A TVI24 cita o jornal francês Le Figaro e refere que o nome Abouh Uthman já aparecia num inquérito judicial aberto em 2013 para investigar jihadistas franceses que estavam de partida para a Síria. Segundo a mesma estação, as secretas francesas revelaram que Michael dos Santos é apenas um soldado, não tendo “funções de responsabilidade na hierarquia” do EI.

Jean Charles Brisard, um especialista em terrorismo e investigador do Instituto de Estudos Políticos de Estrasburgo, divulgou no Twitter algumas fotografias de Uthman que estão a correr mundo. O lusodescendente, por sua vez, tinha também perfil nesta rede social, onde partilhava ensinamentos do Al Corão e fotografias do terror do Estado Islâmico. A conta do jihadista no twitter (@Abou_Uthman_5) está neste momento suspensa.

O processo de radicalização

Abou Uthman converteu-se ao islamismo em 2009 e saiu de França em 2013. Já em campo, terá sido a mãe de Michael dos Santos que o identificou originalmente no vídeo. O presidente da Câmara de Champigny-sur-Marne referiu mesmo à France 2 que a mãe do jihadista alertou “há algum tempo” as autoridades policiais.

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Segundo um jornalista citado pelo Huffington Post francês, Michael dos Santos cresceu dentro de uma “família portuguesa muito católica, sem problemas, com uma mãe severa”. Na localidade onde vivia os vizinhos de Michael, ouvidos pelo órgão de comunicação francês 20 Minutesdescrevem-no “como uma criança sempre simpática e agradável” e garantem que a família era composta por “ótimas pessoas, que nunca deram problemas no edifício”.

De facto, e segundo conseguiu apurar o Le Monde, Michael dos Santos era um jovem aparentemente normal: estudou pintura na escola profissional Samuel-de-Champlain, em Chennevières-sur-Marne e tinha uma namorada dois anos mais nova do que ele – conheceram-se em 2008 naquela mesma escola. Foi a própria que contou ao jornal francês que Michael era “algo preocupado com o visual e com a moda” e apaixonado por tektonik – um estilo de dança. O agora jihadista terá, inclusivamente, publicado alguns vídeos seus a dançar no Youtube.

É a ex-namorada que explica que Michael começou a tornar-se uma pessoa diferente em 2009: antes um católico praticante começou a converter-se ao islamismo quando estagiou com um “amigo muçulmano moderado”. A partir daí, o jovem lusodescendente “começou a falar cada vez mais sobre o Corão”, até que se deu o momento da rutura: Michael pediu-lhe “para usar o véu islâmico na escola” e a jovem recusou.

Progressivamente, o jovem foi-se afastando da família, chegando mesmo “a recusar-se jantar à mesa com os familiares” – Michael dos Santos preferia “jantar no seu quarto, onde rezava o tempo todo”, por não concordar com os costumes católicos da família, conta a sua ex-namorada. Terão sido aí que começaram os problemas entre o jovem e a sua mãe, que não aceitava a conversão e os novos ideais defendidos por Michael.

O resto da história é conhecido: no verão de 2013, Michael viajou para a Síria e juntou-se às fileiras do Estado Islâmico, aproveitando o facto de a família ter viajado para Portugal, como de resto fazia todos anos, segundo contou a avó do jovem ao mesmo jornal francês. “Ele não nos queria acompanhar, [preferiu] permanecer sozinho em Champigny”. Foi nessa altura que terá viajado para a Síria para juntar-se ao EI.

Champigny-sur-Marne “a capital dos portugueses nos anos 60”

A localidade onde cresceu Michael dos Santos é apontada como a “capital dos portugueses em França nos anos 60”, escreveu Marie-Christine Volovitch-Tavares, especialista em imigração em França.

No início dos anos 60, milhares de portugueses fugiam do Estado Novo e da Guerra do Ultramar e entravam em França pela porta de Champigny-sur-Marne, a 13 quilómetros de Paris, carregados de esperança num futuro melhor. Mas as condições no país de acolhimento não eram as melhores: os portugueses recém-chegados a França concentravam-se em bairros de lata e em favelas, num país que necessitava a todo custo de mão-de-obra – “algumas empresas recrutavam nas próprias favelas”, como recordou a especialista.

Entre 1956 e 1972, terão vivido entre “12 mil e 15 mil trabalhadores portugueses” numa área de 45 hectares e em condições, muitas vezes, pouco dignas. “Os portugueses construíram barracos de lata, cavaram poços ilegais (…) e os comerciantes vendiam comida porta-a-porta”, num período que ficou conhecido pelos “Anos de Lama”, lembrou Marie-Christine Volovitch-Tavares.

Em 1972, o então primeiro-ministro francês Jacques Chaban-Delmas conseguiu desmantelar o enorme bairro de lata, depois de várias tentativas frustradas, oferecendo às famílias de emigrantes portugueses em França novas condições de habitação.

Como reconhecimento das dificuldades vividas pela comunidade, quase 31 anos depois da destruição daquela que foi em tempos a maior favela de França, a comunidade portuguesa naquela região foi homenageada na cidade com um monumento de ferro do escultor Rui Chafes.