No início deste século, quando estava a preparar a adaptação de “O Senhor dos Anéis” para dois filmes, Peter Jackson foi confrontado pelo temível produtor Harvey Weinstein, que o intimou a reduzir tudo a um filme com duas horas. Aliás, dizia Weinstein, que sentido tinha fazer dois filmes quando os livros de Tolkien eram três? E ameaçou mesmo que tiraria o projecto das mãos de Jackson e o passaria para as de John Madden, o autor do recentemente oscarizado “A Paixão de Shakespeare” (estão a imaginar a Terra Média filmada pelo realizador de “A Paixão de Shakespeare?”). Mais tarde, Harvey Weinstein viria a reconhecer que estava redondamente errado, e “O Senhor dos Anéis” acabaria mesmo por ser uma trilogia.
Quando pegou na adaptação de O “Hobbit”, Peter Jackson nem sequer estava a pensar ocupar a cadeira da realização, tendo entregue a tarefa a Guillermo del Toro. A ideia original era fazer dois filmes. Mas del Toro acabou por abandonar o barco em 2010, depois de dois anos de trabalho com Jackson e a sua equipa, devido aos problemas financeiros que então afligiam a MGM, um dos estúdios produtores de “O Hobbit”, e que quase comprometeram não só estes filmes como a série 007. Felizmente, as coisas resolveram-se. Peter Jackson acabou por assumir os deveres de realizador de “O Hobbit”, que foi transformado numa trilogia, porque a MGM, bem como a New Line, queriam capitalizar ao máximo no colossal sucesso planetário de “O Senhor dos Anéis”, e repetir o formato vencedor.
De “O Senhor dos Anéis” a “O Hobbit”
Jackson e as suas co-argumentistas, Fran Walsh (também sua mulher) e Philippa Boyens tiveram que “encher” e “esticar” para três filmes o enredo de um livro para crianças que não tinha nem o tamanho, nem a complexidade narrativa nem a dimensão épica de “O Senhor dos Anéis”. “Puxaram” por personagens que praticamente não aparecem no livro (caso do maléfico Azog), criaram outras (a elfa Tauriel de Evangeline Lily, esta expressamente para “apelar ao público feminino”, segundo o realizador), reforçaram o elenco de personagens com figuras carismáticas de “O Senhor dos Anéis” (o Legolas de Orlando Bloom, por exemplo), conceberam várias novas situações para dar mais corpo ao o enredo e recorreram extensamente aos apêndices histórico-cronológicos de “O Regresso do Rei”.
“Trailer” de “O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos”
Houve quem resmungasse e protestasse por causa de todas estas liberdades – há sempre – mas nós, os doentinhos da Terra Média, os tolkienianos com carteira de sócio vitalício, não nos importámos. Porque Peter Jackson é um de nós, um fã, um apaixonado do universo criado por J.R.R. Tolkien que o conseguiu passar para a tela melhor e mais detalhada, empolgante e jubilatoriamente do que qualquer outro cineasta. Para ele, filmar “O Senhor dos Anéis” e “O Hobbit” não é uma corveia bem remunerada com objectivos mera e baixamente comerciais, uma missão cumprida com os olhos da bilheteira: é primeiro e acima de tudo um trabalho de amor, que lhe consumiu quase 15 anos de vida.
Em “O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos”, Jackson chega – e nós com ele – ao final de uma longa jornada cinematográfica em que inscreveu para a posteridade , e em letras de ouro, o nome de J.R.R. Tolkien nos anais do cinema, revolucionou os filmes de “heroic fantasy”, criou uma série de fitas multimilionárias que conquistaram Óscares e contribuiu para o progresso da tecnologia dos efeitos especiais digitais, nomeadamente do processo de “motion capture”.
Entrevista com Peter Jackson
E a série “O Hobbit” termina mesmo quando já se sentia que Jackson e companhia tinham chegado ao limite da corda que estavam a esticar. Basta ver que a batalha do título, onde se enfrentam, de um lado, homens, elfos e anões, e do outro, orcs e wargs, ocupa meia-dúzia de páginas no livro, e no filme é o “bifinho do lombo”, fornecendo ainda confrontos paralelos mais personalizados, como aquele – magnificamente filmado por Jackson numa torre coberta de neve e gelo – entre Azog e Thorin, ou o que opõe um Legolas que chega a desafiar a gravidade a Bolg, o filho de Azog, que é ainda mais feio e grunho do que o pai.
Entrevista com Martin Freeman
Não tendo a escala ou o fôlego da batalha de Helm’s Deep de “O Senhor dos Anéis”, a batalha que faz o título deste derradeiro tomo cinematográfico de “O Hobbit” é, mesmo assim, de meter respeito, e Peter Jackson aproveita-a para passear mais uma vez a sua mestria na filmagem da acção física, seja colectiva, seja individual, e para a inscrever numa paisagem de que tira o máximo de sumo dramático e visual.
De resto, o incendiário Smaug sai de cena com uma morte aquática e faz Bard entrar para a lenda da Terra Média. Thorin, num sinistro embalo de fumos shakespeareanos, quase estraga tudo ao deixar-se possuír pela “doença do ouro do dragão” mas depois redime-se de espada na mão. Bilbo continua a ser um reservatório de sensatez. Gandalf não está em cena tanto tempo quanto desejaríamos, descobrimos que o rei dos anões (um turbulento Billy Connolly) tem sotaque escocês cerrado e tudo fica resolvido com muito choque de aço e muito desabar de muralhas, abundante heroísmo, vários sacrifícios e algumas lágrimas.
Entrevista com Sir Ian McKellen
Uma vez enterrados, chorados e celebrados os mortos, feitas todas as despedidas, consumadas todas as separações e tendo regressado a casa quem tinha de regressar, Peter Jackson remata “O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos” com um toque de melancolia e uma elipse sorridente que proporciona um reencontro entre velhos amigos e fecha o círculo desta trilogia apontando-a para a de “O Senhor Dos Anéis”.
É o último adeus de Peter Jackson, e também o nosso, à Terra Média e a Tolkien. (A menos que um dia destes lhe dê para filmar “O Silmarillion”…).