Das duas, uma: ou a montanha pariu uma formiga, ou então nunca foi montanha nenhuma. De um “best-seller” com vendas mundiais na casa dos 100 milhões de exemplares, supostamente “escandaloso” e “ousado”, sobre uma relação sadomasoquista (SM) e de dominação e submissão entre Christian, um jovem e solitário multimilionário, e Anastasia, uma tímida universitária, os autores de “As Cinquenta Sombras de Grey” conseguiram a proeza de fazer um filme tão erótico como o presidente Robert Mugabe a tomar duche, tão excitante como ver uma parede pintada de fresco a secar, tão “perigoso” como um chihauhua recém-nascido e tão “trangressor” como uma velhota a atravessar uma rua um centímetro ao lado da passadeira de peões.
A realizadora Sam Taylor-Johnson nunca deve ter visto, ou sequer ouvido falar, de filmes de autêntica ambiência SM como “História de O”, de Justin Jaeckin, “A Dama do Prazer”, de Barbet Schroeder ou “Os Frutos da Paixão”, de Shuji Terayama. Ou teria trazido para o seu filme tudo o que estes têm aos molhos e falta a “As Cinquenta Sombras de Grey”: o sentido do risco, do perigo, da transgressão, do desconforto, da vertigem, e um ponto de vista sobre o porquê do prazer que alguns tiram da dor e da submissão sexual e sobre como a paixão se pode manifestar de tão estranha e arrevezada maneira. É que “As Cinquenta Sombras de Grey” é um filme tão titilante como “A Canção de Bernardette”. Não consegue sequer ser “sexy”, fica-se por ser chacha. É mais “soft” do que aqueles amaciadores para a roupa que anunciam na televisão.
“Trailer” de “As Cinquenta Sombras de Grey”
Mais: além de praticar o SM seguro, a fita rodeia-o de burocracia cautelar. Christian propõe a Anastasia um contrato dominador/submissa que parece ter sido elaborado por uma qualquer cuidadosíssima, zelosíssima, sexualmente correctíssima Entidade Para a Regulação das Relações Sadomasoquistas, que monitoriza absolutamente tudo, da mais pequena palmada no rabiosque aos brinquedos sexuais que podem ou não ser utilizados. Mais coca-bichinhos que isto, só mesmo negociar a instalação de uma empresa privada na Coreia do Norte. A certa altura, estava mesmo à espera de ver uma porta abrir-se no escritório de Christian Grey e aparecer o Dr. Marinho e Pinto a fazer um comentário jurídico.
Eis aquilo a que “As Cinquenta Sombras de Grey” reduz o que deveria ser uma relação dominada pelo inesperado, pelo risco, pela entrega, pelo salto no abismo: ao fornecimento de um serviço minuciosamente contratualizado e com assinaturas reconhecidas pelo notário. Ou tratar-se-á de um novo desvio sexual inventado pela autora do livro, E.L. James, um prazer perverso associado à manipulação de papelada? Serão as repartições públicas ninhos de tarados e nós não o sabíamos? Certo é que se o ridículo pagasse imposto, “As Cinquenta Sombras de Grey” era o filme mais sobretaxado de 2015 e tinha que ir pedir uma intervenção da Troika para pagar.
Entrevista com Jamie Dornan
Entrevista com Dakota Johnson
Escrito por alguém sem ouvido para o que devem ser diálogos cinematográficos minimamente verosímeis, filmado por Sam Taylor-Johnson como se estivesse a fazer um daqueles programas televisivos do género “Estilos de Vida dos Ricos e Famosos” ou um portfólio por imagens para a “Architectural Digest” ou a “Condé Nast Traveller”, “As Cinquenta Sombras de Grey” conta, nos papéis principais, com dois podõezinhos que respondem pelos nomes de Jamie Dorner e Dakota Johnson (filha de Melanie Griffith e neta da “hitchcockiana” Tippi Hedren). Ele tem todas as capacidades expressivas de um radiador a óleo e iria mal até num anúncio ao WC Pato. Ela é um tamanho pãozinho sem sal, que mesmo um daqueles exibicionistas que andam nos jardins a mostrar as partes íntimas às senhoras não se daria ao trabalho de abrir a gabardina. Dado tratar-se de uma trilogia, teremos ainda que sofrer mais dois filmes de “As Cinquenta Sombras de Grey”. Isso sim, é que é tortura a sério, sadomasoquismo do pesado.