Encontrámos Leonardo Padura momentos antes da apresentação de Hereges em Lisboa, no Instituto Cervantes — fumava um cigarro cubano. “Trouxe um carregamento para todo o mês”, disse o escritor, que só fuma cigarros produzidos no seu país, tal e qual o personagem Mario Conde, que o autor de O Homem que Gostava de Cães recuperou para o romance publicado em Portugal pela Porto Editora. Hereges, que tem como ponto de partida a história verídica do transatlântico S.S. Saint Louis, que em 1939 foi impedido de desembarcar 900 judeus em Havana, fugidos do regime nazi, foi o ponto de partida para uma conversa. Que passou, inevitavelmente, pelo estado do regime socialista cubano e pelo reatar das relações com os Estados Unidos da América.

Para além de só fumar cigarros cubanos, o escritor que está prestes a completar 60 anos também sempre viveu na capital, Havana. Mais uma característica que partilha com o detetive Mario Conde. “É um alter ego de Padura”, comentou Manuel António Valente, que até hoje foi o responsável por trazer todas as obras do escritor para Portugal. Mas as diferenças entre criador e personagem também são muitas. Desta vez, o emblemático detetive de Hereges tem como missão ajudar a resolver um mistério a pedido de Elías Kaminsky, descendente de uma família judia que viajava no navio que nem Cuba, nem os Estados Unidos, nem o Canadá aceitaram, condenando mais de 900 judeus a regressarem à Europa e à ameaça de Hitler. Alguns dos passageiros morreram nos campos de concentração.

Padura diz que já não é jornalista, mas continua a fazer jornalismo de forma muito ativa. E a ter um discurso livre. Desde 1995 que colabora com várias agências de notícias, incluindo a russa RIA Novosti, com a BBC, o diário espanhol El País e tem ainda uma coluna fixa no jornal brasileiro Folha de S. Paulo. Desde 17 de dezembro de 2014 que não lhe tem faltado trabalho, graças ao anúncio histórico por parte do presidente americano Barack Obama de que Estados Unidos e Cuba iriam retomar relações e terminar o embargo de quase 60 anos. Se o regime socialista cubano cair, admite que há um livro interrompido na gaveta que vai poder finalmente escrever.

Hoje utiliza-se a palavra “herege” com uma conotação negativa. Mas começa o livro com a definição da palavra: “Pessoa que nega algum dos dogmas estabelecidos por uma religião; pessoa que diverge ou se afasta da linha oficial de opinião seguida por uma instituição (…)”. Andamos a empregá-la bem?

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Creio que sempre teve uma conotação negativa e essa carga negativa deve-se, sobretudo, na cultura ocidental, ao cristianismo, que sempre classificou o herege como um pecador, alguém que renegava a existência de Deus. O teor negativo da palavra manteve-se, mas o herege não tem por que ser uma pessoa que comete atos reprováveis, negativos para a sociedade. Um herege é alguém que não pensa igual ao dogma e eu creio que, mais negativo do que a heresia é o dogmatismo. Há que dar espaço a quem pensa de forma diferente, desde que o pensamento dessa pessoa não se converta numa ação que prejudique outras.

Considera-se um herege?

Não. Um heterodoxo. Sou uma pessoa que se nega a aceitar a ortodoxia porque creio que, de alguma forma, conduz o pensamento num só sentido e eu gosto de manter o pensamento o mais aberto possível.

Hereges é mais um romance histórico ou um policial?

É tanto um romance histórico como um romance policial e um romance de tese filosófica. É um romance herege [risos], porque é um livro que utiliza cada um destes géneros sem ortodoxia, vou buscando os elementos que me podem ser úteis para escrever um romance com intriga policial, investigação histórica, com uma tese filosófica que tem de ver com o direito do indivíduo à sua liberdade individual. Tudo no mesmo livro.

E para a fatia policial trouxe de volta Mario Conde.

Claro. Tinha uma história e uma pessoa perdidas e não conheço ninguém melhor para encontrar histórias e pessoas do que Mario Conde!

Para escrever Hereges teve de fazer uma longa investigação. Mais longa do que para criar O Homem que Gostava de Cães?

Foi diferente, no sentido em que n’O Homem que Gostava de Cães tinha de preencher lacunas históricas para poder entender todo o processo. Aqui tinha de atravessar todo um deserto porque só conhecia a cultura e a religião judaicas muito superficialmente. Conhecia só o que todos conhecem. Tinha lido vários romancistas judeus de que gosto muito, como Philip Roth, tinha visto filmes, li passagens da Bíblia, mas não era um conhecedor, até porque a cultura e a religião judaicas são muito complexas e infinitas. Estamos a falar de uma cultura que tem quatro mil anos. Por outro lado, do mundo de Rembrandt, Amesterdão do século XVII, também só conhecia o elementar, tive de estudar bastante para ter algum domínio sobre a história desta cidade onde os personagens se chegam a mover, e sobretudo para entender a arte de Rembrandt.

Esteve em Amesterdão?

Estive, em duas ocasiões. Fui à casa de Rembrandt, passei lá muito tempo, filmei o espaço, gravei comentários para mim do que ia vendo e sentindo, mas também tive de estudar muito a pintura de Rembrandt. Para isso tive a ajuda de um pintor cubano, e amigo próximo, Arturo Montoto, um dos mais importantes e interessantes pintores cubanos contemporâneos. Rembrandt é um dos pintores mais importantes da história da Humanidade e entendê-lo é bastante difícil.

A história do transatlântico S.S. Saint Louis é conhecida da sociedade cubana?

Muito superficialmente. Nos últimos 15 anos publicaram-se alguns comentários na imprensa e pouco mais. É um episódio que está fora da história oficial cubana, então tive de procurar bibliografia sobretudo fora de Cuba. Estados Unidos, sobretudo. Vários investigadores judeus escreveram vários livros, inclusive há um filme dos anos 70, que se chama A Viagem dos Malditos, que também me ajudou muito a ter uma imagem do que se tinha passado ali.

Passam agora 70 anos sobre o fim da Segunda Guerra Mundial. Como vê a situação atual dos judeus numa Europa afetada pela crise económica, por fenómenos nacionalistas e pela ameaça do Estado Islâmico? Ainda há duas semanas, na sequência dos atentados de Copenhaga, Benjamin Netanyahu convidou todos os judeus europeus a irem viver para Israel, alertando para o perigo do antissemitismo.

Isso é complicadíssimo. Creio que, neste momento, a situação dos judeus é completamente diferente ao que era há 70 anos. Têm um Estado, Israel, que inclusivamente já mostrou que pode ser bastante agressivo, como demonstrou no ano passado aquando do conflito na Faixa de Gaza, e com os colonatos que se têm alargado. Não é uma comunidade indefesa, é também um país que tem um potencial militar. E creio que o Estado Islâmico é uma ameaça global, não só para os judeus. Ameaça até os próprios árabes e muçulmanos. As suas primeiras vítimas são pessoas que pertencem ao mundo árabe, mas que apenas por pensarem de maneira diferente são considerados hereges.

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“Hereges” foi publicado este mês pela Porto Editora. Tem 544 páginas e custa 18,80€. © Lara Soares Silva

Esteve nas Correntes de Escrita, na Póvoa de Varzim [26 de fevereiro], e disse que, após quase 60 anos de socialismo em Cuba, se está a desenvolver uma classe “branca e loira”. Como justifica o fenómeno?

Creio que o problema social e económico do negro ainda não se resolveu, nem se irá resolver a curto prazo. Nos anos 70, na época em que estudei na universidade, um grande número de pessoas negras chegaram a fazer estudos universitários. Eu e a minha esposa temos muitos conhecidos negros que são, por exemplo, médicos. Fomos a primeira geração que entrou massivamente na universidade e com ela, naturalmente, também os negros, porque em Cuba não existe discriminação racial. Mas social e até geograficamente os negros continuam a estar pior colocados do que os brancos. Nos melhores bairros de Havana viviam e continuam a viver maioritariamente pessoas brancas, enquanto nos bairros mais desfavorecidos vivem maioritariamente pessoas negras. Além disso, a maior fatia da emigração cubana para os Estados Unidos foi branca, o que lhes permitiu, pela localização geográfica e a posição económica, ter neste momento, em Cuba, acesso a possibilidades de desenvolvimento económico mais dinâmico que o das pessoas de cor negra. É difícil resolver o problema também porque trata-se de uma herança de 200 anos de marginalização, de piores condições de vida, de menos oportunidades.

Infelizmente é um problema em várias partes do mundo.

Sim, é verdade, mas em Cuba não devia sê-lo desta maneira. Creio que a crise dos anos 1990 foi um momento decisivo que cortou o desenvolvimento económico cubano e, a partir daí, começou a criar-se uma separação social em Cuba entre pessoas com mais possibilidades e pessoas com menos possibilidades económicas. E entre as de menos possibilidades estão muitas vezes os negros.

Como vê a aproximação entre os Estados Unidos e Cuba?

Muito positivamente. Houve uma reunião há três dias [27 de fevereiro], mas ainda não consegui ver nenhuma notícia por falta de tempo. Suponho que estas conversações tenham sido um desenvolvimento das que já começaram há um mês e que se esteja a avançar num processo que vai ser longo e complexo, porque trata-se de dois países que estiveram distanciados e que foram inimigos durante mais de 50 anos, com sistemas políticos e conceitos de sociedade diferentes. Vai ser preciso muito trabalho para fazer com que estas relações se tornem normais. Mas pelo menos, se não forem agressivas, já é uma grande vitória.

Previu esta aproximação, ou foi apanhado de surpresa?

Foi uma surpresa absoluta! A ideia que tínhamos era diferente, pensávamos que o processo ia começar com uma abolição progressiva do embargo. O que aconteceu foi logo o anúncio do restabelecimento das relações. Nos três ou quatro meses anteriores ao anúncio tinham aparecido uma série de editoriais no New York Times, bem como o livro de memórias de Hillary Clinton, tinha ido a Cuba um grupo de empresários e alguns políticos norte-americanos e o que se sabia era que havia algo a mover-se. Mas era do embargo que se falava sempre. Hillary Clinton já tinha dito a Obama para fazer os possíveis para levantar o embargo porque não tinha funcionado. Mas ninguém falava nas relações, por isso foi tão surpreendente.

Teme mudanças grandes em Cuba, quer políticas, quer económicas, quer culturais?

Não creio que haja, a curto prazo, uma grande mudança. Creio que haverá mudanças, é inevitável, tanto mais que uma sociedade que não muda fica estagnada. E quando uma sociedade estagna, retrocede. Por isso espero que haja mudanças progressivas que ajudem a mudar a sociedade cubana. E que essas alterações contribuam, sobretudo, para melhorar a vida das pessoas, que foi muito difícil durante muito tempo.

Podemos estar perante o fim do socialismo em Cuba?

Não sei, não sei. Pode ser! Podemos assistir a muitas coisas, por exemplo, se o Podemos ganha as eleições em Espanha, dentro de dois anos o país pode ser declarado República Socialista de Espanha. Ou seja, no futuro, podemos assistir a muitas coisas que não sabemos.

Viveu sempre em Havana?

Sim. Mas viajo com bastante frequência. Ah, vivi um ano em Angola, como jornalista, entre 1985 e 1986, quando havia guerra. Sabia falar português, mas esqueci. Aprendi italiano e já não sei falar português.

Já há novidades em relação ao próximo livro?

Sim, comecei a escrever um romance precisamente no dia 17 de dezembro, mas tive de parar para ser jornalista outra vez, por causa do anúncio das conversações entre Cuba e os Estados Unidos. E porque estou a trabalhar com a minha mulher, Lucía, em quatro guiões dos meus quatro primeiro romances de Mario Conde, para adaptar a cinema e televisão. Tem produção espanhola e alemã, realizadores espanhóis e atores cubanos.

O novo livro centra-se em algum período histórico específico?

Pouco. Vai decorrer num momento da Guerra Civil espanhola, em que sai de Espanha um objeto que vai chegar a Cuba e que vai desencadear a história do presente que ali vou contar.

Com Mario Conde?

Com Mario Conde.

Imaginemos que o regime socialista cubano cai. Há alguma coisa que gostasse de escrever e que nunca tenha podido antes?

Há um romance que comecei a escrever mas que não terminei e que em algum momento o irei fazer. Tem a ver com o momento em que a revolução triunfa em Cuba e como, para um grupo de pessoas, isto significa também uma revolução nas suas vidas. Revolução no sentido de dar uma volta completa, e o triunfo da revolução significou uma mudança total na vida de muitas pessoas. Tenho uma história de um grupo de amigos que estão reunidos a 31 de dezembro e 1 de janeiro [o ditador Fulgencio Batista foi deposto a 1 de janeiro de 1959] e cujas vidas mudam por completo. Quero escrevê-lo um dia.