Os primeiros anos de António Costa à frente dos destinos da Câmara Municipal de Lisboa não foram fáceis: o executivo fora dissolvido na sequência do processo Bragaparques e depois de Carmona Rodrigues ter sido constituído arguido no processo; Costa ganhara as eleições intercalares com 29,5% dos votos – uma margem curta que o obrigou a fazer um acordo pós-eleitoral; e recebera da dupla Santana-Carmona uma herança “catastrófica”, de “incúria, incompetência e irresponsabilidade”, como várias vezes fez questão de repetir nas acesas discussões na Assembleia Municipal. Agora, quase oito anos depois, que herança deixará o secretário-geral do PS ao sucessor e seu braço-direito, Fernando Medina?

Redução da dívida de Lisboa: gestão rigorosa de Costa ou mãozinha do Governo?

Na terça-feira, no dia em que anunciou que renunciaria à Câmara de Lisboa, António Costa deixou a certeza que a “casa” estava “arrumada”, com um “quadro financeiro sustentado numa gestão de rigor e numa ambição realista”. Antes, no discurso de encerramento do encontro nacional de autarcas socialistas, a 28 de fevereiro, já Costa tinha puxado dos seus pergaminhos de bom gestor para atacar Pedro Passos Coelho: “Eu reduzi a dívida que herdei em 40%, o senhor primeiro-ministro aumentou em 18% a dívida que herdou. Esta é a diferença entre quem gere bem e quem gere mal”, defendeu no discurso de encerramento do encontro nacional de autarcas socialistas.

Os números parecem dar-lhe razão: entre 2007 e 2014, a Câmara de Lisboa protagonizou uma redução da dívida total de 965 milhões de euros para 439 milhões. Mais: conseguiu também reduzir os prazos médios de pagamento a fornecedores de 335 dias em 2007 para 72 dias em 2014.

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Ainda assim, a questão da redução da dívida da autarquia lisboeta nunca foi consensual. Se António Cosa fez várias vezes questão de colher os louros por ter posto as contas da Câmara em ordem, a oposição preferiu desvalorizar e acenar com o negócio da venda dos terrenos do aeroporto da Portela – um acordo que permitiu à autarquia encaixar 286 milhões de euros e reduzir a dívida em 43% -, lembrando Costa que sem esse trunfo as finanças não seriam tão risonhas. Este acordo permitiu também libertar a Câmara de 22 milhões de euros de juros anuais.

Contas feitas, descontado o montante arrecadado neste negócio, Costa conseguiu mesmo assim reduzir a dívida herdada em quase 131 milhões de euros.

Receitas e despesa: duas faces da mesma moeda

O agora secretário-geral do PS recebeu uma Câmara que registava em 2007 números preocupantes. A autarquia conseguira, nesse ano, uma receita total de 588 milhões de euros, mas a rubrica da despesa fazia disparar os alarmes – ascendia aos 633 milhões. E, aqui chegados, novo desempenho positivo de António Costa: o líder socialista deixa a Câmara com receitas totais na ordem dos 623 milhões e com uma despesa total que se manteve perto do valor inicial – 640 milhões de euros.

Escrutinando os dados, é possível perceber que a grande parte da redução da despesa foi feita a partir de uma diminuição dos encargos com pessoal: de 243 milhões de euros em 2007, a Câmara passou a gastar 217 milhões. Uma redução significativa à qual, no entanto, não pode ser retirada a diminuição do número de trabalhadores ao serviço da autarquia: em 2007, eram 10.809 funcionários; já em 2014, a autarquia passou a ter 7.720 trabalhadores.

Do lado da receita, destaque para o valor captado através dos impostos municipais: cerca de 364 milhões de euros. Um valor ligeiramente superior ao registado em 2007, altura em que a autarquia encaixava em impostos 321 milhões. Em sentido inverso, a câmara lisboeta passou a captar menos em taxas, multas e outros impostos: de 63 milhões no primeiro meio ano de Costa, a Câmara passou a arrecadar 55 milhões em 2014.

“A situação financeira da câmara é sólida, mas comporta riscos”

António Costa já tinha deixado o aviso em 2013 e no ano passado Fernando Medina voltou a fazer eco das preocupações do executivo camarário: a receita estrutural, aquela que corresponde aos recursos regulares, estáveis e renováveis anualmente do município, está em queda desde 2010. Segundo as estimativas da autarquia, só nos últimos quatro anos, o município perdeu 154 milhões de euros em receitas estruturais. Na altura, a equipa liderada por António Costa justificou esta redução sobretudo, com o ciclo económico menos positivo que o país atravessava e com a redução da derrama e do IMT [Imposto Municipal sobre as Transmissões onerosas de imóveis].

De resto, a decisão do Governo de extinguir o IMT, que custará à Câmara 60 milhões de euros por ano, mereceu duras críticas por parte do agora líder do Partido Socialista: Costa acusou o Executivo de ter agido “sem qualquer audição prévia dos municípios e sem contrapartidas”. Já Fernando Medina foi mais longe e classificou a medida como “uma péssima decisão” que deveria ser revertida “já no próximo Orçamento do Estado”.

As taxas e as vendas

Face a este cenário, e para ajudar a equilibrar as contas, António Costa apostou, sobretudo, em duas frentes: o aumento de algumas taxas, com destaque para a criação da taxa aeroportuária que tanto deu (e ) que falar, e a alienação de património camarário. Se a taxa turística, entretanto assumida pela ANA – Aeroportos de Portugal, vai gerar entre 3,6 e 4,4 milhões de euros, a venda de ativos também se tem revelado um negócio lucrativo para a Câmara lisboeta: apesar da previsão inicial (22,9 milhões de euros) o município arrancou o ano de 2015 com uma receita extra de 50 milhões de euros relativos a vendas de património realizadas no ano passado. E, a concretizar-se a venda dos terrenos da antiga Feira Popular, o montante pode “duplicar”, como fez questão de lembrar Fernando Medina. Os terrenos estão avaliados em cerca de 100 milhões de euros.

Mas existem outras joias da coroa na lista de alienações. Depois de ter vendido em 2009 o Palácio Braamcamp por 2,413 milhões de euros, a autarquia lisboeta foi a leilão e conseguiu 5,48 milhões com o Palácio do Marquês de Tancos e cerca de 3 milhões com o Palácio de Monte Real, por exemplo. Leilão, esse, que permitiu à Câmara de Lisboa arrecadar 21,6 milhões de euros em vendas de terrenos e edifícios. Na proposta de orçamento municipal para 2014, a autarquia previa arrecadar 131 milhões de euros com venda de património, embora ainda não sejam conhecidos os dados oficiais relativos ao ano interior.

Esta foi a solução encontrada por António Costa “para não cortar no investimento nem nos apoios culturais e sociais e não aumentar o IRS nem o IMI [Imposto Municipal sobre Imóveis]” e para contrariar o “violentíssimo corte” na receita que o município vem sentindo ao longo dos últimos anos, disse na altura.

Uma versão que parece nunca ter convencido a oposição. Na discussão do orçamento municipal para 2015, Fernando Medina, garantiu que Lisboa tinha “os impostos mais baixos de toda a Área Metropolitana de Lisboa”, naquilo que considerou ser uma “política de enorme importância para as famílias”. No entanto, os deputados municipais da oposição acusam a câmara de, ao mesmo tempo que mantém os valores do IMI e do IRS baixos, sobrecarregar os lisboetas com a criação das novas taxas e de estar a promover um aumento de encargos na ordem dos 107 milhões de euros.

Passivo herdado, passivo deixado 

António Costa recebeu das mãos de Carmona Rodrigues um passivo de 1.380 milhões de euros. No fim de quase oito anos e de três mandatos, o líder socialista deixa ao seu sucessor um passivo de 1.420 milhões de euros, um ligeiro aumento face a 2007.

Uma herança, de resto, assumida por Fernando Medina e justificada pelo “aumento das provisões para processos judiciais” e outros processos como a assunção da dívida da Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL) (22,5 milhões); 22,8 milhões que eram devidos à 22,8 milhões que eram devidos à Parque Expo; 5,7 milhões relativos a um empréstimo da Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) Lisboa Ocidental; e 17,8 milhões referentes à aquisição da Estamo do Convento do Desagravo.

Por falar em herança, Fernando Medina terá a difícil missão de gerir o “dossier Bragaparques”. Em janeiro de 2014, a Câmara de Lisboa chegou a acordo com a empresa de construção para a aquisição dos terrenos da antiga Feira Popular e do Parque Mayer por 101,67 milhões de euros, desde que ambas as partes desistissem das ações judiciais. No entanto, a Bragaparques fez entrar a 30 de outubro, num tribunal arbitral, uma petição em que exige à ao município lisboeta uma indemnização de cerca de €350 milhões pela não-concretização do negócio.

A decisão do tribunal arbitral só deverá ser conhecida no verão,  mas é possível apontar já duas certezas: primeiro, se o tribunal der razão à empresa de Domingos Névoa, as contas da Câmara sofrerão um rombo significativo, fazendo com que dívida da autarquia dispare e com que o futuro da próxima equipa camarária seja tudo menos fácil; além disso, será, certamente, tema incontornável da pré-campanha para as eleições legislativas e arma de arremesso político entre socialistas e social-democratas.