Comecemos esta crónica com um curioso paradoxo: “The Order: 1886”, o jogo exclusivo da PS4 e no qual a Sony investiu milhões em promoção, é um mau jogo. No entanto, para muitos jogadores, este é um jogo bom. Para explorarmos esta ambiguidade temos que ter em conta a peça mais importante do puzzle: repito, “The Order: 1886” é um mau jogo. Arrisco até ir mais longe considerando “The Order” um jogo muito mau. Mas para que eu possa ter a autoridade de tal afirmação sem a mesma se tornar arrogante é preciso definir o que é então um mau jogo e, para tal, é preciso também definir o que é um videojogo. Adiante-se já para cortar caminho, que algo não é de certeza: um filme.

O reputado dicionário de Oxford define videojogo como um “jogo jogado [SIC] a partir da manipulação eletrónica de imagens num ecrã”. Já o Cambridge esclarece como “um jogo em que mexemos imagens num ecrã” (?) e o nosso caro Priberam como “jogo de computador ou de consola para jogar numa televisão” (?). Ora, por este caminho dos nossos fiéis dicionários, os quais em tempos remotos folheávamos grandes volumes no colo como se fossem mestres da verdade, não vamos a bom porto.

Em primeiro lugar, quando passo as pequenas pausas necessárias ao bom funcionamento do meu sistema digestivo, não me apetece transportar a televisão até ao W.C. para ligar ao telemóvel, seja pela dimensão exagerada do primeiro aparelho, seja pelo enorme perigo da proximidade de grandes eletrodomésticos, torneiras e humidade. A outra falácia a que estas simples definições nos conduzem é que passear no guia interativo da televisão, à procura de um programa de bom gosto em canal nacional, seria considerado um videojogo. É um jogo certamente, e bem exigente e complexo, mas não é um videojogo.

É mais simples definirmos os videojogos pelo próprio ato que a palavra implica. Criações digitais que permitem ser jogadas. E sim, retirei propositadamente a palavra ecrã. Tome-se o caso de “Zombies, Run” um jogo para smartphones que já vai na terceira versão e que já conta com quase um milhão de pessoas a fugir dele. Não, o jogo não é mau. Para isso já voltamos ao jogo inicial da crónica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Zombies Run” é um jogo que se ouve e não um jogo que se vê e é para ser usado nas nossas corridas e jogging no exterior. Simplificando, estamos a correr no meio de um apocalipse Zombie e de cada vez que um Zombie (ou uma horda deles) se aproxima de nós, temos que escapar do mesmo correndo mais rápido. O jogo usa o GPS do smartphone para saber a nossa posição e transformar assim o ato de exercitar o corpo num jogo tão divertido como arrepiante. Mais uma vez, este é um jogo que se ouve, não um jogo que se vê, daí a minha definição muito mais lata de videojogo.

Então se apenas basta ser uma criação (digital) que se destina a ser jogada, o que define então um bom videojogo de um mau videojogo? O local onde iremos encontrar mais consenso é onde vamos procurar a maior parte das nossas perguntas: à história.

Com quase cinco décadas de existência, os videojogos já tiveram um crescimento e maturação para formarem duas peças essenciais de todas as artes: os géneros e os movimentos artísticos. Dentro dos géneros já foram criados dezenas de milhares de jogos e foram-se afinando ao longo dos anos a componente mais importante de cada jogo: as mecânicas, ou seja, aquilo em que realmente jogamos: saltar, bater, agachar, chutar, andar para a frente, matar, comprar, pilotar, numa imensidão de atividades que podem até incluir urinar (sim, e só esse ato dava uma crónica separada).

Enquanto todas estas atividades que um jogo nos permite foram sendo criadas e afinadas, uma série de jogos com maiores orçamentos disponíveis começaram desde cedo a procurar dar-nos uma experiência similar ao mundo real. Curiosamente, a forma como estes jogos começaram essa tentativa foi fundirem-se com outra arte: o cinema.

Das experiências deprimentes e série B de “7th Guest” no aparecimento dos CD-Rom até às sequências cinematográficas dos “Call of Duty” mais recentes, tem sido feito um esforço de encaixar a arte cinematográfica nos videojogos (quase sempre com péssimos resultados) como forma de criar uma experiência “maior do que a vida”. Em certos casos, como em “Heavy Rain”, esse equilíbrio aproximou-se do aceitável, mas no seguinte “Beyond: Two Souls” (do mesmo criador) a tentativa de ir mais longe resultou num autêntico desastre de jogabilidade.

Existem no entanto vários casos de jogos na qual a inclusão desta “cinematografia” acaba por resultar. Muitos até, mas basta-nos aqui enumerar dois: “The Last of Us” e “Grand Theft Auto V”. Em ambas as obras, grande parte da história é apresentada através de sequências puramente cinematográficas, nas quais não temos qualquer controlo sobre o jogo.

Então porque é que estes jogos resultam? Porque entre estas sequências temos grandes extensões jogáveis na qual as mecânicas de jogo não só são recompensadoras como são até inovadoras e originais. Aprenderam com tudo o que já foi feito no passado e levaram o género, ou os géneros, com o qual estamos a jogar, muito mais longe. Daí que não nos importemos de, chamemos-lhe fazer uma pausa, parar para ver uma sequência cinematográfica de qualidade aqui e ali. Mas apenas porque temos um bom jogo literalmente nas mãos e não porque nos esteja a apetecer ver um filme.

Então qual é o problema de “The Order”? O de tentar impingir-nos um filme pelo meio de um jogo muito mau. A jogabilidade de “The Order”, isto é, aquilo que realmente controlamos, faz-nos recuar aos primórdios do género na terceira pessoa quando os primeiros passos ainda estavam a ser dados. No entanto, desde as primeiras experiências nos anos 80, o género evolui com milhares de jogos, alguns dos quais fazem hoje parte dos grandes franchises multimilionários como “Metal Gear”, “Uncharted”, “Gears of War”, “Tomb Raider” ou “Resident Evil”, assim como fazem parte jogos que deram saltos evolutivos no género como foi o caso de “Kill Switch”, “Jet Force Gemini”, “Vanquish” ou “Dark Souls”.

“The Order”, como jogo é portanto um jogo muito mau. Aqui e ali tenta introduzir uma arma que possa parecer inovadora, mas em toda a sua jogabilidade não apresenta ideias novas, é repetitivo e banal. Entre estas sequências jogáveis, “The Order” apresenta-nos mais de três horas de “filme” que não podemos ignorar, ou seja, passar à frente. Aliás, ignorar seria contraproducente pois os criadores do jogo quiseram produzir uma passagem quase invisível entre as sequências de jogo e as sequências de filme.

Não o conseguem por duas razões: primeiro, estamos a ser constantemente interrompidos para além daquilo que nos é aceitável no género e em segundo, porque as sequências cinematográficas são realmente de grande qualidade, o que contrasta com o péssimo jogo que nos é apresentado. O estúdio esteve tanto tempo preocupado em aprimorar a componente cinematográfica que esqueceu o que deveria estar a criar desde o início: um videojogo.

Qual é então o paradoxo? É que muitos jogadores gostam de “The Order: 1886”. Poderíamos até tentar afirmar que esses são os jogadores casuais apenas habituados a um “FIFA” e a um “Call of Duty” por ano, mas não. Li muitas opiniões, críticas e até discussões em que se defendia o jogo como até tendo sido uma boa experiência (se bem que se procurarmos ataques ao mesmo temos leitura para vários anos).

É aqui que se encontra a peça-chave para desmontar finalmente o paradoxo, que a crónica já vai extensa. “The Order: 1886” até é uma boa experiência. Ou seja, uma boa história intercalada por um mau jogo até pode ser uma boa experiência. Não devia, mas obviamente pode. Também podemos aqui enumerar a quantidade de filmes que não deveriam ter salas repletas de humanos a sorver refrigerantes e a deglutir pipocas e no entanto os mesmos não vão desaparecer como possivelmente até tornam financeiramente possível a existência de um cinema independente.

Resolver o paradoxo é perceber que a indústria já saiu da sua fase infantil, atravessou a puberdade e caminha para a fase adulta mas ainda cheia de acne. “The Order” é o acne na indústria. Está lá, é esteticamente desagradável, mas não vamos deixar de namorar com a pessoa por isso. Porque no fundo sabemos que um dia o acne vai desaparecer e o patinho feio é na realidade um lindo cisne. Estamos ainda no caminho de observar o lindo cisne branco daqui a uns anos, se para tal os criadores deixarem de tentar fazer filmes com jogos no meio e passarem a tentar evoluir a indústria em novas e originais direções (leia-se “Thirty Flights of Loving”). Se isso não acontecer vamos na mesma ver o cisne. O pior é que será vê-lo a cantar.

Miguel Tomar Nogueira, Rubber Chicken