Um ringue quadrado, rodeado por cordas, com dois homens lá dentro e ambos com as mãos cobertas por luvas. Depois é ver qual deles é capaz de, aos socos, derrotar o outro e, assim, passar a ter à volta da cintura três títulos do boxe mundial. Se as coisas se resumissem assim, bem resumidinhas, até poderíamos ficar por aqui, dar descanso ao teclado e escrever apenas que, este sábado, dia 2 de maio, Floyd Mayweather e Manny Pacquiao vão andar a trocar murros em Las Vegas, nos EUA. Mas como um móvel que não se compra inteiro, mas às peças, com um papel cheio de instruções para as montar, esta não é história que se resuma assim, pois à mistura tem demasiada coisa para ser resumida. E a primeira está no nome que lhe arranjaram: “O Combate do Século”

Esta é a parte que se pode dividir por três peças. A primeira diz que há mais de seis anos que estes dois lutadores andavam às turras para arranjarem maneira de se defrontarem, algo que nunca aconteceu por culpa de várias coisas (como o dinheiro, a divisão das receitas, o local ou a transmissão televisiva, mas já lá vamos). Depois, porque Floyd Mayweather, norte-americano de 38 anos, e Manny Pacquiao, filipino de 36, são os melhores boxeurs da sua geração e disso ninguém duvida. Já a terceira é uma espécie de consequência das anteriores, pois este será o combate mais lucrativo de sempre — estima-se que as receitas rondem os 350 milhões de euros e que os dois pugilistas dividam os lucros numa lógica de 60-40, a favor de Mayweather.

Porquê tanto dinheiro?

Começa no preço dos bilhetes: o mais barato custa quase 1.400 euros e há quase 16 mil lugares para encher na arena do MGM Hotel & Casino em Las Vegas, nos EUA. Depois há a questão do Pay-per-View, o sistema que funciona nos EUA e dá a hipótese aos telespectadores de pagarem para verem um programa em específico. Neste caso, o norte-americano que pretender assistir ao combate em casa, sentado no sofá, de comando na mão e a fazer companhia à televisão terá de desembolsar 100 dólares, ou seja, 89 euros. E já se estima que o recorde de 2.48 milhões de assinaturas do combate de Mayweather contra Oscar de la Hoya, em 2007, seja ultrapassado. Agora é fazer contas.

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Estes valores, aos olhos de Eugénio Pinheiro, passam “uma boa imagem do que é o desporto norte-americano”. O presidente da Federação Portuguesa de Boxe lembrou também que, pela primeira vez, um evento deste tipo será transmitido por duas cadeias de televisão: a HBO, que tem um contrato para transmitir os combates de Manny Pacquiao, e a Showtime, que está ligada a Floyd Mayweather.

Sim, é mesmo muito dinheiro e o pugilista norte-americano bem sabe disso, provando-o com o facto de há anos ter começado a trocar o primeiro nome pela alcunha de “Money”. O filipino também o sabe, embora nesta história ele seja visto como o bonzinho, o humilde e outrora pobre que combate pelo seu povo e não desperdiça uma oportunidade de vincar a fé que tem em Deus. E luta contra o mauzão, o arrogante e vidrado em dólares que até já foi cinco vezes acusado de crimes de violência doméstica. As autoridades do boxe norte-americano, os canais de televisão que vão transmitir o combate e até alguma imprensa do país têm arranjado maneira de envolver a história deste combate no hollywoodesco guião de haver um bom da fita a fazer frente a um vilão. O combate está agendado para quando o relógio em Portugal Continental bater na 1h da noite de sábado para domingo.

O acusado de violação doméstica que o boxe não castiga

O mauzão, neste filme, é Floyd Mayweather. É norte-americano, tem 38 anos, mede 1,73m e vai com 47 vitórias na carreira. E quantos combates já fez? 47. Sim, nunca houve um lutador que o conseguisse vencer, fosse por knock-out (KO) ou por pontos, desde que Mayweather é um pugilista profissional e tem o boxe como ganha-pão. A última vez que um árbitro o chamou ao centro do ringue e não lhe ergueu um dos braços (sinal pelo qual identifica o vencedor) foi em 1996, quando a então amostra de 19 anos do lutador atual foi derrotada na qualificação para os Jogos Olímpicos de Atlanta, nos EUA.

Mas esse miúdo cresceu, foi aprendendo a lutar — com o pai e o tio, que também foram pugilista profissionais –, a esquivar-se de mil e um golpes e a aproveitar cada erro do adversário até se tornar no atleta mais bem pago, título que mantém há três anos, pelas contas da revista Forbes. Na cintura tem dois cintos de campeão: o da Super WBA (World Boxing Association) e o da WBC (World Boxing Council). “Sou que sou incrível e que sou um vencedor. Sei vencer em qualquer circunstância”, disse à Yahoo, há semanas, antes de confirmar outra coisa que se diz sobre ele: “Sim, tenho mesmo três Bugatti’s e a cada 36 minutos ganho quantias de nove números.” É por este tipo de tiradas que a Floyd Mayweather apontam o dedo da arrogância, embora haja outro que o recrimine por, lá está, já ter andado enrolado com o crime.

https://www.youtube.com/watch?v=o4v9xGmlr_s

Porque entre 2001 e 2012 o pugilista foi por sete vezes identificado ou detido por acusações de violência doméstica. Há três anos, aliás, chegou a cumprir dois terços de uma pena de prisão de 90 dias — saiu ao final de dois meses por bom comportamento — após ser considerado culpado de uma agressão a Josie Harris, mãe de três dos quatro filhos de Mayweather, que sempre negou as acusações. “Se realmente tivesse feito o que dizem: bater e maltratar uma mulher… Eu sou o Floyd Mayweather, eles teriam logo divulgado fotografias. Mas, por enquanto, ainda nada”, chegou a dizer, sobre o caso. Apesar de a justiça norte-americano o ter punido, a Nevada Athletic Comission, entidade que rege a atividade desportiva no Nevada, estado onde reside o pugilista e se realizará o combate de sábado, nunca lhe aplicou qualquer castigo ou sanção.

A comissão argumenta que não lhe compete punir Mayweather, justificando que o pugilista já pagou o preço pelo que fez. “A justiça decidiu sobre o castigo para este homem. Um juiz decidiu e nós respeitamos essa decisão”, defendeu Pat Lundvaall, um dos cinco membros da comissão. É por estes olhos que se fecham deliberadamente que vários jornalistas vão boicotar o combate de sábado. “Ele foi apresentado uma e outra vez como um exemplo a seguir e, hoje, algures nos EUA, um jovem norte-americano vai maltratar uma mulher por causa disso”, lamentou Thomas Hauser, jornalista, à ESPN. “Enquanto Ray Rice, Greg Hardy e Adrian Peterson tiveram foram forçados a sair da NFL e a passar por várias etapas legais para serem readmitidos na NFL”, escreveu Julie DiCaro, da CBS Chicago, dando o exemplo dos três jogadores que a liga de futebol americano suspendeu após se envolverem em casos de agressão ou violência doméstica.

O bonzinho que também gosta de política e de basquetebol

Casos destes nunca teve Manny Pacquiao, o homem que nasceu e cresceu pobre nas Filipinas, onde, com 14 anos, descobriu no boxe uma forma de arranjar dinheiro para a ajudar a mãe e os cinco irmãos. Com essa idade chegou a Manila, capital do país, onde começou a combater a troco de dois dólares (cerca de um euro e 70 cêntimos, à taxa de câmbio atual) — caso vencesse, pois apenas recebia um se perdesse, como contou recentemente à Yahoo Sports. No ano seguinte tornou-se profissional e começou a subir os degraus da escada que hoje, aos 36 anos, o tem como um dos melhores pugilistas de sempre.

Pacquiao é detentor do cinto de campeão da WBO (World Boxing Organization) e já foi o melhor pugilista em cinco categorias de peso diferentes. Ao tudo, o registo que leva das vezes em que vestiu umasluvas para andar à pancada com outro homem vai em 57 vitórias, dois empates e cinco derrotas em 64 combates feitos como profissional. Aqui está o protagonista bonzinho do filme que se tem montado em torno do Combate do Século, usufruindo de várias coisas que, juntas, lhe deram a imagem na qual o marketing e a divulgação do evento pegaram para fazerem o resto. Uma dessas coisas está no facto de Manny, desde 2010, ser um deputado na Câmara dos Representantes das Filipinas — até já foi reeleito para o cargo.

https://www.youtube.com/watch?v=GWH4-bjrcxc

Depois há o lado religioso, pois Pacquiao não desaproveita uma oportunidade para vincar a crença em Deus. “Antes bebia, metia-me com as mulheres, fazia tudo. Mas depois rendi a minha vida ao Senhor quando aceitei Jesus Cristo como o meu salvador”, disse, há semanas. É pai de cinco filhos e amante, a sério, de basquetebol, um gosto que já o levou a comprar um clube nas Filipinas e a tirar proveito da popularidade/imagem de herói nacional/carteira cheia de dinheiro para, aos 36 anos, fazer parte do draft (processo em que os clube escolhem os jogadores no início de cada época) da liga do país e ter chegado a jogar por uma equipa.

A vida de Manny Pacquiao parece estar cheia de rosas, mas elas também murcham, apesar de não tanto quanto as de Floyd Mayweather. Apesar de contar cinco anos como deputado, o filipino passa grande parte do ano ausente da vida política do país. Já o criticaram por se ter publicamente oposto ao casamento homossexual nas Filipinas — “Não sou contra os gays, tenho um primo e outros familiares gays. Mas não sou a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, é a lei de Deus” — e de ter traído a mulher. No final de 2013, o governo filipino chegou a congelar as contas bancárias de Pacquiao por suspeitar que o pugilista devia cerca de 44 milhões de euros em impostos.

Quem vai ganhar?

Esta é a tal pergunta que sempre se faz e para a qual a resposta nunca é certa, mesmo quando se pede a ajuda a quem percebe de boxe. Porque além de imprevisível, o combate de sábado vai fazer colidir no ringue “dois estilos completamente opostos”. Quem o diz ao Observador e os vê assim é Eugénio Pinheiro, presidente da Federação Portuguesa de Boxe que vê Floyd Mayweather como “um grande atleta, altamente técnico, muito preciso nos golpes, com uma defesa muito desenvolvida e que joga muito bem no ‘contra'” e Manny Pacquiao como alguém “muito mais agressivo, com um boxe mais espetacular”, tendo “muito coração” e “menos cérebro” em comparação com o norte-americano.

Eugénio gostava que Manny vencesse, embora acredite que o filipino apenas sorrirá no final se conseguir derrotar Mayweather com um KO — pois não o vê a conseguir de outra maneira. “Aos pontos o outro aguenta-se. O Floyd é mais espetacular para quem sabe apreciar boxe. Defende-de duma maneira incrível, ataca cirurgicamente, desvia-se e bate enquanto foge. Pacquiao é ataque mais ataque, não pensa na defesa, só em destruir o adversário”, explica, antes de simplificar a comparação numa frase: “O Pacquiao é dos pugilistas que não se importam de apanhar pancada para darem e o Mayweather prefere não dar para também não levar.” O norte-americano joga no erro, enquanto o filipino, “das duas uma”, ou “bate de cabeça erguida e expõe-se muito a levar um contra”, ou “bate tanto que o adversário não consegue ripostar”.

Mais um Combate do Século?

O boxe não é desporto que capte muitas atenções em Portugal, sim, mas não será difícil recordar que já houve outro combate do século. Tudo bem que não foi neste, no XXI, foi no anterior, mas aconteceu. Foi em 1971, quando um Cassius Clay já rendido ao Islão e chamado Muhammad Ali desafiou Joe Frazier para lhe tentar roubar o título de campeão mundial de pesos-pesados. A ocasião encheu o Madison Square Garden, em Nova Iorque, e juntou num ringue dois pugilistas que, à época, ainda não tinham perdido um combate.

Ao fim de 15 assaltos, o derrotado acabou por ser Ali, não deitado no tapete, mas por decisão dos juízes, que foram unânimes a considerarem Frazier o vencedor. Eram outros tempos: os bilhetes mais caros iam até aos 150 dólares (atuais 133 euros) e cada lutador lucrou 2,5 milhões de dólares (cerca de 2,2 milhões de euros) com o combate. Eugénio Pinheiro tem uma explicação para, mais de 40 anos depois, a expressão voltar à baila para batizar um combate de boxe. E até é simples: “Pacquiao e Mayweather são atletas muito badalados e isso faz parte do marketing. É a América no seu melhor.”