O tempo para o debate já estava a chegar ao fim naquele dia 13 de Agosto de 1975. Os deputados mais sonolentos foram avisados de que “restavam poucos minutos” para acabar o chamado Período Antes da Ordem do Dia. Faltava apenas ouvir um último requerimento, que seria apresentado pelo general Galvão de Melo, eleito para a Constituinte como independente nas listas do CDS. Ninguém estava à espera do que aí vinha.

Falando sobre o seu “distintíssimo colega” Américo Duarte, o deputado lembrou que o operário da UDP vinha “proferindo críticas pessoais” que atingiam vários parlamentares, incluindo o próprio Galvão de Melo. Primeiro, diminuiu o adversário com a insinuação de que ele não era exactamente um génio, limitando-se a repetir em voz alta o que os assessores da UDP lhe sussurravam:

“Estes ‘ataques’, que o nosso colega não pensou nem escreveu e tão-somente nos leu o melhor que pôde…

(Risos.)

… só não são insultantes por virem de quem vêm; só não são insultantes porque aquele que os proferiu é o primeiro a não os compreender.

(Risos.)”

Depois, Galvão de Melo trouxe Sigmund Freud para as bancadas do hemiciclo e fez uma tentativa de psicanálise do comportamento do seu adversário: “Estes desabafos, para além de simples divergência política, revelam um nervosismo e uma raiva incutida que começa a ser suspeita. Revelam medo! Medo de quê? O excesso de agressividade é sempre revelador de um sentimento de medo. Ora, tenho verificado que a agressividade do Sr. Américo Duarte explode com violência impressionante sempre que, directa ou indirectamente, vem ao caso mencionar a antiga Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que mais tarde passou a designar-se por Direcção-Geral de Segurança. Porquê esta preocupação tão específica? Será que com o seu vozear tonitruante o Sr. Américo Duarte pretende abafar algum prurido de consciência antiga?”

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A esta altura, já ninguém estava a contar os minutos para o final do Período Antes da Ordem do Dia. Todos começavam a perceber que a intervenção de Galvão de Melo não ia terminar com música celestial. De forma solene, invocando o artigo 6.º, n.º 9 e o artigo 12.º, n.º 1, alínea a) do Regimento da Constituinte, o deputado eleito pelo CDS requereu ao Presidente da Assembleia que usasse “de todos os meios ao seu dispor” para esclarecer uma “grave dúvida”: “Foi ou não o Sr. Américo Duarte informador da PIDE/DGS?”

A reacção dos deputados não teria sido de maior espanto se Galvão de Melo o tivesse acusado de roubar bengalas a velhinhas. Sem margem para promover um recuo, só restou ao Presidente da Assembleia avançar. Num ofício enviado à Comissão de Extinção da PIDE-DGS, eram solicitados, “com a máxima urgência, todos os elementos de que aquela Comissão disponha relativamente à grave suspeita formulada”.

Américo Duarte não planeava ficar à espera calado. Numa declaração inflamada, argumentou que as afirmações de Galvão de Melo eram a prova do “levantar de cabeça do fascismo” e alertou “as massas populares” para “estarem vigilantes e unidas”, de forma “a esmagar o avanço fascista”. Quando a Mesa deu novamente a palavra a Galvão de Melo, Américo Duarte abandonou a sala, mas antes, virando-se para o seu adversário, gritou: “Hás-de ir parar ao Campo Pequeno!”

A bronzear-se na piscina

Seguiram-se seis dias de suspense. A 19 de Agosto, o secretário da Assembleia leu um ofício do Serviço de Coordenação de Extinção da PIDE/DGS: “Para os devidos efeitos, declaram estes serviços nada ter sido encontrado, até à presente data, que os leve sequer a supor que Américo dos Reis Duarte alguma vez tenha prestado qualquer tipo de colaboração à extinta PIDE/DGS”.

Havia mais reforços a caminho. Um telegrama enviado à Constituinte pelo Sindicato de Marinheiros Mercantes repudiava as “calúnias e provocações do fascista Galvão de Melo sobre o deputado revolucionário Américo Duarte”. E uma “exposição” de operários da Lisnave, que reunira 99 assinaturas, defendia o deputado da UDP, descrito como um “destacado antifascista”.

Perante isto, Américo Duarte podia simplesmente ter declarado vitória. Mas, mais uma vez, a inteligência saiu derrotada na sua luta contra o proselitismo. Minutos depois de ter sido absolvido de forma oficial, o deputado apresentou um requerimento a exigir que o Governo investigasse o conteúdo de um artigo publicado no jornal República a 16 de Agosto, no qual Galvão de Melo se gabava de possuir “cópias dos arquivos da ex-PIDE/DGS guardadas em duas embaixadas”. Foi um erro: como referiu Marcelo Rebelo de Sousa, isto “deixou no espírito de mais de um parlamentar as mais sérias dúvidas acerca do eventual conhecimento, por Galvão de Melo, de dados que a referida Comissão ignorasse”.

Sem perceber que estava a lançar a confusão sobre si próprio, Américo Duarte leu em voz alta algumas partes do artigo em causa: “Bronzeando-se na piscina do Hotel Atlântico, o general Galvão de Melo, na presença de Jaime Neves e outras testemunhas, afirmou poder provar as suas afirmações, proferidas na Assembleia Constituinte, acerca do deputado da UDP, Américo Duarte, pois possuía cópias dos arquivos da ex-PIDE/DGS guardadas em duas embaixadas estrangeiras, sendo uma delas a da Alemanha”. Num frémito de agitação, Américo Duarte terminou a sua intervenção em crescendo revolucionário:

“Operários e camponeses, soldados e marinheiros, unidos venceremos. Soldados sempre, sempre ao lado do povo. Dissolução da Constituinte, já.

(Apupos.)

(Grande agitação na sala.)

(Manifestações nas galerias.)”

Quando o Presidente da Assembleia ameaçou evacuar as galerias, o deputado da UDP ficou fora de si: “Eu só queria dizer que o povo que lá está em cima é aquele que paga para estes senhores estarem aqui em baixo.”

O Tullius Detritus da Constituinte

Este era o ambiente ideal para Galvão de Melo fazer mais uma das suas provocações. Gozou com Américo Duarte, com os jornalistas e até com o deputado comunista Octávio Pato:

“Galvão de Melo: Sr. Presidente, Srs. Deputados, a opinião que faço do nosso distintíssimo colega da UDP já todos a conhecem e não vale a pena repetir. Em todo o caso, eu só queria fazer aqui uma pequena pergunta. É que, ao referir-se a uma notícia que viria num determinado jornal do dia 16, sobre o facto de me ter estado a bronzear numa determinada piscina (que estive a bronzear-me não se pode negar porque se vê)

(Risos.)

… eu gostava de saber qual o dia em que isso se passou. Citou, além disso, uma conversa com o Sr. Coronel Jaime Neves acerca de uns documentos que eu teria guardados em pelo menos duas embaixadas – é capaz de ser mais –…

(Risos).

… ele disse que o jornal é do dia 16, mas não disse em que dia é que eu estava a bronzear-me e em que eu tive essa conversa com o Sr. Coronel Jaime Neves. Eu gostava que isso fosse aqui concretizado. Por isso pergunto ao nosso colega deputado da UDP exactamente a que dia se refere essa notícia.

Presidente: Quer o Sr. Deputado responder? A Mesa poderá condescender, embora me pareça…

Américo Duarte: Eu só tenho a dizer que a fascistas não dou respostas nenhumas.

(Risos.)

(Manifestações nas galerias.)

Galvão de Melo: Bem, eu posso deduzir que, uma vez que esse jornal é do dia 16, ele se refere exactamente ao feriado do dia 15, excelente dia para a gente se bronzear na piscina…

(Risos.)

… mas está com pouca sorte o jornal, está com pouca sorte o Sr. Deputado. É que no dia 15 eu estive no Norte do País, em Fermentelos, à caça aos patos…

(Risos.)

(Pausa.)

… Eu confesso que cometi uma gaffe, sem querer, mas estive à caça aos patos, patos com asas, patos autênticos…

(Risos.)

… e disso tenho imensas testemunhas. Portanto, isso é apenas uma pequena mentirinha do nosso colega. O resto são tudo mentiras.

(Risos.)”

E, assim, uma acusação chocante ficou envolta numa névoa de ambiguidade. Para adensar ainda mais a dúvida, o MDP/CDE, “não querendo pronunciar-se sobre o caso concreto indicado”, pediu que todos os deputados fossem investigados para descobrir eventuais ligações à antiga polícia política ou a outros órgãos do Estado Novo.

Mais uma vez, o deputado eleito nas listas do CDS tinha conseguido lançar a confusão na Assembleia e a cizânia entre os adversários. Como saberão os fãs de banda desenhada, nos álbuns de Astérix havia um nome para uma personagem assim, encarregue de levar a discórdia aos “irredutíveis gauleses”. Não havia dúvida: Galvão de Melo era o Tullius Detritus da Constituinte.

 

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes