“Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cardia.” Era esta a frase que os adversários dele mais temiam. Sempre que o Presidente da Assembleia Constituinte anunciava uma intervenção do dirigente socialista, o hemiciclo parava para respirar fundo. De certeza que vinha aí um discurso duro, brutal, intenso, fogoso, impetuoso, feroz, vigoroso – e terrivelmente eficaz. Os seus alvos eram sempre os mesmos: a extrema-esquerda civil e militar que tentava torpedear a democracia “burguesa” e impor uma ditadura comunista.
Mário Sottomayor Cardia sabia bem do que falava. Até porque já estivera do outro lado: entrara no PCP em 1962, começara a divergir do partido em 1968 e saíra definitivamente em 1971. Por causa do seu passado, alguns deputados comunistas na Constituinte usavam uma táctica pouco subtil para o tentar perturbar durante os seus discursos: interrompiam-no com gritos de “Renegado!” Não que isso o incomodasse. Sempre que se apercebia de um aparte, fazia-se de desentendido:
“O Sr. Deputado disse alguma coisa? Não ouvi a intervenção… Então continuo, se não dizem nada.”
E continuava. No Verão Quente, falou sempre que houve um risco sério para a liberdade.
Falou a 10 de Julho, depois de os militares aprovarem o Documento-Guia da Aliança Povo-MFA, que pretendia ser a base da instauração do poder popular. Discursando contra a hipótese de Portugal se transformar “num Estado tipicamente policial”, atacou: “Esta redução do País a um organigrama híbrido serve, no fundo e apenas, de cobertura à instauração de uma ditadura”. Fez uma pergunta: “Senhores cuja identidade só parcialmente conheço, para onde quereis arrastar este país tantas décadas massacrado pela ditadura?” E outra: “Queremos comprometer a revolução em aventuras suicidas?” E ainda outra: “Quem manda neste país?” Quando alguns deputados o começaram a apupar, disparou: “Eu não admito agora interrupções”.
Falou também a 22 de Agosto, depois de uma reunião especialmente tumultuosa da Assembleia do MFA. Anunciou: “Hoje a hora é de acção, é de luta”. Depois, deu um soco com a esquerda:
“Acusar é um dos mais essenciais direitos do cidadão. Acusar um poder que desgoverna é o primeiro dever de um representante do povo”.
E a seguir deu um soco com a direita: “Acuso a chamada Assembleia do MFA de haver usurpado o poder revolucionário do MFA e de o ter feito à socapa”. O país, confrontado com “uma rara demonstração de paranóia de grupo” vinda do poder, estava na “iminência da hora da verdade” – e Sottomayor Cardia não pretendia deixá-la passar.
Queriam prendê-lo
Falou ainda a 21 de Outubro, quando se temia que a guerra civil começasse a qualquer momento. O deputado socialista criticou o “aventureirismo pseudo-revolucionário”, explicou que temia que, “em breve e inevitavelmente”, surgisse “um futuro trágico” e avisou: “Vivemos um momento em que é preciso estar particularmente vigilante”. Teve a coragem de se levantar, mesmo sabendo das suas próprias fraquezas: “A palavra de um pacífico deputado constitui fraco recurso na luta contra a sedição armada.”
Falou novamente a 18 de Novembro, a escassos dias dos decisivos confrontos de 25 de Novembro, para denunciar os “Bonapartes caseiros”, que eram naquele momento os “paladinos militares” do poder popular.
E falou por fim a 3 de Dezembro, aliviado com o fim do período revolucionário: “Os ditadores caíram, os democratas continuam.” Agora que “o país mítico do esquerdismo alucinado” tinha sido derrotado, anunciou:
“Ontem exigiu-se que fôssemos de novo resistentes, que fôssemos de novo cavaleiros andantes da liberdade.”
Não era fácil falar naquela época de violência política. Mas, no caso de Sottomayor Cardia, o seu currículo defendia-o de todas as tentativas que pudessem ser feitas para o calar. Não valia a pena bater-lhe: a PIDE já o tentara antes, fazendo com que perdesse a visão durante dois meses em resultado de um espancamento, mas não conseguira dobrá-lo. E não valia a pena prendê-lo: a polícia política do Estado Novo também tentara isso, sem sucesso.
De qualquer forma, alguns acharam que a cadeia podia ser uma boa solução. Por várias vezes, na sequência de alguns dos discursos mais violentos de Sottomayor Cardia na Constituinte, o Conselho da Revolução “apreciou propostas de prisão” do deputado. Nunca ninguém se atreveu a tocar-lhe.
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“Liberdade sem Dogma”, de Carlos Leone e Manuela Rêgo (org.)