A 11 de Novembro de 1975, Leonel Cardoso fez, “com sobriedade”, o seu último discurso como Alto Comissário e Governador-Geral de Angola antes da independência daquela colónia. A dada altura, usou a seguinte expressão: “E assim Portugal entrega Angola aos angolanos” A frase era definitiva, mas ambígua. A dúvida residia em saber o significado da palavra “assim”. Afinal, de que forma é que Portugal estava a entregar Angola aos angolanos? Nesse mesmo dia, e no seguinte, no hemiciclo da Assembleia Constituinte, ouvir-se-iam as várias respostas possíveis. A descolonização aterrou em São Bento com estrondo e fúria.

1. Galvão de Melo: Portugal entregou Angola aos angolanos de forma cobarde

Se havia coisa que o deputado independente eleito pelo CDS tinha era a noção do espectáculo. Galvão de Melo falou pouco durante toda a Constituinte, mas naquele dia decidiu falar tempo demais, chegando a ultrapassar os minutos previstos no regimento da Assembleia. Sabia que era um momento histórico. Qualquer coisa que fosse dita ali seria lembrada durante muitos anos e, por isso, usou logo as suas primeiras palavras para aumentar o dramatismo:

“Dada a natural grandeza do tema que vou tratar, atrevo-me, esquecendo o protocolo desta Assembleia, a endereçar as minhas palavras não só a vós, Sr. Presidente, não só a vós, Srs. Deputados, mas a todos os que dentro desta sala estão por dever de cargo ou simplesmente por bem compreensível curiosidade. Senhores da imprensa; senhores funcionários da Assembleia; senhores guardas da Polícia de Segurança; senhoras e senhores que assistis das galerias, é também para todos vós o que tenho a dizer.”

Agora que tinha a atenção de tudo o que mexia, presume-se que até das moscas que pudessem andar pelo plenário, começou a falar. Numa orgulhosa digressão histórica, lembrou “um longo período que durou precisamente cinco séculos e sessenta anos”, durante o qual “homens valorosos – nossos antepassados – descobriram, ocuparam e conservaram vastos territórios distribuídos num mundo antes desconhecido”. O tom era épico: “Esta foi a obra que nenhum outro povo ainda repetiu. Esta foi a grande aventura histórica dos portugueses, tão grande que quase os consumiu ao consumir suas forças, suas fazendas, suas vidas. Essa aventura foi – e é – o orgulho da raça portuguesa.”

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Os deputados do PCP não precisavam de ouvir mais nada. Depois de algumas vozes gritarem “Colonialista!”, os comunistas começaram a abandonar a Assembleia:

“Galvão de Melo: Eu espero que saiam, porque com certeza agrada a todos.

Vozes: Fascista! Reaccionário! Fascista!

Galvão de Melo: Antes fascista que comunista.

Uma voz: És como o teu amigo Spínola…

Outra voz: Fora o ELP!”

Sem se mostrar especialmente incomodado com esta diminuição da assistência, o deputado eleito pelo CDS continuou o seu discurso contra “os ventos da História”: “Quem aproveita a força desses mesmos ventos?” Para ele, a resposta era evidente: “Dia a dia mais anarquizados e enfraquecidos, [os novos Estados africanos] são já presa fácil de quem neles puder e quiser entrar provido de alguma ideia e capacidade para instalar a ordem: de preferência a ordem económica.” Não havia, portanto, uma verdadeira descolonização. Simplesmente, estava a substituir-se um colonizador por outro.

Ainda por cima, isso era feito de forma pouco democrática: “Alguém perguntou ao povo, aos diferentes povos interessados, qual a sua opinião e, afinal, decisão? Não.” Em vez de uma independência responsável, o que o deputado via à sua frente era o “abandono”, a “entrega” e a “venda”. Ou seja: a “traição”. Ou melhor: a “derrota”.

Galvão de Melo estava de tal forma concentrado no seu discurso que, por mais de uma vez, o Presidente da Assembleia teve que o alertar para o facto de estar a ultrapassar o tempo de que dispunha. Mesmo quando confrontado com uma questão tão prosaica como esta, que implicava apenas olhar para um relógio, o deputado optou pelo melodrama patriótico:

“Em cinco séculos e meio de história não me parece que quatro ou cinco minutos a mais seja grande perda…”

A sua análise ao que se passara nos últimos meses era devastadora: os portugueses saíam de África apenas “porque não tinham sido capazes de permanecer no ultramar”; os portugueses deixavam como “triste herança” a guerra civil; os portugueses podiam ter sido “grandes e generosos” em vez de “cobardes e mentirosos”. Não havia nada que salvasse aquele processo. Galvão de Melo continuava a cumprir o seu papel de representar na Constituinte a parte do país que olhava com hostilidade para as consequências do processo revolucionário. Emocional, fez uma pergunta e deu a resposta:

“Sinceramente, não sentis vergonha em presença de tais descolonizações? Vergonha e amargura? Eu, sim.”

2. PCP: Portugal entregou Angola aos angolanos de forma heróica

Para Vital Moreira, Angola – simplesmente Angola – era uma entidade que não existia. Cada referência à palavra tinha de vir acompanhada, na mesma frase, de uma outra referência à sigla MPLA, como se a primeira não existisse sem a segunda. Assim, “a República Popular de Angola” era sempre “a República Popular de Angola e o Governo Revolucionário do MPLA”. Isto acontecia por uma razão que o deputado comunista explicava com especial candura: “Porque o povo angolano está com o MPLA. Porque o MPLA é o povo angolano.” Ora, se o MPLA é o povo angolano, então, por definição, quem for contra o MPLA – seja essa pessoa da FNLA de Holden Roberto ou da UNITA de Jonas Savimbi – é contra o “heróico povo de Angola” e não merece governar o país.

No dia seguinte, 12 de Novembro, Octávio Pato, líder parlamentar do PCP, seria ainda mais claro:

“Todos sabemos que a FNLA é um instrumento do imperialismo americano. São conhecidas as ligações da UNITA à PIDE e aos colonialistas portugueses. Como se pode então colocar no mesmo pé o MPLA e movimentos fantoches?”

Claramente, não podia. Por isso, os comunistas pretendiam o reconhecimento imediato do MPLA e de Agostinho Neto como os únicos e legítimos representantes do povo angolano. Por razões altruístas, mas também egoístas. Para Octávio Pato, “a libertação das colónias não era apenas um acto de justiça para com os respectivos povos, era também uma imperiosa necessidade para a libertação do povo português”. Portugal, no fundo, estava a salvar-se a si próprio.

3. PPD: Portugal entregou Angola aos angolanos de forma sábia

Na Constituinte, os social-democratas falaram o menos que foi possível sobre a independência de Angola. E tentaram até ao limite transmitir a ideia de que tudo estava bem.

Para Mota Pinto, por exemplo, o Estado português “não tinha privilegiado qualquer movimento” dos três que estavam em confronto no país, agindo assim de forma “sábia” – mas na altura em que se deu a independência a Angola só um desses movimentos, o MPLA, ocupava Luanda.

Mesmo quando foi inevitável reconhecer evidências, o líder parlamentar do PPD optou por um truque retórico: admitiu a realidade, mas juntou-lhe a fantasia. Mota Pinto aceitou que as circunstâncias da independência de Angola “não eram as mais auspiciosas”, com uma “guerra fratricida” que “rasga a carne e verte o sangue dos homens e das mulheres angolanas e destrói os seus bens”. Mas acrescentou, com inexplicável optimismo, que Portugal “tudo faria dentro das suas possibilidades para ajudar a restabelecer a paz em Angola” – essas “possibilidades” eram, como se veria, zero.

4. Mário Soares: Portugal entregou Angola aos angolanos de forma prestigiante

Era difícil ter escolhido uma estreia mais agitada: o primeiro discurso de Mário Soares na Assembleia Constituinte aconteceu a 12 de Novembro de 1975, no meio da discussão sobre a independência de Angola. Para o líder do PS, aquele debate era uma questão de honra: estava em causa o seu trabalho como ministro dos Negócios Estrangeiros. Por isso, Soares defendeu a actuação do Estado português.

Primeiro, falou do problema da legitimidade: recuou a 25 Abril para explicar que a revolução portuguesa tinha sido feita, “acima de tudo”, para “acabar com as guerras coloniais”. Daí decorria, presume-se, que não havia nada mais revolucionário do que dar a independência às colónias.

Depois, falou do problema de grau: recusando as “ilusões” dos que pretendiam “circunscrever o processo de descolonização no âmbito de uma espécie de Commonwealth português”, defendeu que a “descolonização só poderia ter como consequência final o reconhecimento completo da independência das nossas antigas colónias”.

A seguir, falou do problema do calendário: em defesa dos “legítimos interesses portugueses”, a descolonização deveria sempre ser feita “rapidamente”.

Depois, falou do problema do método: lembrando que a guerra “estava virtualmente perdida em Abril de 1974”, argumentou que “era necessário negociar com quem fazia a guerra, e não com organizações mais ou menos marginais criadas à pressa”.

Por fim, falou do problema do resultado: admitindo que, “com a excepção porventura de S. Tomé e Príncipe”, as antigas colónias eram “agora orientadas por regimes de partido único de tipo democracia popular”, acrescentou que isso acontecia com a benévola aceitação da “África progressista”.

Aliás, segundo Mário Soares, por trás da acção descolonizadora estava uma virtuosa actuação de Portugal: recusando-se a intervir “numa luta fratricida”, o país colocava-se como um “negociador eventual da paz”. De resto, não era por acaso que o país obtivera, através da descolonização, uma “inegável situação de prestígio” no Mundo.

O discurso de Mário Soares foi longo. Mas não tão longo quanto deveria. Como o líder do PS lembraria mais tarde no seu livro de entrevistas a Maria João Avillez, a intervenção acabou mais cedo do que o previsto. A meio, Soares recebeu “um papelinho” onde Jaime Gama tinha escrito uma frase ominosa: “Acabe o mais depressa possível, o Parlamento está quase cercado”. Alarmado, o secretário-geral socialista “inventou um fecho para o discurso” e terminou rapidamente.

Depois de olhar pela janela, Soares percebeu que uma manifestação de operários da construção civil se preparava mesmo para cercar São Bento. Na iminência de ficar preso dentro da Assembleia, saiu a correr e escapou pelos jardins das traseiras. Foi por pouco. Agora, a grande preocupação não era a guerra civil em Angola – era a iminência de uma guerra civil em Portugal. Ela estava mais perto do que nunca.

 

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Soares: Ditadura e Revolução”, de Maria João Avillez