A primeira parte das respostas às críticas encontra-se aqui. Esta é a segunda parte.
12. O projecto de revisão constitucional que o Observador trouxe a público é tão ideológico quanto a Constituição actual. Diminuir e simplificar a Constituição desta forma não será trocar uma Constituição virada à esquerda por uma Constituição virada à direita?
É difícil dizer que a proposta apresentada consubstancie uma Constituição de direita. “Not that there’s anything wrong with that”, como diria Jerry Seinfeld. É seguramente uma Constituição menos acantonada a um dos extremos ideológicos do que a versão originária da Constituição de 1976. Mas daí a dizer que é uma Constituição de direita vai um passo maior do que as pernas. É uma Constituição que mantém a protecção constitucional tanto da liberdade de iniciativa económica privada quanto do direito à greve e da segurança no emprego, tanto do direito de propriedade quanto do direito à protecção da saúde e do direito à educação. Se é verdade que se reduz o elenco e a densidade dos direitos sociais, também é importante reconhecer que o projecto mantém o carácter solidário da Constituição, não numa perspectiva de caridade, mas numa perspectiva de universalidade da titularidade dos direitos. Em todo o caso, mais do que tomar opções políticas concretas, optou-se por desconstitucionalizar grande parte das matérias. Nuns casos, por se tratar de normas que não estavam já em vigor. Noutros, por se entender que as opções políticas concretas devem caber ao legislador democrático. Se defender o serviço nacional de saúde e a escola pública gratuita é ser de direita, então a proposta apresentada é de direita. TFF
13. Se os autores do projeto de revisão constitucional afirmam na apresentação da sua proposta que a Constituição não precisa de ser revista, então porque é que a decidiram rever?
Estaríamos perante uma verdadeira e condenável incoerência se porventura os autores da proposta pudessem efectivamente iniciar um procedimento de revisão constitucional. Ora, não é manifestamente o caso. E, não sendo o caso, o único efeito que decorre da sua publicitação é o estímulo do debate público, de forma ampla e participada, sobre temas constitucionais. O que é tanto mais relevante quanto é rara a realização de debates, na sociedade portuguesa, que discutam não o que é conjuntural, mas aquilo que é estrutural. Para mais quando, em Portugal, a participação pública extra-partidária assume ainda proporções de incomparável timidez. Dito de outra forma: independentemente da opinião pessoal dos autores de que a Constituição não carece de revisão, o objectivo subjacente à apresentação da proposta era o de criar um ambiente de debate, justamente para se poderem discutir ideias – coincidentes com ou divergentes das dos autores –, inclusive sobre a própria necessidade de se proceder a uma revisão constitucional. TFF
14. Se a Constituição é tão rígida quanto a acusam, como se pode justificar a existência de tantas revisões constitucionais?
A rigidez da Constituição resulta da sua grande extensão conjugada com um regime exigente de revisão constitucional. Apesar disso, a Constituição foi revista sete vezes, tendo algumas das revisões alterado profundamente o texto constitucional. As revisões foram possíveis porque o texto originário da Constituição era incongruente com o consenso ideológico subjacente ao chamado“arco da governação”; as revisões mais profundas limitaram-se, nesse sentido, a aproximar a Constituição das convicções partilhadas por uma maioria esmagadora dos portugueses e regularmente manifestados nos sucessivos momentos eleitorais. GAR
15. As interpretações que ao longo dos anos o Tribunal Constitucional tem vindo a fazer da Constituição não tornam desnecessária uma revisão constitucional?
Sobre esta questão há duas perspectivas possíveis, que correspondem a posições divergentes dentro da própria Comissão Técnica do Observador. De acordo com uma delas (subscrita por GAR), o papel do Tribunal Constitucional é o de garantir a Constituição, não o de promover a sua modificação à revelia do regime da revisão constitucional. Quem invoca a desnecessidade da revisão constitucional com fundamento na criatividade da jurisprudência arriscar-se-ia a abraçar uma posição paradoxal: o principal órgão de garantia da Constituição deveria ser o primeiro a promover a respectiva violação. Diferentemente, uma perspectiva oposta (subscrita por TFF) defende que compete à jurisdição constitucional interpretar e aplicar a Constituição como documento vivo, que se realiza diariamente, e que sofre mutações com o passar dos anos e das realidades e contextos no quadro dos quais é aplicado. Desta perspectiva, o Tribunal Constitucional não só teve um papel histórico na flexibilização do quadro constitucional, como é um instrumento essencial para assegurar a evolução constitucional. GAR e TFF
16. Se a Constituição é tão prolixa quanto a acusam, como se pode justificar que a Constituição nunca tenha sido um verdadeiro problema político até à imposição das medidas de austeridade pelo actual governo?
Não é verdade que a Constituição nunca tenha sido um problema político até à legislatura em curso. A questão constitucional é um traço perene da experiência democrática portuguesa, razão pela qual foi necessário rever a Constituição tantas vezes. Em todo o caso, não foi o texto constitucional, na sua versão atual, que impediu a adopção de algumas medidas de austeridade. Os vários chumbos de medidas de austeridade deveram-se à interpretação que o Tribunal Constitucional fez de um pequeno conjunto de princípios fundamentais muito abstractos – como a igualdade, a proporcionalidade e a proteção da confiança – que integram o património constitucional do Estado de Direito Democrático. Em suma, pode dizer-se que os limites constitucionais à política de austeridade decorreram menos do texto constitucional do que das convicções de uma maioria de juízes do Tribunal Constitucional. GAR
17. A enorme extensão da Constituição tem sido, verdadeiramente, um problema para o país?
É controversa a questão de saber se a Constituição tem sido um obstáculo à adopção de determinadas políticas públicas que devem ser consideradas normais e legítimas numa democracia. A título de exemplo, a Constituição garante a existência de um serviço nacional de saúde geral, universal e tendencialmente gratuito, o que corresponde a uma entre várias opções possíveis em matéria de proteção da saúde; resta saber se esta limitação constitucional impede a prossecução de opções alternativas que têm sido articuladas no debate público, ou, pelo contrário, é mais aberta do que uma leitura apegada à letra pode fazer crer. O que já não pode ser negado é que a prolixidade da Constituição contribui para a intoxicação constitucional do debate público, ao promover a “elevação para o plano constitucional” de controvérsias que deveriam correr os seus termos no plano da política ordinária. Há uma perda real de qualidade, maturidade e transparência da democracia quando as forças políticas caem na tentação de fazer passar as suas opiniões por compromissos constitucionais e quando o debate deixa de incidir sobre os méritos das propostas para se transformar numa charada constitucional em que cada interlocutor se reclama o oráculo da Constituição. GAR
18. A revogação do artigo 7.º da Constituição, que define os princípios que devem nortear as relações internacionais do país, não entraria em conflito com tratados já subscritos por Portugal?
A eliminação do artigo 7.º, essencialmente programático, não sendo na generalidade problemática, levanta algumas dúvidas (legítimas) no que concerne ao seu número 7. Esta disposição permite a adesão ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (sem a formulação de reservas que, de todo o modo, sempre seriam inadmissíveis de acordo com o artigo 120.º do próprio Estatuto). Isto, porque o artigo 33.º, n.º 4, da Constituição determina que “só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se, nesse domínio, o Estado requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada”. Considera-se que este artigo, em si, não tornaria inconstitucional a disposição daquele tratado que permite a aplicação da prisão perpétua, uma vez recebido na ordem jurídica portuguesa. O que seria inadmissível seria a entrega de indivíduos sem prévia garantia, por parte do Tribunal Penal Internacional, de que a referida pena não seria aplicada ou executada. De todo o modo, concorda-se que seria mais prudente manter-se uma disposição de teor idêntico ao do artigo 7.º, n.º 7, da actual Constituição no texto constitucional. TFF
19. Se, como diz Vital Moreira, “uma economia de mercado precisa de uma defesa ativa da concorrência”, a eliminação da chamada “Constituição económica” não representa um grande perigo de desregulação?
A questão de saber quais os pressupostos de uma economia de mercado, nomeadamente em matéria de política da concorrência, é um assunto que divide a opinião pública das democracias pluralistas, que percorre o longo arco que vai do pensamento neoliberal ou libertário à social democracia ou ao socialismo democrático. A Constituição não deve tomar partido nessa controvérsia, sob pena de perverter a sua identidade democrática. Acresce que a “defesa activa da concorrência” é hoje promovida através do direito da União Europeia, muito vasto e elaborado nessa matéria, pelo que não há qualquer risco, desse ponto de vista, na eliminação da Constituição económica. GAR
20. Como se viu na última crise, foram princípios constitucionais, e não a Constituição económica ou os direitos sociais, que levaram ao chumbo das medidas do Governo. Para quê eliminar a Constituição económica, então?
A eliminação da Constituição económica obedece sobretudo a preocupações de natureza simbólica. Os textos constitucionais, mais ainda do que a generalidade dos textos legais, não devem estar sobrecarregados de material supérfluo, sob pena de degradarem a sua natureza fundamental. Ora, após as várias revisões constitucionais e o desenvolvimento da integração europeia, a constituição económica perdeu uma grande parte do seu sentido e da sua força jurídica. Nos poucos domínios em que os preserva, maiores são as razões para a sua revisão, na medida em que a organização da economia, ao contrário da organização do poder político e da proteção dos direitos fundamentais, é por excelência um assunto do foro da legislação ordinária. GAR
21. Ainda segundo Vital Moreira, “a Constituição que existe é muito mais pluralista do que a vossa, porque permite aos liberais fazer o que quiserem e a um governo de esquerda corporativista fazer o que quiser”. Esta proposta impede um governo de esquerda corporativista fazer o que quiser?
Não é verdade que assim seja. A proposta de eliminar a Constituição económica fundamenta-se, em primeiro lugar, com o facto de ela simplesmente não estar em vigor. Foi substituída pela Constituição económica europeia, assente na tutela da concorrência, das liberdades de circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais, e dos direitos dos consumidores. Mas prende-se, também, com o facto de se considerar que a escolha do modelo económico compete ao legislador democraticamente eleito. À Constituição não cabe determinar a “eliminação do latifúndio”, o “redimensionamento do minifúndio” ou as “formas de exploração da terra alheia”. Incumbe-lhe, sim, proteger o direito à greve e a liberdade sindical, ao mesmo tempo que salvaguarda o direito de propriedade e a liberdade de iniciativa económica privada. São esses, necessariamente, os pontos cardeais de uma Constituição económica de um Estado de direito. E, neste contexto, um eventual Governo de esquerda colectivista poderia também executar o seu programa. As nacionalizações, enquanto ablações do direito de propriedade privada, continuariam a ser permitidas, desde que respeitassem (como todas as restrições a direitos fundamentais) os princípios constitucionais estruturantes da República portuguesa. TFF
22. Será que a nova proposta tem, como Jorge Pereira da Silva e Luísa Neto defenderam na conferência constituinte do Porto, uma “profunda obsessão com a partidarização da justiça constitucional”, quando essa partidarização está longe, até hoje, de ter sido demonstrada?
Todos os estudos empíricos de comportamento judicial feitos em Portugal demonstram que a fiscalização preventiva da constitucionalidade é, em alguma medida e mais do que os outros tipos de processos, politizada. Entre outros factores, os juízes do Tribunal Constitucional – como, de resto, qualquer outra pessoa o faz nos seus processos decisórios – têm em conta os seus posicionamentos ideológicos nas decisões que tomam. E, por vezes, estes posicionamentos ideológicos coincidem com os partidos que os elegeram para o lugar. No que à fiscalização preventiva portuguesa diz respeito, como se disse, está estudado e provado. Mas não se trata de algo muito diferente do que acontece nas jurisdições constitucionais estrangeiras. Efectivamente, todos os estudos de comportamento judicial conhecidos, em particular no que concerne a tribunais da cúpula dos vários ordenamentos jurídicos, demonstram isso mesmo. Se tomar em linha de conta dados empíricos para tomar decisões no que toca à escrita de enunciados normativos é ter uma obsessão, então sim, há uma obsessão com a adequação do texto à realidade. TFF
23. A proposta de revisão constitucional exige um escrutínio maior dos nomes propostos para o Tribunal Constitucional. Ao escrutinar-se publicamente um cargo que se quer recatado, não se estará a correr o risco de causar algumas humilhações públicas e de afastar os melhores do Palácio Ratton?
O recato quer-se no exercício do cargo – daí propor-se, aliás, a eliminação da fiscalização preventiva. No quadro de uma república democrática e de um Estado de direito, a designação de titulares de um órgão de soberania cuja função é o controlo de constitucionalidade (e, portanto, também dos direitos fundamentais dos cidadãos) deve ser publicamente escrutinada. O modelo proposto, de resto, nem é original, sendo praticado, com mais ou menos variações, noutras jurisdições. O risco de que alguns se afastem é compensado pelo benefício da transparência. TFF