Aperte o cinto e prepare-se para uma viagem às profundezas da Constituição da República Portuguesa de 1976. O destino? O (controverso) artigo 17º da Lei Fundamental:

“O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos direitos enunciados no título II, aos direitos fundamentais dos trabalhadores, às demais liberdades e ainda a direitos de natureza análoga, previstos na Constituição e na lei”.

Não percebeu? Não se preocupe. Quase 40 anos depois, a interpretação do artigo 17.º continua a dividir académicos e a alimentar discussões nos bancos das universidades de Direito. E tudo por causa da expressão “direitos de natureza análoga”. Mas o melhor mesmo é começar pelo início.

Na prática, a Constituição consagra fundamentalmente dois tipos de direitos: os direitos, liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e culturais. Os primeiros abarcam, por exemplo, os direitos à liberdade, à vida, à identidade, ao bom nome e à intimidade. No fundo, são todos aqueles direitos que não precisam de estar consagrados na lei ordinária para estarem garantidos – a Lei Fundamental já o faz.

Com os segundos, a história é ligeiramente diferente. O regime dos direitos económicos, sociais e culturais agrupa, por exemplo, o direito à saúde, o direito à educação e o direito à habitação. E todos eles têm um detalhe em comum: apesar de serem direitos fundamentais, têm de ter um suporte e uma materialização na lei ordinária. Ou seja, dependem da atuação do legislador.

Simplificando, dentro dos direitos fundamentais há direitos de primeira e de segunda categoria. E é aqui que entra o artigo 17.º da CRP de 1976 e a expressão “de natureza análoga”: esta norma foi pensada para servir de ponte entre as duas grandes categorias de direitos e, assim, permitir a migração de um direito de segunda categoria para o clube dos direitos de primeira categoria. Criava-se assim uma série de imposições e de linhas vermelhas que o legislador não podia ultrapassar.

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As divisões doutrinárias que ainda hoje existem começam precisamente neste ponto. Se, por um lado, há quem defenda que os dois tipos de direitos fundamentais são irmãos gémeos” e que, nesse sentido, têm praticamente o mesmo valor constitucional, há outros que consideram os direitos económicos, sociais e culturais filhos bastardos” da Constituição, por não estarem constitucionalmente determinados. Ou seja, estão dependentes da ação do legislador.

Controvérsias à parte, o artigo 17.º acabou por servir dois donos: a via liberal, pois foi pensada por Jorge Miranda para salvaguardar, por exemplo, o direito de propriedade e de iniciativa privada; e a via socializante, porque foi imaginada por Vital Moreira, então deputado do PCP, para proteger o direito dos trabalhadores. Foi a solução intermédia e o acordo possível entre duas visões tão diferentes para o futuro do país.

Mas, afinal, quem é mesmo o pai do artigo 17.º da Constituição?

Jorge Miranda, deputado constituinte, é considerado por larga maioria o pai da Constituição. Ele e Vital Moreira, claro. Apesar de os dois concordarem em reconhecer a influência de um e de outro no documento final, a autoria do controverso artigo 17.º é disputada por ambos.

Ou melhor, em Coimbra, na segunda Conferência Constituinte organizada pelo Observador, Vital Moreira revelou que ele e Jorge Miranda, encarregues da redação final do texto da Constituição em 1976, acrescentaram o artigo 17.º, que versa sobre o regime dos direitos, liberdades e garantias. A Assembleia Constituinte acabou por aprovar o relatório e a redação final da proposta da Constituição, incluindo esse artigo, que nunca chegou a ser discutido em plenário.

A 13 de maio, no entanto, Jorge Miranda, num colóquio sobre a Assembleia Constituinte realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, acabou por corrigir o seu colega: “Com o devido respeito, quem fez o artigo 17.º fui eu próprio.” Mas, afinal, quem é o pai do artigo 17.º da Constituição? 

Ao Observador, Vital Moreira preferiu colocar alguma água na fervura: “Não há nenhum contradição entre mim e Jorge Miranda. Nunca disse que tinha sido eu a redigir o texto; sempre disse que foi um trabalho a dois. Eu propus a equiparação; Jorge Miranda concordou e redigiu a proposta; eu concordei, tal como toda a comissão de redação.”

Além disso, o constitucionalista fez questão de lembrar que o “aditamento do artigo 17.º não foi clandestino nem nunca constituiu um segredo”, ao contrário do que muita gente acredita.

O artigo viria a ser alterado na revisão constitucional de 1982 para a redacção atual: “O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga.” Assunto resolvido. Ou talvez não.