O atelier de Joana, em nome próprio, que inaugurou em meados de 2009, fica na Rua da Boavista, no Cais do Sodré lisboeta. Volta e meia Joana subia ao Chiado, e volta e meia dava por si a contemplar, a perder de tempo e a perder de encantamento, as dez montras da Hermès, ao cruzar da Rua António Maria Cardoso — as únicas da marca de luxo francesa em Portugal (a Hermès registou em 2014 um volume de negócios recorde de 4,1 mil milhões de euros). Certa tarde, Joana resolveu entrar e dar-se a apresentar. Queria ser ela uma das cenógrafas das montras, senão de todas, de uma só; senão a cenógrafa por inteiro, uma colaboração que fosse, e isso era-lhe o quanto baste.
“Eu sou uma fã confessa da Hermès. E sou-o por várias razões: por ser tudo manufaturado, com rigor, não há produção em série, uma produção desmedida, a seleção dos materiais a usar, do design, tudo é pensado para que nada desvirtue a história e a tradição de uma casa que é, hoje como há mais de cem anos, um negócio de família. Mas é engraçado que, com tanto de old schoolness [Joana faz amiúde uso de anglicismos, afinal, viveu parte da sua vida adulta no Reino Unido] que a Hermès tem, há da parte deles uma abertura permanente à participação de criativos tão avant-garde. Foi por isso que entrei, que me apresentei à diretora da loja, a Mónica Guimarães, e lhe perguntei se podia cenografar uma das montras — eu sabia que era improvável ela dizer-me que sim, mas também sabia que eu já não era propriamente um nome sem valor, sem obra, uma miúda que saiu hoje da universidade e teve um devaneio ou uma epifania à porta da Hermès. Era uma arquiteta; se tinha que questioná-la, era o momento de o fazer”, recorda.
Em bom tempo o fez. Filipe Faísca, o criador de moda que durante anos fez a cenografia das montras da Hermès, não o continuaria a fazer dali em diante, e a casa parisiense já tinha dado início à seleção de um novo cenógrafo para a loja da capital.
“A Mónica sugeriu-me que lhe enviasse o meu portefólio. Enviei-o no próprio dia, no último minuto — vê tu bem se eu não tivesse entrado na loja naquela hora! –, seguiu para França com outros três, foi avaliado como os restantes, e quinze dias mais tarde já me tinha sentado à mesa com a diretora ibérica da Hermès para discutir como e quais as montras que viria a cenografar. As primeiras que fiz, e faz já um ano, foram as do último verão”, explica.
A flanar por Lisboa de olhos na Hermès do Chiado
A última campanha da Hermès para TV (partilhamos o vídeo abaixo) impressiona pelo conceito, pela luz e pela fotografia, mas também por ser integralmente rodada em Lisboa. A montra de Joana Astolfi foi um dos destaques do anúncio. “Se me surpreendeu? Sim. Mas eu creio que Lisboa está muito ligada ao tema da flânerie [em português, flanar ou flainar, o ato de passear-se sem destino, vagueando por distração], tal como Paris — mas se calhar fazê-lo em Paris seria um pouco óbvio, não? Ligaram-me, pediram-me que criasse, que idealizasse uma montra só para o anúncio, e foram dias de muito trabalho, mas de muita aprendizagem de todos e com todos”.
A Hermès desafia os cenógrafos com um tema anual. Ao todo, são quatro estações e quatro montras — em Lisboa, são dez as vitrinas à disposição de Joana Astolfi. Em 2014 o tema foi a metamorfose; em 2015, a supracitada flânerie. “O tema não é voyeurismo, o ver por ver, mas a contemplação.” Em cada tema, Joana procura sempre um subtema, uma direção a seguir. “Na cenografia anterior, a direção foi a dos pássaros, que para mim são os grandes flâneurs, que sobrevoam a cidade, a observá-la. Na atual, entrámos pela direção da fotografia, que é o instrumento que mais usa o flâneur, para registar o que ele vê”, explica.
A cenografia é minuciosa e exige-lhe meses de preparação prévia. O processo de montagem, no mínimo, toma a Joana um mês. Às vezes mais. “O meu conceito é entregue à Hermès com quase três meses de antecedência, mas só na última semana é que eu sei qual é o produto que vou ter em exposição. É claro que a diretora da loja me diz antecipadamente que a Hermès pretende dar destaque a um determinado produto. Também sei que no verão tenho de trazer as montras para um mood de verão, com sandálias ou biquínis. Por vezes, tenho que selecionar uma peça com meses de antecedência, como é o caso da última montra que fiz, na qual o padrão da camisa de homem é igual ao padrão do papel de parede. Mas a Hermès não tem por hábito guardar as peças das montras durante três meses, até porque a loja recebe pouco de cada artigo e os clientes que tem, são os clientes fidelizados à marca.”
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Joana firma e reafirma um ponto: o cuidado a ter com a parte conceptual e da ideia é tão importante quanto o cuidado a ter com a parte da execução e do rigor da execução. “Se quero trabalhar com a Hermès, só posso trabalhar assim. As montras são para a marca um grande investimento, como que um presente para a cidade, uma galeria a céu aberto para a cidade.”
A arquitetura “nos genes” e a ida para a FABRICA da Benetton em Itália
Joana Astolfi formou-se como arquiteta na University of Wales, no Reino Unido. O pai também o é. A mãe, galerista. “Eu cresci no meio desse mundo, desses dois mundos.” E por isso viveu sempre na indecisão de seguir Arquitetura ou Belas Artes. Vingou o ofício do pai — “É que a arquitetura abre incontáveis opções, oportunidades que as Belas Artes não abrem” –, mas Joana não quis ser “uma arquiteta da megalomania, de projetar os grandes aeroportos ou os grandes hotéis”.
Interessava-lhe — sempre lhe interessou — o pormenor que há nos lugares pequenos, a história que se conta pelos objetos que povoam os lugares pequenos. Foi ela, Joana Astolfi, quem pensou o atelier dos criadores de moda Storytailors, no Chiado, repensou o interior do Goodnight Hostel, na Baixa lisboeta e fez instalações no Cantinho do Avillez e no Belcanto, dois restaurantes do chef José Avillez.
Mas a grande mudança deu-se em 2002, tinha Joana 27 anos, e eis que foi convidada a integrar a FABRICA (o Centro de Pesquisa Criativa da Benetton), em Veneza. Viveu lá durante dois anos, fez-se uma artista, uma designer, e não só arquiteta, expôs Europa afora e até no Japão, ou, como orgulhosamente nos relembra, foi a responsável pela exposição “Canova”, em Itália, a maior retrospetiva de sempre do escultor setecentista António Canova — uma exposição que seria nomeada para o Prémio Nacional de Design italiano.
“Não, não fazemos nada relacionado com roupa, nem lá perto. [Risos] A Benetton é um think tank. É o maior think tank do mundo. São uns sessenta e tal criativos, e o que fazem é bombar ideias. Vivemos completamente isolados, num lugar magnífico, idílico, desenhado por um arquiteto japonês, a uns vinte ou trinta minutos do centro de Veneza, em Treviso.” Joana foi a primeira entre os portugueses a ser aceite no Centro da Benetton. “Como? É muito, muito difícil de se entrar na FABRICA. Em Lisboa, houve uma “FABRICA Portefolio Days” no âmbito da bienal Experimentadesign, eu concorri e fui a selecionada de entre duzentas ou trezentas candidaturas. Foi um twist total na minha vida e no modo como concebo a arte”, explica.
Das sapatarias e das chapelarias da Rua Direita à Hermès… de Barcelona
Em 2013, a Câmara Municipal de Viseu convidou-a para realizar uma intervenção artística em 15 lojas da Rua Direita. Ainda longe de se imaginar como cenógrafa da Hermès em Lisboa, Joana Astolfi trabalharia pela primeira vez com montras e cenografia de montras a norte. Um cenário e uma matéria-prima bem diferente da que dispõe hoje. “A Rua Direita encontrava-se, na altura, completamente sem vida, sem comércio, sem gente — um reflexo da quantidade de centros comerciais que foram inaugurados em volta. O desafio era dar-lhe um push, trazer a cidade de volta à Rua Direita.”
Fê-lo em colaboração com 20 estudantes finalistas do curso de Arquitetura da Universidade Católica de Viseu. A grande maioria dos proprietários tinha mais de 70 anos, pelo que, confessa Joana, mais do que um trabalho de arquitetura, design ou criatividade, este foi um trabalho “quase terapêutico” com todos e cada um deles. “Hoje, à distância, digo e revejo que foi um sucesso. Mas tive que me mudar para Viseu — aliás, mudou-se todo o meu atelier comigo — durante um mês e meio. Foi a primeira vez que intervim em montras. Não são montras como as da Hermès, são montras de pantufas artesanais ou de chapelarias”, conta.
Não se considera vitrinista. Não o foi em Viseu, no começo, nem hoje o é, na Hermès, nem futuramente o será no que por aí vier de montras. “Eu digo-o sempre — e tenho sido muito abordada para fazer novos trabalhos desde que cenografei a primeira montra da Hermès –, que não sou vitrinista e não vejo nada de vitrinismo no trabalho que faço; vejo-o como cenografia. É teatral, transporta-nos para um universo de fantasia. É sobretudo isso: fantasia. É o tipo de trabalho que nos faz viajar. Parar, contemplar e viajar”.
A viagem seguinte será até à ciudad condal, Barcelona. “É verdade. Fui convidada para cenografar a montra da Hermès lá. Foi inesperado, sim. E rápido. Ando a mil à hora. [Risos] Em meados de agosto faço a montra da loja, que é no Passeig de Gràcia. A Hermès gosta que Portugal tenha um designer português, que Espanha tenha um designer espanhol, o que não quer dizer que não se faça uma partilha, um intercâmbio de cenógrafos. Eu vou lá precisamente como artista convidado: chamam-lhe um artist window.”
Em Portugal, brevemente, assim a agenda lho permita, Joana Astolfi fará as montras dos vinhos Esporão, também da loja A Vida Portuguesa, no Porto, e de uma célebre relojoaria do Rossio, a Ferreira Marques. “Honestamente? E isto é mesmo a sério: dá-me igual prazer ser cenógrafa para a Hermès como para uma loja de pantufas artesanais em Viseu, com para um lojista septuagenário e que nada sabe do que é o design. O desafio é o mesmo, a execução é que é diferente. Mas o desafio para mim é sempre enorme, é sempre um desafio”, conclui.