Sem diretos montados, sem microfones nem câmaras fotográficas à vista, Catarina Martins veio até ao foyer do cinema São Jorge, em Lisboa, para falar aos resistentes que aqui ainda se encontravam, era já 00h50. Calças de ganga, camisa azul, sem maquilhagem, agradeceu a todos e falou: “A contagem dos votos está fechada para o Bloco de Esquerda, elegemos 19 deputados, tivemos a maior percentagem de sempre e o maior número de votos de sempre. Em Lisboa, elegemos cinco deputados, o que quer dizer que o plenário da Assembleia da República vai passar a ter rampas”, numa alusão a Jorge Falcato, arquiteto, eleito deputado por Lisboa, que se desloca numa cadeira de rodas.

Ouviu palmas, sorriu mais uma vez e voltou a falar: “Estou extraordinariamente cansada e vou-me embora. A partir de amanhã vamos ter muito trabalho para fazer. Há muitos portugueses que vivem no estrangeiro que não conseguiram votar e não deixaremos de os defender”. Disse adeus, meteu o telemóvel no bolso de trás das calças e desceu as escadas sozinha.

A noite começou da melhor maneira para os bloquistas. As projeções davam-lhes o que nunca as sondagens lhes deram: a terceira força política mais votada nas eleições legislativas e a possibilidade de suplantarem os 16 deputados que tinham conseguido eleger em 2009. Entre o tempo que mediou o comentário à taxa de abstenção por Ricardo Moreira, dirigente do Bloco, e o tempo que a seguir dedicou a dar comida à filha pequena, as projeções começaram a materializar-se.

“Ó Sandra!”

A cada deputado que era eleito — e ainda antes de as televisões o anunciarem — alguém tratava de gritar bem alto na sala. “A Mariana e o Pedro Filipe já estão!”. Eram os primeiros por Lisboa. Mais tarde, outra voz fazia ouvir-se na sala: “Ó Sandra!! Ó Sandra!!” Era Sandra Cunha, número dois da lista por Setúbal, que logo se abraçou a Joana Mortágua, irmã gémea de Mariana Mortágua e cabeça de lista pelo mesmo distrito.

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O resultado que foi crescendo animava os bloquistas, mas os sentimentos misturavam-se de cada vez que se apercebiam que a coligação ia mesmo vencer as eleições. Incrédulos com a convicção da CDU, que desafiava Costa a não deixar passar um governo minoritário PSD/ CDS quando o cenário da maioria absoluta ainda estava em aberto, foram sendo cautelosos nas palavras, mas era quase impossível não se denunciarem. “Perdendo a maioria absoluta, perdem o Governo”, afiançava Pedro Filipe Soares.

Mas o repto final estava destinado a ser feito por Catarina Martins, que subiu ao palanque ao som de palmas e gritos de “É Bloco, é Esquerda, É Bloco de Esquerda!”. Catarina encosta o PS à parede e diz que “não será pelo Bloco de Esquerda que a direita conseguirá formar governo”. E acrescenta: “Se o Presidente da República, por filiação ou pouca atenção aos votos, convidar a direita a formar governo, saiba que o Bloco vai rejeitar essa possibilidade no parlamento. Esperamos agora resposta dos outros partidos. A do Bloco é clara”.

Passo seguinte. Tudo à espera do discurso de António Costa. “Olha o som! Sobe o som!” Costa ia falar na televisão e pediu-se silêncio na plateia. O filme que tinha começado com os desafios do Bloco e da CDU ia agora ter a resposta do protagonista. Mas Costa não convenceu ninguém, nem tão pouco deixou os bloquistas descansados. A pouco menos de meio do discurso já todos falavam uns com os outros e saíam e entravam do foyer para a varanda do cinema. Não havia desfecho à vista.

Os bloquistas já sabiam por esta altura então que a coisa estava a correr bem. Muito bem. Afinal as sondagens que tanto acertaram lá em cima desacertaram mais abaixo, quando sempre colocaram o Bloco abaixo da CDU. Mas nada fazia prever o que aconteceria a seguir. O Bloco elegeu um deputado na Madeira. Na Madeira. Catarina estava por esta altura na varanda do cinema. E achou talvez que lhe estavam a contar uma história demasiado boa para ser verdade. Por isso despediu-se das pessoas com quem estava a conversar dizendo: “Desculpem mas eu tenho de ir lá abaixo que ainda não consegui digerir isto de termos eleito um deputado na Madeira”. E lá foi.

No Bloco estavam quase todos, menos aqueles que foram saindo no último ano, e foram algumas figuras de peso. Mas cá estava Mariana Mortágua, cá estava Luís Fazenda, cá chegou Marisa Matias, triste por ter passado esta noite histórica para o partido metida num estúdio de televisão.

Está consumada a sucessão

E cá esteve Francisco Louçã.  Foi por volta das nove e meia da noite que chegou ao cinema São Jorge. Chegou sorridente, os jornalistas rodearam-no com perguntas e Louçã mostrou o contentamento pelo resultado que, já se sabia, seria histórico para o Bloco de Esquerda. Em 2009, com Louçã ao leme, tinham conseguido eleger 16 deputados. Àquela hora, porém, já todos sabiam que esse número ia ser ultrapassado. Louçã respondeu às perguntas dos jornalistas e já com os microfones e os gravadores desligados disse que gostava muito de, agora, poder falar à vontade, sem a pressão da liderança. As respostas às perguntas mais difíceis deixou-as para Catarina Martins, a quem felicitou pelo excelente trabalho.

E quando se lhe perguntou como era isto de deixar de ser o líder com o melhor resultado de sempre, se afinal o Bloco tinha encontrado uma sucessora à altura, sorriu e disse que “não há sucessores, há gente que se bate”.

Em 2009 Francisco Louçã era o timoneiro do partido. Muitos achavam que o partido não sobreviveria sem ele. A liderança bicéfala, com Catarina Martins e João Semedo, começou mal e o ano que passou não foi dos melhores para o Bloco. Houve divisões, contestações, saídas, novos partidos que tentaram crescer. Mas quem crescia afinal era Catarina. Ganhava nos debates, somava pontos na campanha, ao lado de Mariana Mortágua, a deputada que dobrou Zeinal Bava e Ricardo Salgado na comissão de inquérito ao BES.

Fernando Medina, presidente da câmara de Lisboa, dizia, num tom que muitos acusaram de paternalista, que Catarina Martins e Mariana Mortágua eram muito simpáticas e inteligentes. Pode acrescentar agora que são também ganhadoras. No cinema São Jorge, o Bloco teve direito ao seu final feliz… Pelo menos até à próxima sessão.