Foi uma cerimónia de abertura do Ano Judicial atípica por ser a última do Presidente da República Cavaco Silva e da ministra da Justiça mas houve uma coisa que não mudou: o ataque cerrado da Ordem dos Advogados a Paula Teixeira da Cruz e ao governo PSD/CDS.
As críticas e as palavras duras de Elina Fraga dirigidas à ministra da Justiça são um ponto comum a todas as cerimónias em que a bastonária da Ordem dos Advogados participou – quase se comportando como uma espécie de líder de oposição à ministra da Justiça. Seguindo um pouco o estilo do seu antecessor Marinho e Pinto, a advogada de Mirandela atacou o “mundo virtual do sucesso das reformas propagandeadas”, criticou a “produção esquizofrénica de legislação” e apontou à mira a uma das principais reformas de Teixeira da Cruz: a novo Mapa Judiciário. Isto é, a reorganização judicial que obrigou ao encerramento de diversos tribunais no interior do país e à fusão de outros tantos.
As reformas na Justiça impostas de forma autocrática, por quem não conhece as assimetrias do país, as desigualdades das suas populações, os ritmos e as culturas diferentes das terras, estão condenadas a estimular o descrédito, que já reina relativamente a todas as instituições democráticas, e em particular na própria Justiça”, afirmou a bastonária.
Para Elina Fraga, o novo mapa judiciário fez com que os “tribunais ficassem mais lentos” devido a uma concentração mal feita, fez com que os “tribunais ficassem mais afastados dos cidadãos por estarem concentrados nas capitais dos distritos” e fez com que os “tribunais ficassem menos independentes” devido a mudanças nos órgãos de gestão. Por isso, a bastonária da Ordem dos Advogados sentencia: “Importa corrigir o mapa judiciário!”
Citando Francisco Sá Carneiro (“uma democracia que não se defende vigorosamente não tem o direito de sobreviver”), a também militante do PSD falou da necessidade de continuar o combate à corrupção, sem, contudo, deixar de criticar o sistema de justiça. “Urge assumir um combate sério à corrupção, cancro que mina os alicerces da democracia, abandonando-se a opção propagandística da mediatização do caso concreto através de fugas cirúrgicas para a comunicação social e da violação do segredo de justiça, que satisfazendo o espírito justiceiro dos que julgam na praça pública, não garante a transparência e a igualdade de oportunidades”, afirmou.
Com a excepção de Elina Fraga e de Joana Marques Vidal, os restantes intervientes na cerimónia preferiram o silêncio quando o processo que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates, suspeito da prática dos crimes de corrupção passiva para ato ilícito, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.
Na opinião de Elina Fraga, e contrariando a visão do governo, “Portugal não está mais à frente na área da Justiça”. A bastonária, contudo, ainda não perdeu a esperança e diz esperar um novo ministro da Justiça com uma “verdadeira cultura democrática”.
Henriques Gaspar ataca o “neo liberalismo” da privatização da justiça
Já Henriques Gaspar, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi muito mais moderado, como é seu timbre, mas não deixou de fazer um primeiro balanço do novo mapa judiciário.
Segundo o líder da magistratura judicial, a reforma do governo PSD/CDS padece dos seguintes problemas:
- “Carência de oficiais de justiça, transversal a todas as comarcas em maior ou menor grau”, sendo que o “concurso que recentemente terminou”, “um primeiro passo para atenuar as dificuldades”;
- “A garantia do direito ao acesso ao tribunal em matérias” como as de “família e menores, em que as finalidades da especialização colidem com a efectiva proximidade da justiça”, aconselhando “a extensão a outras comarcas da solução da atribuição de competência às instâncias locais já prevista na lei”;
- “A imediata concentração nas secções das instâncias centrais de execução e comércio das pendências repartidas por todos os anteriores tribunais da área territorial abrangida, e que gerou pendências de muito difícil gestão”;
- “A necessidade de dados fiáveis e de estudos de campo sobre a eficácia da acção executiva, apontando alguns dados empíricos para níveis preocupantes”;
- e “a conveniência na reponderação de algumas competências territoriais das secções de instâncias centrais de instrução criminal”.
O também líder por inerência de funções do Conselho Superior da Magistratura (o órgão de auto-governo e disciplinar dos juizes), não deixou de criticar a não aprovação do Estado dos Magistrados Judiciais , garantindo que “os juizes não compreendem as razões deste acidente”.
Mas a sua crítica mais forte, acabou por ser dirigida aos mecanismos legais que permitem a resolução de conflitos fora dos tribunais – área em que os sucessivos governos têm apostado desde o tempo de Durão Barroso para retirar processos dos congestionados tribunais. Diz o juiz conselheiro:
Para além da ambiguidade da desjudicialização, e da ausência de teste do efeito útil das diversas mediações, somos confrontados de várias fontes por insistente indução ideológica à fuga do contencioso para formas de justiça privada. Numa palavra, um caminho para a privatização da justiça, que quer realizar a utopia neoliberal de dispensar o juiz, ficando os tribunais da República numa função residual”
Joana Marques Vidal realça os “passos significativos” na “investigação à corrupção”
Também Joana Marques Vidal, procuradora-geral da República, criticou o governo por não ter aprovado o Estatuto do Ministério Público. Apesar de reconhecer que “ano transato não foi fácil para o Ministério Público” devido à instabilidade provocada pelo novo Mapa Judiciário e da “quebra de funcionamento do sistema informático”, Marques Vidal enfatizou que os “resultados foram claramente positivos, principalmente nas áreas de competência dependentes da intervenção do Ministério Público”.
A líder da cúpula do Ministério Público fez questão de afirmar que “o tempo médio de duração dos inquéritos é cada vez mais curto e concretizou-se a finalização dos inquéritos mais antigos. O recurso às formas processuais simplificadas, como os processo sumário, abreviado e sumaríssimo e a aplicação da suspensão provisória do processo aumentaram significativamente, cifrando-se atualmente em 60%. E a taxa de condenações em julgamento é superior a 80%”
Com um estilo claramente diferente, Joana Marques Vidal não recorreu a uma oratória de senadora romana para falar da necessidade de continuar o combate à corrupção, preferindo enfatizar no seu estilo sereno que “no que tange à criminalidade grave, complexa e violenta, bem como à criminalidade económico-financeira, à corrupção e ao branqueamento de capitais se deram passos significativos, não só na investigação e na cooperação judiciária internacional, como na qualidade e no número de acusações deduzidas e das sentenças condenatórias que sobre muítas recaíram”
Palavras significativas de uma procuradora-geral da República que terá sempre os casos Sócrates e Grupo Espírito Santo/Banco Espírito Santo como as principais marcas do seu mandato.
Joana Marques Vidal prometeu ainda divulgar em breve um plano de luta contra a cibercriminalidade e o programa de ação do Ministério Público contra a corrupção.
Ao contrário de Henriques Gaspar, que apenas se despediu de Cavaco Silva , a procuradora-geral da República fez questão de “desejar as maiores felicidades” a Paula Teixeira da Cruz, “acreditando que a sua palavra sempre se fará ouvir na defesa do estatuto constitucional do Ministério Público”.