A importância da primeira frase. Será esta uma boa frase para um artigo sobre primeiras frases, a propósito do lançamento do mais recente romance de António Lobo Antunes? Talvez não, mas já lá vamos. Nesta terça-feira, chega às livrarias Da Natureza dos Deuses, editado pelas Publicações D. Quixote, chancela do grupo Leya. Este é o 26.º romance do escritor, cujo título é homónimo de uma obra de Cícero, De Natura Deorum (45 a.C.).
Muitos autores e críticos literários fazem referência ao poder da primeira frase de um romance. E há listas das melhores primeiras frases da literatura para todos os gostos: as 10 melhores (do Guardian), as 30 melhores (do The Telegraph), as 50 melhores (do Gawker Review of Books), as 100 melhores (da American Book Review). “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gênesis 1:1) é a primeira frase do livro mais livro mais lido de sempre, a Bíblia. (Conheça outras sete primeiras frases de livros em português, na fotogaleria acima.)
Para muitos, o início de um livro deve “agarrar o leitor pelos colarinhos” e puxá-lo para dentro da história, deixar o leitor intrigado e com vontade de saber mais. “A frase de abertura deve convidar o leitor a começar a história. Deve dizer: ‘Ouça. Entre. Você quer saber sobre isto'”, disse Stephen King, o mestre do terror, numa entrevista à Atlantic.
E nos romances de Lobo Antunes, como é? Por causa do seu particular uso da pontuação, balizar a primeira frase do escritor português é muitas vezes difícil: sabemos onde começa, nem sempre sabemos onde acaba. Como pode ver pelos exemplos em baixo, é fácil perceber onde entramos, mas já é mais difícil descobrir em que momento pisamos o tapete da entrada, ou em que instante metemos a mão na maçaneta, ou se ainda nem sequer passámos da porta.
O lugar geográfico de Da Natureza dos Deuses é Cascais e a linha do Estoril; e o lugar simbólico deste romance de 576 páginas são os “meandros do mundo tenebroso do poder”, escreve Norberto do Vale Cardoso, na Visão. O mundo é o dos banqueiros e o poder, o económico: “o avô da Senhora um estabelecimentozito de câmbios, o pai da Senhora dono de bancos” (p. 20); “o pai da Senhora dono de bancos, companhias, ministros e nisto a chuva lá fora” (p. 20). Reconhece estes personagens e este mundo? Da Natureza dos Deuses retrata a ascensão e queda de uma família de banqueiros. “Uma coincidência literária e involuntária com a realidade,” lê-se na pré-publicação feita pelo Diário de Notícias (link só para assinantes), uma vez que o romance foi escrito há dois anos. Sobreposição com a realidade à parte, provavelmente não diria do que trata o romance através das primeiras frases do livro. Fique com o excerto inicial e relembre o início dos outros 25 romances do escritor.
Da Natureza dos Deuses (2015)
“Mandaram‐me pela primeira vez a casa da Senhora mais ou menos na altura em que encontrei o sem abrigo a dormir no degrau da livraria e palavra de honra que só dei por ele no momento em que tirei a chave da carteira para abrir a porta, ou antes duas chaves na argola com um ursinho de pano a que faltava o olho direito, a boa e uma segunda de que continuo a ignorar a serventia, desde pequena que as chaves me intrigam, misteriosas, secretas, introduzindo‐as na fechadura abrem o quê, se lhes perguntasse
– Abrem o quê?”
Memória de Elefante (1979)
“O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante: – A quotazinha da Sociedade, senhor doutor.”
Os Cus de Judas (1979)
“Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fios de rebuçado na concha da língua.”
Conhecimento do Inferno (1980)
“O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem: estendem conscienciosamente as toalhas na serradura da areia, protegem-se com óculos escuros do sol de papel, passeiam encantados no palco de Albufeira em que funcionários públicos, disfarçados de hippies de carnaval, lhes impingem, acocorados no chão, colares marroquinos fabricados em segredo pela junta de turismo, e acabam por ancorar ao fim da tarde em esplanadas postiças, onde servem bebidas inventadas em copos que não existem, as quais deixam na boca o sabor sem gosto dos uísques fornecidos aos figurantes durante os dramas da televisão.”
Explicação dos Pássaros (1981)
“– Um dia destes dou à praia aqui, devorado pelos peixes como uma baleia morta – disse-me ele na rua da clínica olhando os prédios desbotados e tristes de Campolide, os monogramas de guardanapo dos anúncios luminosos apagados, os restos de purpurina das boas-festas das montras, um cão que vasculhava, na manhã de janeiro, o monte de lixo de um edifício demolido: caliça, pó, pedaços de madeira, bocados de tijolo sem alma.”
Fado Alexandrino (1983) “Saiu a arrastar a mala, misturado com os colegas, do edifício desbotado do quartel, e distinguiu logo, do outro lado das grades, no passeio, uma espécie de monstro marinho de caras, de corpos e de mãos, que se agitava, aguardando-os, no meio-dia cinzento da Encarnação, em que os semáforos boiavam ao acaso, suspensos da neblina como frutos de luz.”
Auto dos Danados (1985)
“Na segunda quarta-feira de setembro de mil novecentos e setenta e cinco comecei a trabalhar às nove e dez.”
As Naus (1988)
“Passara por Lisboa há dezoito ou vinte anos a caminho de Angola e o que recordava melhor eram as discussões dos pais na pensão do Conde Redondo onde ficaram entre tinir de baldes e resmungos exasperados de mulher.”
Tratado das Paixões da Alma (1990)
“A família do Juiz de Instrução morava do outro lado do terreiro da feira (que visitado anos depois era muito mais pequeno do que em criança lhe parecia), para lá dos ciprestes do colégio e da casa do médico amparada a goivos e a sombras, na parte da vila que cresceu, frente às névoas do Caramulo, em ruelas mais estreitas ainda, afogando os destroços da sinagoga num labirinto de palheiros.”
A Ordem Natural das Coisas (1992)
“Até aos seis anos, Iolanda, não conheci a família da minha mãe nem o odor dos castanheiros que o vento de setembro trazia da Buraca, com as ovelhas e os chibos que galgavam a Calçada na direcção do cemitério abandonado, tangidos por um velho de boina e pelas vozes dos mortos.”
A Morte de Carlos Gardel (1994)
“O gnomo saiu a agitar o jornal desportivo da cabine à esquerda do portão.”
Manual dos Inquisidores (1996)
“E ao entrar no tribunal em Lisboa era na quinta que pensava.”
O Esplendor de Portugal (1997)
“Quando disse que tinha convidado os meus irmãos para passarem a noite de Natal connosco
(estávamos a almoçar na cozinha e viam-se os guindastes e os barcos a seguir aos últimos telhados da Ajuda)
a Lena encheu-me o prato de fumo, desapareceu no fumo e enquanto desaparecia a voz embaciou os vidros antes de se sumir também”
Exortação aos Crocodilos (1999)
“Tinha sonhado com a minha avó e ao chegar à janela antes da manhã, atravessando os móveis sem tocar no soalho como se continuasse a dormir
(o corpo era a sombra do meu corpo movendo-se sem peso nos chinelos porque o corpo verdadeiro permanecia na cama, nesta cama ou em Coimbra há muitos anos, perto dos salgueiros altos, a eu crescida observando a eu pequena ou a eu pequena observando a eu crescida, não sei)”
Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000)
“O meu pai nunca me deixou entrar aqui.”
Que farei quando tudo arde? (2001)
“Tinha a certeza que sonhara aquele sonho na véspera ou na antevéspera
na véspera
e por isso mesmo, sem acordar, pensava
— Não merece a pena preocupar-me já conheço isto desinteressado de episódios que sabia falsos”
Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo (2003)
“Não sei se ela disse
— Esta era a casa
ou
(se calhar)
— Há vinte anos nós
ou
(pode ser, não estou certo)
— Morei aqui”
Eu Hei-de Amar Uma Pedra (2004)
“Tenho dois anos e estou ao colo da minha mãe: é um retrato de estúdio assinado Photo Royal Lda a letras em relevo, caprichadas, a cadeira onde nos sentaram servia para os clientes todos, majestosa, de veludilho gasto e cunha de cartão na perna direita, tão alta que os sapatos da minha mãe não alcançavam o soalho (pés rígidos, quietos, de enforcado)”
Ontem Não Te Vi Em Babilónia (2006)
“Chegava sempre antes da sineta quando ia buscar a minha filha e tirando a madrinha da aluna cega a cochichar cumprimentos em tom de desculpa sem que eu a entendesse
(de tão exagerada na infelicidade dava vontade de gritar — Afaste-se de mim não me aborreça)
não havia ninguém ao portão de modo que o recreio vazio excepto uma árvore de que nunca soube o nome com as folhas demasiado pequenas para o tronco e se calhar composta de várias árvores diferentes”
O Meu Nome é Legião (2007)
“Os suspeitos em número de 8 (oito) e idades compreendidas entre 12 (doze) e os 19 (dezanove) anos abandonaram o Bairro 1.º de Maio situado na região noroeste da capital e infelizmente conhecido pela sua degradação física e inerentes problemas sociais às 22h00 (vinte e duas horas e zero minuto) na direcção da Amadora onde julga-se que por volta das 22h30 (vinte e duas horas e trinta minutos) hipótese sujeita a confirmação após interrogatório, quer dos suspeitos quer de eventuais testemunhas até ao momento não localizadas furtaram pelo método denominado da chave-mestra
(sujeito a confirmação também e que adiantamos como provável derivado ao conhecimento do modus operandi do grupo)”
O Arquipélago da Insónia (2008)
“De onde me virá a impressão que na casa, apesar de igual, quase tudo lhe falta?”
Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar? (2009)
“Toda a vida, antes da doença e durante a doença, a minha mãe contou-nos e contou-nos
– Oiçam isto”
Sôbolos Rios Que Vão (2010)
“Da janela do hospital em Lisboa não eram as pessoas que entravam nem os automóveis entre as árvores nem uma ambulância que via, era o comboio a seguir aos pinheiros, casas, mais pinheiros e a serra ao fundo com o nevoeiro afastando-a dele, era o pássaro do seu medo sem galho onde poisar a tremer os lábios das asas, o ouriço de um castanheiro dantes à entrada do quintal e hoje no interior de si a que o médico chamava cancro aumentando em silêncio, assim que o médico lhe chamou cancro os sinos da igreja começaram o dobre e um cortejo alongou-se na direcção do cemitério com a urna aberta e uma criança dentro, outras crianças vestidas de serafim de guarda ao caixão, gente de que notava apenas o ruído das botas e portanto não gente, solas e solas, quando a avó no muro com ele desistiu de persignar-se sentiu o cheiro das compotas na despensa, vasos em cada degrau da escada e como os vasos intactos não aconteceu fosse o que fosse, por um triz, estendido na maca à saída do exame, não perguntou ao médico
– Não aconteceu fosse o que fosse pois não?”
Comissão das Lágrimas (2011)
“Nada a não ser de tempos a tempos um arrepio nas árvores e cada folha uma boca numa linguagem sem relação com as outras, ao princípio faziam cerimónia, hesitavam, pediam desculpa, e a seguir palavras que se destinavam a ela e de que se negava a entender o sentido, há quantos anos me atormentam vocês, não tenho satisfações a dar-vos,
larguem-me, isto em criança, em África, e depois em Lisboa, a mãe chegava-se ao armário da cozinha onde guardava os remédios
– São as vozes Cristina?”
Não É Meia Noite Quem Quer (2012)
“Acordava a meio da noite com a certeza do mar a chamar-me através das persianas fechadas, voltava a cabeça na direcção da janela e sentia-o a olhar para mim conforme o som dos pinheiros a olhar para mim e as vozes dos meus pais, no fim do corredor, a olharem para mim, tudo me olhava no escuro repetindo o meu nome, perguntava
– O que é que eu fiz?”
Caminho Como Uma Casa Em Chamas (2014)
“Não gosto do apartamento porque não me encontro, pequeno, a brincar na marquise, alugámo-lo ao casar e o resultado estes filhos, a tua asma, sobretudo eu tão desajeitado, tão fraco, em solteiro a minha mãe protegia-me não do meu pai que nem me via, das minhas irmãs e do meu irmão, gabava-me às visitas
– Tira os óculos para a dona Adelaide reparar nesses olhos azuis”