Há várias formas de fazer magia com as mãos e esta é uma delas: não terá sido por acaso que foi batizada como a nona arte. Falamos da banda desenhada, que durante duas semanas por ano passa de nicho de mercado a planeta editorial em volta do qual tudo gira.

No Fórum Luís de Camões, na Amadora, concentram-se a maioria dos atrativos do festival (mas não todos): muitas exposições, incluindo a que serve de mote a esta 26ª edição, “A Criança na BD”; outra de tributo a Stuart Carvalhais (1887-1961) e às suas personagens Quim e Manecas, e ainda várias mostras dedicadas aos autores e livros premiados no ano passado. Nos dois pisos deste espaço também há cinema para os mais novos, apresentações de livros, feira do livro e zona de autógrafos.

Por falar em autógrafos: fomos pedir três, ilustrados, a Pedro Massano, a Yara Kono e a Bernardo P. Carvalho. Depois, pusemos tudo em fast forward. Veja aqui o resultado:

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Um dos nomes em destaque no quartel-general da Amadora BD é o de Pedro Massano. Ele, que começou por ser caricaturista e fazer desenhos humorísticos em jornais, contou ao Observador o trabalho hercúleo que esteve por trás do livro A Batalha.

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Pedro Massano: Aljubarrota deu-lhe luta

Oito anos de trabalho investidos num livro é obra. E resultou, de facto, na obra A Batalha – 14 de Agosto de 1385, premiada o ano passado como Melhor Desenho para Álbum Português. Quem pensa que isto é só desenhar bonecos, desengane-se: neste caso, implicou quatro anos de pesquisa para o texto e outros tantos a desenhar tudo a lápis e, por fim, a colorir.

“O projeto foi uma encomenda da Fundação Batalha de Aljubarrota e depois começou a pesquisa”, explica o autor. “Para Aljubarrota concretamente há muito poucas fontes. Uma é completamente críptica, que é o Fernão Lopes.” Além dessa, existem mais duas – Jean Froissart e Ayalla, o cronista de D. Juan de Castela –, embora todas com evidentes limitações, incluindo de imparcialidade.

Assim, Pedro Massano teve de cruzar e decifrar todas as fontes. O segundo passo “foi passar aquilo tudo para diálogo inteligível e conseguir que a história fluísse”, conta. “Tínhamos o início e o fim, mas do meio não sabíamos nada. Até eu julgava que sabia uma série de coisas, e não tinha ideia de que tivesse sido assim. Foi gratificante.”

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Pormenor de um dos originais de “A Batalha – 14 de Agosto de 1385”, em exposição no festival. Ao lado, esboços preparatórios. MICHAEL M. MATIAS/OBSERVADOR

Além de encontrar um fio condutor para a história, o autor também teve de ir à caça de bases credíveis para os desenhos. Nessa parte, explicou durante a visita à sua exposição, foram essenciais as iluminuras. Ver todo este trabalho condensado em 86 páginas cheias de exércitos inteiros, fileiras de cavaleiros munidos de armaduras, lanças e escudos, brasões e vestuário desenhados ao mais ínfimo pormenor é, por si só, um feito. Na exposição patente neste festival, por cima dos originais encontram-se também alguns esboços preparatórios.

No álbum A Batalha – 14 de Agosto de 1385 todas as pranchas são duplas: o que significa que muitas vezes os desenhos atravessam as duas páginas, permitindo ter uma perspetiva de conjunto com outro impacto visual. “Alguém me disse, um dia, com muita graça, que eu não era capaz de respeitar os quadrados e deixar os desenhos sossegados lá dentro”, lembra Pedro Massano.

Esta BD não é (só) para miúdos

Confundir banda desenhada com livros para crianças é uma ideia errada, mas que ainda está muito disseminada. Eventos como o presente festival também contribuem para desmistificar ideias destas, servindo de montra a autores e estilos bem diversos. “A banda desenhada são as tiras e são para adultos”, lembra Pedro Massano. Depois o que se desenha dentro delas é que faz a diferença.

Bernardo P. Carvalho, ilustrador e um dos fundadores da editora Planeta Tangerina, acrescenta: “O meu pai colecionava banda desenhada em minha casa e ele já era adulto. Foram os primeiros livros desenhados que conheci, de que gosto e continuo a colecioná-los. Chego aqui e passo-me com estes livros todos.”

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Bernardo P. Carvalho, ilustrador e um dos fundadores da editora Planeta Tangerina. MICHAEL M. MATIAS/OBSERVADOR

Porém, o trabalho deste ilustrador é sobretudo com álbuns ilustrados, que têm as crianças como alvo. Vencedor de vários prémios em edições anteriores, este ano está nomeado para Melhor Ilustração de Livro Infantil com dois títulos: Daqui Ninguém Passa! (Planeta Tangerina) e Verdade?! (Pato Lógico).

Num tempo em que as crianças já estão tão ligadas à tecnologia e viciados em imagens animadas, é ainda mais importante fomentar a relação com o objeto-livro? Yara Kono, também da equipa da Planeta Tangerina, acha que sim. “Não sou nada contra as aplicações nem contra os livros digitais, mas acho que ainda falta muito para o digital substituir o papel. Sobretudo no que toca a este tipo de livros que não implicam só ler, não têm só palavras: é a palavra-imagem, é a textura do papel, a forma e até o cheiro da tinta, tudo isso faz parte.” Por isso, explica, criaram a Coleção dos Cantos Redondos: “Para mostrar que há ali uma alternativa e que o papel também pode ser interativo. E tem resultado lindamente”.

“Às vezes, um livro tem uma coisa chata e um bocado egoísta, que é ser só para um. Não é como um filme, que podemos ver com outras pessoas ao mesmo tempo. Os livros do Planeta Tangerina já são feitos a pensar nisso: para serem partilhados e serem vistos a dois, ou a três ou a quatro. Tipo livro-jogo, com coisas por trás, que não sejam assim muito óbvias”, explica Bernardo Carvalho.

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Yara Kono está nomeada para Melhor Ilustração de Livro Infantil com o livro “Com 3 Novelos (O Mundo Dá Muitas Voltas)”. MICHAEL M. MATIAS/OBSERVADOR

De ascendência japonesa, Yara Kono nasceu em São Paulo. Ganhou o Prémio Nacional de Ilustração 2010 com O Papão no Desvão (texto de Ana Saldanha) e este ano concorre para Melhor Ilustração de Livro Infantil com o livro Com 3 Novelos (O Mundo Dá Muitas Voltas).

“Acho que infantilizar uma ilustração não é bom para as crianças. Não usar preto na capa, por exemplo: algumas editoras não gostam porque acham que é uma cor que não está associada a esse público, mas na verdade não se pode esconder isso dos miúdos. Temas mais delicados raramente são abordados, como a morte ou temas ligados ao medo. Não é disfarçando de cor-de-rosa ou vermelho que vamos representar o medo, ou a escuridão”, afirma.

E foi precisamente de uma história inesperada que nasceu o livro Com 3 Novelos. Inspirou-se na aventura de uma família portuguesa que no final dos anos 60 teve de fugir da ditadura do Estado Novo e esteve exilada em vários países. “Para mim, o facto de ser uma história real já tem qualquer coisa de diferente. E depois de perceber um pouco mais da história desta família e da senhora que já é centenária, este livro desafiou-me de forma particular”, confessa Yara.

Contudo, o desenho tinha aqui uma limitação à partida: “Procurei mesmo usar só as três cores da história: cinzento, laranja e verde.” O segredo esteve, então, na combinação cromática e na criação de padrões e elementos diferentes. “E também me deu gozo trabalhar com alguns elementos do tricô, inserir esse elemento graficamente foi interessante.”

Com 3 Novelos mostra que “um livro infantil com um tema que pode não parecer muito atraente, às vezes surpreende-nos. E acho que este livro tanto pode ser para um público infantil como para um público adulto”, diz Yara Kono.

Retrospetiva de Ricardo Cabral e outros satélites

Mas há mais para ver, fora do núcleo central do festival. Na Bedeteca está a exposição “Putain de Guerre! – A Guerra das Trincheiras”, do francês Jacques Tardi; na LxFactory há “Lisbon Calling”.

E apesar da localização periférica, vale a pena destacar a retrospetiva de Ricardo Cabral, na Casa da Cerca, em Almada. Chama-se ‘Viagem Desenhada’ e estende-se até 10 de janeiro.

ricardo cabral_ pontas soltas lisboa Amadora BD

Em “Pontas Soltas – Lisboa” (ed. Asa) todas as histórias têm a mesma cidade como pano de fundo. Está nomeado na categoria Melhor Desenho para Álbum Português

A exposição atravessa o percurso do ilustrador e as suas viagens transpostas para o papel. Do Evereste ao Kosovo, passando por Israel e regressando à casa de partida: Lisboa. “Em Israel estive 9 semanas ao todo, no Kosovo apenas 10 dias. Os desenhos foram feitos à vista, nos próprios locais. Usei as fotos que tirei dos locais apenas como referências para a cor”, explicou Ricardo Cabral ao Observador.

É precisamente com Pontas Soltas – Lisboa, o álbum que reúne 10 anos de trabalhos em que a paisagem urbana alfacinha é o cenário comum, que Ricardo Cabral concorre a Melhor Desenho para Álbum Português.

Tem desenhos de uma precisão incrível, repletos de pormenores e com uma perspetiva quase cinematográfica, como se o autor-narrador fosse guiando os leitores pelos destinos que percorre. “Sim, são quase como percursos”, confirma Ricardo. “E era isso que me interessava quando os fiz, contar uma narrativa que progredisse num espaço reconhecível.”

A 31 de outubro (sábado), está prevista uma visita guiada feita por Ricardo Cabral à exposição. Nos outros dias, funciona de terça a sábado, das 10h às 18h, até 10 de janeiro.

E os nomeados são…

Um ponto alto de cada edição da Amadora BD é a atribuição dos Prémios Nacionais de Banda Desenhada, o mais importante galardão português nesta área. Este ano vai distinguir álbuns e autores em várias categorias entre todos os títulos publicados em 2014/15. Os vencedores são anunciados a 31 de outubro. Aqui fica a lista de nomeados. Façam as vossas apostas.

O quê: Amadora BD – Festival Internacional de Banda Desenhada
Onde: Fórum Luís de Camões (núcleo principal), na Rua Luís Vaz de Camões, Brandoa, Amadora, com extensões noutros locais
Quando: Até 8 de novembro. Domingo a quinta: das 10h às 20h; sextas e sábados: das 10h às 23h
Quanto: 3€ (adultos), 2€ (estudantes e seniores) e grátis até aos 12 anos

Consulte aqui a programação completa do evento.