São 23 homens vestidos de preto e cada um a esforçar-se por fazer caretas de mau, de quem não quer o bem de ninguém. Quase todos têm os olhos esbugalhados, e cerram a testa, alguns até esticam a língua boca fora. Estão alinhados em forma de “v” e no meio há um que se destaca. É o líder, o primeiro que se põe a gritar frases em maori, língua pronunciável e entendível apenas para quem o rodeia. Os outros vão-lhe respondendo aos berros, timbre grave, enquanto usam as palmas das mãos como armas, batendo-as com fúria nos braços e pernas. Parecem estar irritados, fulos da vida, com ganas de destruir algo. É um ritual que dura à volta de um minuto e quem o vê de perto é suposto que, logo a seguir, vá jogar râguebi contra homens em aparente fúria.
O cenário chega para meter medo, mas Pedro Leal não se lembra de o sentir. Era um dos portugueses que, em 2007, se teve de alinhar a metros dos neozelandeses, já depois de ter cantado o hino nacional e pouco antes de jogar contra os All Blacks. “É uma sensação única. Andámos tantos anos a ver aquilo pela televisão e de repente tínhamo-lo à nossa frente”, conta, quase ainda sem acreditar. Passou rápido, a “sensação foi brutal” e diz que acabou por “dar mais pica e motivação” aos Lobos do que à Nova Zelândia. Receio nunca o chegou a ter, garante, talvez porque lhe sobrava o entusiasmo de estar a presenciar o Haka: “É giro, porque ficamos sem saber para quem olhar, se para um se para todos. Eles olham nos olhos, nem sei quem estava a olhar para mim. Tentei fixar o olhar em alguém e aproveitar o momento”.
O que Pedro e a seleção nacional tiveram à frente é o mesmo (ou parecido, mas já lá vamos) que os australianos vão enfrentar este sábado (16h), na final do Mundial de râguebi — o Haka. A história diz-nos que é o nome dado à dança ancestral que o povo maori, originário da Nova Zelândia, que era realizada, por norma, antes de uma batalha ou de uma tribo partir para uma guerra. No râguebi é outra coisa. Não se trata de uma dança de guerra, mas de uma cerimónia para preparar os jogadores e motivá-los para o que aí vem. “O Haka não é para os adversários, não tem nada a ver com tentar assustá-los”, disse, em tempos, Keven Mealamu, homem que hoje lidera o ritual. “Tem a ver connosco, é parte da história do nosso râguebi, já o fazemos há mais de 100 anos. Só queremos garantir que o fazemos bem e que as pessoas o apreciam, é uma boa tradição”, resumiu quem já fez 132 jogos pelos All Blacks e fará o último este sábado, na final do Mundial.
Na primeira fila para ver o Haka estarão os australianos. Se pudesse, Vasco Uva assistiria ao ritual todos os fins de semana. O capitão dos Lobos em 2007 “sempre [foi] das pessoas” que sonhava “ver o Haka frente-a-frente” e no dia em que o viu achou “um momento muita giro”. Na altura, e “depois de muita conversa”, os portugueses decidiram perfilar-se em linha, diante dos neozelandeses, sem se mexerem, lembra Vasco, antes de contar ao Observador a história que sempre recorda quando lhe perguntam sobre esta experiência: “Só tínhamos um jogador com um temperamento algo difícil, o David Penalva, que estava ao meu lado, e quando olhei para ele já queria ir para o lado neozelandês, não sei se para os provocar ou para ver melhor o Haka“. Mesmo com dezenas de brutamontes aos berros, a fazerem cara feia e a darem palmadas nos braços e nas pernas, o medo não apareceu. Gonçalo Malheiro garante-o e diz até que “essa foi se calhar a vez” em que os portugueses que lá estiveram “desfrutaram menos” do ritual. Então? “Estávamos com uma vontade enorme de jogar e aquilo ainda nos deu mais. Deu-nos mais garra, não meteu medo!”, assegura.
Existem muitos e vários tipos de Haka e a maioria nem sequer está no desporto. Os Haka fazem parte da cultura maori e até são feitos para dar as boas-vindas, para celebrar uma data ou em funerais. A versão que os portugueses tiveram à frente — e que está animada e explicada no vídeo feito pela Andreia Reisinho Costa — chama-se Ka Mate. É a mais conhecida e a que a Nova Zelândia começou a praticar antes de cada jogo de râguebi desde 1888. Mas o ritual a ser feito com os jogadores sincronizados, carregados de raça, intensos e a viverem o momento, é coisa recente. Nas primeiras décadas do Ka Mate, os neozelandeses até chegaram a ser gozados pela forma desconectada e impessoal com que interpretavam o ritual e isso só mudou quando Buck Shelford se tornou capitão dos All Blacks.
Em 1985, e com a ajuda de Hika Reid, outro jogador da seleção e também natural da cidade de Rotorua, ensinou o restantes All Blacks a realizarem o Haka como deve ser e quando chegaram ao Mundial de 1987 já o ritual era bem parecido com o que é hoje. E Buck Shelford não era homem para brincadeiras — na final desse Campeonato do Mundo, depois de ser pisado na zona da virilha, chegou a sair de campo para coser o escroto e regressar ao jogo.
Kapa o Pango, o “irmão mais velho”
https://youtu.be/IQm5K1gPycI?list=LLsEsCbBzwBRZGK7D-NhHFbg
O tal Ka Mate foi inventado por Ngati Toa Chieftain Te Rauparaha, um senhor de nome esquisito que, em 1820, teve de fugir de membros de uma tribo maori rival com a mulher. Ambos esconderam-se numa cova no chão e, quando os guerreiros inimigos se estavam a aproximar decidiu, do interior, murmurar “Ka Mate! Ka Mate!“, que em português significa “É a morte! É a morte!”. Por causa disto, ou não, a história conta que Te Rauparaha não foi descoberto e, quando conseguiu sair da cova, terá gritado: “Tenei te tangata puhuruhuru nana nei i tiki mai whaka whiti te ra“. As tais palavras que hoje os neozelandeses gritam antes dos jogos. Ou seja, nada tem a ver com râguebi e esta história contou-se para explicar por que nasceu um outro Haka.
Nasceu sem aviso e foi uma surpresa. Os neozelandeses mostraram-no pela primeira vez em 2005, num jogo contra o maior dos rivais, a África do Sul. A cerimónia é diferente, os movimentos são outros, a intensidade é maior. Sobretudo, o significado é outro porque e o próprio nome do novo ritual o indica — traduzido, Kapa o Pango significa, literalmente, All Blacks. A letra e o ritual foram compostos por Derek Lardelli, um especialista e descendente da cultura maori. “É sobre um grupo de homens que queriam expressar-se através do Haka e a minha função era dar ações concretas a essa vontade. Não é uma dança de guerra, é uma cerimónia. Tem a ver com a pessoa construir confiança interiormente e ligar-se ao lado espiritual, à alma. É uma preparação que sai pelos olhos, pelos gestos e pelas mãos. É sobre eles, fala sobre o seu tempo com a camisola preta. Como faziam o Ka Mate tão bem, era uma forma de progredirem e construírem um legado para os jogadores novos que fossem aparecendo”, chegou a explicar.
Desde então que os dois Hakas vão aparecendo ao sabor da vontade dos neozelandeses. Por norma, guardam o mais recente para jogos especiais. Neste Mundial, por exemplo, arrancaram o primeiro jogo com o Ka Mate e começaram a optar pelo Kapa o Pango a partir dos quartos-de-final, onde enfrentaram a França (que eliminara a Nova Zelândia da edição de 2007 e a defrontara na final de 2011). “Kapa o Pango não existe certamente para substituir o Ka Mate, é mais um irmão mais velho que se senta ao lado”, justificou Aaron Muger, antigo centro dos All Blacks e um dos jogadores que, na altura, mais deu a cara para explicar a criação do novo Haka. É bem provável que seja este a ser interpretado na final do Mundial.
E o tal neozelandês que lidera o ritual e vai dando os gritos que os outros seguem, como é que o escolhem? Além das raízes, pela cara. “Primeiro, tem que ser feio. Depois tem de ser confiante, capaz de se expressar e não estar preocupado com o que as outras pessoas pensam. Os jogadores novos que aparecem podem pensar demasiado com o que pensam deles, mas quanto mais feio e assustador, melhor”, revelou, há uns anos, Liam Messam, neozelandês que está pela primeira vez num Campeonato do Mundo. Pobre Keven Mealamu, portanto, pois é ele quem tem liderado todos os Haka.