O fado, o sebastianismo e a palavra saudade denunciam-nos. “A nostalgia é para nós tão natural como respirar”, escrevem Pedro Marta Santos e Luís Alegre no livro Lembras-te Disto?, acabado de lançar pela Esfera dos Livros. A palavra de ordem é, portanto, relembrar como brincavam as crianças, como namoravam os adolescentes, o que comiam, viam e faziam os portugueses nos anos 70 e 80. Se ainda não era nascido e não sabe o que foi o fenómeno Penélope, como se jogava Subbuteo nem como os sábados à tarde eram propícios para dançar agarradinho e dar o primeiro beijo sob a parca luz de uma bola de espelhos, vai ficar a saber isto e muito mais.

“Este livro é completamente improvável, nunca me imaginei a fazer algo sobre isto”, explica ao Observador Luís Alegre, diretor criativo de 46 anos. Tal como entre 1970 e 1989 era improvável imaginar a velocidade a que o mundo comunica hoje pela Internet, todas as músicas disponíveis sem ser preciso copiá-las em casa de um amigo melhor relacionado, bilhetes de avião por 15 euros ou até mesmo a existência dos próprios euros.

Após muitas conversas sobre quem se lembra de determinada canção ou programa de televisão, e dado que Luís Alegre coleciona vários objetos de há 30 ou 40 anos, Francisco Camacho, da editora, desafiou-o, juntamente com o jornalista e argumentista Pedro Marta Santos, de 47 anos, a reunirem esta nostalgia num livro. Lembras-te Disto? não é um apelo ao lema “antigamente é que era bom”, mas sim a celebração de uma nostalgia “saudável e feliz de um tempo que foi interessante”, diz Luís Alegre.

Lembras te disto2

O livro tem 198 páginas e custa 16,50 euros

O livro é uma espécie de DeLorean que vai levar o leitor numa viagem até ao passado. Até ao tempo em que fazia (ou tentava fazer) o cubo de Rubik, matava a sede com Laranjina C, dançava no Griffon’s ou no Rock Rendez-Vous e perdia a virgindade no Interrail. Muitos dos objetos fotografados fazem parte da coleção de Pedro Marta Santos, que cresceu no Porto, e Luís Alegre, natural da Anadia — dos brinquedos como “O Sabichão” aos bilhetes de concertos que tinham identidade e que valiam a pena colecionar.

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E porque cada indivíduo teve experiências diferentes, apesar da época e das referências terem sido as mesmas para a geração que nasceu nos anos 60 e início de 70, os dois autores partilham com o Observador, em discurso direto, as suas memórias mais fortes de uma época em que Portugal fazia a transição entre a ditadura e a democracia.

Pedro Marta Santos

pedro marta santos

“É preciso compreender que os anos 80 eram uma época de códigos, de tribos e de uma certa estratificação entre os vários clubes e grupos. As tribos eram muito marcadas na adolescência, por exemplo pela forma como se vestiam, dos betos aos punks. Esses grupos eram definidos e eu, para facilitar a minha integração num dos grupos, uma das coisas que estupidamente fiz foi chatear o meu pai para me comprar um blusão de penas, da marca Duffy, que eram escandalosamente caros, custavam 20 e tal contos, em 1983 ou 1984.

Fiquei encantado quando, numa visita que fizemos a Lisboa, o meu pai me comprou um azul-bebé. E lembro-me de não o largar. Quando começámos a sair para discotecas e bares, havia no Porto uma coisa clássica que eram as quartas-feiras à tarde no Centro Comercial Brasília. As do Griffon’s, eram famosas e eu passava lá a vida, dentro da discoteca de 30 metros quadrados, apinhada de gente, e eu de blusão de penas, a suar feito louco. Mas toda a gente usava aquilo no pico do verão porque ficava bem. Essas coisas passam rapidamente de moda e eu ao fim de dois anos deitei o blusão fora.”

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“O ZX Spectrum foi a primeira grande consola de jogos a sério. Já havia a da Nintendo e outras, mas o ZX Spectrum foi o primeiro com centenas de jogos. Marca um bocadinho a passagem do mundo analógico para o mundo digital, apesar de ainda ser um bocado artesanal — era um minicomputador consola, mas os jogos carregavam-se num leitor de cassetes antigas. Infelizmente, eu fiquei magoado com os meus pais porque eles decidiram oferecer-me o de 16 kb. O processamento era muito básico e todos os meus amigos tinham um de 48 kb.

Uma coisa de que eu gostava muito era dos livros d”Os Sete’. Toda a gente gostava d”Os Cinco’ mas, pela descrição, ‘Os Sete’ pareciam ter miúdas mais giras. Depois, as aventuras eram escritas de uma maneira mais envolvente, e eu aprendi um bocado a ler livros. Aprendi, por exemplo, nomes de lugares em França e em Inglaterra, ou como as pessoas se comportavam noutros países.

Também gostava da coleção de fascículos semanais da Revista Tintin, que eram uma reprodução da revista belga. Aquilo começou a ser editado em Portugal em 1968, no ano em que nasci. Na semana anterior ao meu nascimento saiu o primeiro fascículo e o meu pai começou a comprar-me nessa altura. Continuou durante 16 ou 17 anos, comprou-me a coleção toda, mas infelizmente perdeu-se numa mudança de casa. Aprendi muita coisa aí na banda desenhada, a maneira como os adultos se comportavam, aprendi a imaginar uma data de mundos alternativos, era uma grande fonte de cultura geral.”

bola de espelhos

“Uma coisa marcante, mas numa fase já adolescente, quando tinha 15 ou 16 anos, eram as festas em casa dos amigos ao sábado à tarde. E havia um objeto fundamental, que era a bola de espelhos. Dançava-se uma data de coisas — os neoromânticos, como Duran Duran — mas o grande momento era a hora dos slows.

Nessa altura passavam baladas, músicas lentas que eram a oportunidade de finalmente nos agarrarmos uns aos outros, e ficávamos ali com a cabeça encostada no ombro, a descer lentamente as mãos. Apertávamo-nos e procedia-se então ao grandioso ritual de dar uns beijos, que era o grande momento da semana, do mês e do ano. Era um ritual de acasalamento fundamental! Havia um pouco mais de timidez nos comportamentos, a música era muito envolvente, as luzes eram baixas e aproveitávamos o momento.”

 

Luís Alegre

LuisAlegre

“Do que me lembro perfeitamente é da entrada da Benetton em Portugal. Até aí as pessoas vestiam-se todas de escuro, de castanho e preto, e de repente começaram a aparecer camisolas às cores. Lembro-me de ser enxovalhado no liceu por usar uma camisola cor-de-rosa! Acharam-me completamente excêntrico. A Benetton veio trazer cor. Foi o equivalente para a moda à passagem da TV a preto e branco para a TV a cores.

Na TV, lembro-me de ver “Uma Casa na Pradaria“. Durante anos o “Dallas” também era imperdível e eu adorava um personagem, Bobby Ewing, que tinha um Mercedes descapotável. Lembro-me de adorar ver a Heidi e o Marco, é uma lógica mais triste, completamente diferente da narrativa de hoje. Aquilo era uma tragédia, de fazer chorar as pedras da calçada! O Tom Sawyer era mais aventureiro e eu gostava mais. Lembro-me de me levantar de manhã, acho que ao sábado, para ver.”

penélope

“Uma memória muito forte e que até vem na capa do livro é a da Penélope. Essa figura começou a aparecer e a certa altura não havia automóvel, sobretudo táxi, que não tivesse na traseira esta figurinha viral. Tudo começou nos anos 80 e ninguém sabia o que era. Eu perguntava-me: que figura é esta? Será uma cantora? Mas ninguém me sabia explicar exatamente. Há um dia em que eu entro numa fábrica, isto já nos anos 90, onde estavam a imprimir 60 mil cópias daquela figura e nem eles sabiam o que era. Só descobri já nos anos 2000 que aquilo era um autocolante de uma discoteca em Benidorm chamada Penélope e eram eles que ofereciam. Depois percebi que o Pedro sempre conheceu o mistério porque passava férias desde miúdo no sul de Espanha. Aquilo sempre me intrigou! E na altura não dava para pesquisar…

Outra coisa que também está na capa do livro são os ténis Sanjo. Na altura o que eu queria era uns Nike, claro, mas era muito difícil e por isso eu levava era com os Sanjo, que eram a última coisa que eu queria. Com o tempo percebi como eles eram modernos e agora acho-lhes imensa graça.

cassete que está na capa toda desfeita é minha e isso acontecia imenso. Ouvíamos imensas vezes a mesma cassete, gravávamos e regravávamos programas de rádio e elas rapidamente se emaranhavam todas. E era com uma caneta Bic que aquilo ia ao sítio.”

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“O Lone Ranger, que era uma espécie de Barbie dos rapazes, tem direito a dupla página no livro. Lembro-me que para conquistar esse objeto foi uma loucura, porque era caríssimo, tive de optar entre isso e outra coisa qualquer. E depois iam sendo adquiridos ao longo dos anos mais bonecos, o cavalo, etc. Também adorava o Subbuteo, um jogo de mesa que também era muito caro, mas alguns amigos tinham e joguei muitas vezes. Depois lá tive o Subbuteo dos pobres, uma versão portuguesa da Majora. Curiosamente, é um jogo que se mantém, continua-se a vender e há torneios internacionais de Subbuteo. Não tive consolas porque — lá está — na altura optei pelo Lone Ranger.”