Portugal vive em défice económico constante, o cinema português em défice crónico de histórias. Os cineastas portugueses, em geral, não querem, não gostam ou não conseguem contar histórias. Há sempre alguns que remam contra a maré, veteranos ou das novas gerações. Miguel Gomes, por exemplo, tentou compensar o referido défice com uma dose farta-brutos de narrativas, entre reais e imaginadas, nos três tomos de “As Mil e Uma Noites” — não há fome que não dê em fartura. Um dos realizadores de uma geração mais antiga que sempre cultivou um cinema narrativo e romanesco é sem dúvida António-Pedro Vasconcelos, um dos nossos mais insistentes e consistentes contadores de histórias em filme, inspiradas pela realidade ou sugeridas pela actualidade, e firme opositor da formatação telenovelesca.
Em “Amor Impossível”, o seu décimo filme, Vasconcelos, trabalhando pela quarta vez com um argumento de Tiago Santos, seu colaborador desde “Call Girl” (2007), volta a elaborar uma ficção baseada em material colhido aos factos. No caso, uma história de paixão e crime sucedida em Viseu entre um casal de namorados. Cristina (Victória Guerra), uma jovem universitária, é raptada quando estava com o namorado, Tiago (José Mata), também estudante, aparecendo depois morta. Dois agentes da Polícia Judiciária de Coimbra, Madalena (Soraia Chaves) e Marco (Ricardo Pereira) são enviados a Viseu para investigar. Madalena e Marco são amantes e a relação atravessa uma crise, pelo que passam tanto tempo às turras como a recolher indícios e depoimentos, o que não abona nada em favor dos amores de escritório e do seu efeito sobre a produtividade.
[O trailer de “Amor Impossível”]
Há duas histórias de amor em “Amor Impossível”, uma já desfeita e contada em flashback, outra a desfazer-se e a acontecer no momento, e que acabam por se espelhar. A primeira, entre Cristina e Tiago, os jovens estudantes de condições sociais e ambientes familiares muito diferentes, é a menos convincente, por não ter os contornos trágicos que o filme ambiciona para ela, ao citar paixões poderosamente funestas e intemporais como as de Amor de Perdição, de Camilo, ou de O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë, o que se repercute nas personagens dos namorados.
Cristina e Tiago não têm estofo dramático suficiente para nos conseguirem cativar para as suas ilusões, as suas dores e a sua sorte, nem para conquistarem a nossa empatia. Ela é emocional e intelectualmente imatura, uma vítima do romantismo de trazer por casa e da literatura mal digerida. Ele é um filho-família a que os pais ricos subsidiam a rebeldia e as pretensões artísticas, e não está à altura da imaginação galopante, da sensibilidade exacerbada nem da capacidade de combustão amorosa e sexual da namorada (Cristina tem, pelo menos, a qualidade de juntar o gesto ao discurso). Apetece dar-lhes chapadas e mandá-los ter juízo.
[vlog do filme (1)]
A segunda história de amor, entre os agentes Madalena e Marco, é mais interessante e verosímil, apesar de menos pretensiosa e laboriosa do que a entre Cristina e Tiago. E pode dizer-se que esta – não entro em mais detalhes, vulgo spoilers, para não dar cabo do filme ao espectador – serve ao menos para abrir os olhos a uma das partes envolvidas na outra. Em ambas, António-Pedro Vasconcelos revela uma grande e óbvia compreensão e identificação com as personagens femininas, cuja caracterização é muito mais positiva e simpática do que as masculinas. Tiago e Marco são uns podões insofríveis e nem por sombras merecem a dedicação e os sentimentos de Cristina e Madalena. (Se tivesse sido realizado por uma mulher, “Amor Impossível” já andava por aí coberto de rótulos de filme “feminista”.)
[vlog do filme (2)]
Além de apresentar o sólido ofício cinematográfico a que o realizador nos habituou, a fita dá bons juros do investimento no trabalho feito com os actores, uma das constantes do cinema de Vasconcelos, e recrutados entre várias gerações. Victória Guerra e Soraia Chaves (esta no seu terceiro filme com o realizador, após “Call Girl” e “A Bela e o Paparazzo”) sobressaem em especial, cada qual no registo precisamente adequado às respectivas personagens, a inquieta, ardente e inteligente Cristina, e a tristonha, de poucas falas e perspicaz Madalena. Victória a fazer passar muita coisa fundamental sobre Cristina pelo olhar, Soraia a dizer-nos quem Madalena é pela forma de estar e de se movimentar, e pelo que não diz e guarda para si.
[vlog do filme (3)]
Uma palavra ainda para as personagens secundárias, a que o realizador de “O Lugar do Morto” dá sempre atenção — desde a mãe de Cristina ao polícia rústico e vernáculo que mete Tiago na cela, passando pela colega e melhor amiga daquela –, pela sua pequena mas importante contribuição para o realismo e a credibilidade geral do edifício narrativo. O diabo está nos detalhes, e isto é válido tanto para o amor como para os filmes.