É um mistério antigo: afinal, “Adeste Fideles”, que se tornou um dos hinos natalícios mais tocados em todo o mundo, foi ou não composto por D. João IV (1604-1656)? Há poucos dias, no Facebook, Rui Vieira Nery voltou a despertar o assunto. O historiador e musicólogo publicou um texto breve, entretanto partilhado por mais de 400 pessoas, no qual sustenta que a obra não é da autoria do rei português. “Disparate musicológico absoluto” e “fantasia romântica sem qualquer fundamento”, classificou o ex-secretário de Estado da Cultura.
A crença generalizada é exatamente oposta: “Adeste Fideles” deve ser atribuído ao rei nascido em Vila Viçosa – célebre melómano, como melómana será a dinastia de Bragança –, pois assim indicam dois manuscritos do hino alegadamente encontrados na escola de música da Capela do Paço Ducal de Vila Viçosa. É o que se lê, por exemplo, na Wikipedia, em português e inglês, fonte de consulta para muitas pessoas. Rui Vieira Nery assegura ser “absolutamente falso” que tais manuscritos existam na vila alentejana.
“Adeste Fideles” (“Vinde, fiéis”) foi escrito segundo o modelo dos hinos litúrgicos e é ouvido em celebrações canónicas, como aconteceu há um ano na Basílica de São Pedro, no Vaticano. É um cântico universalmente conhecido, que convida os católicos a uma celebração festiva do nascimento de Jesus. O Patriarcado de Lisboa classifica-o como “tradicional”, outros dizem que é de autor anónimo.
A atribuição ao rei português “não é sustentada por nenhum – absolutamente nenhum – dos autores que estudaram a vida e obra de D. João IV, de Joaquim de Vasconcelos e Ernesto Vieira a Mário de Sampaio Ribeiro e Luís de Freitas Branco, o que sugere que [essa versão] tenha surgido já em meados do século XX”, escreveu Rui Vieira Nery no Facebook.
Do ponto de vista técnico, há outro argumento, segundo o musicólogo: “É uma obra composta em harmonia funcional inteiramente tonal, com acompanhamento de baixo contínuo, num estilo absolutamente incompatível com a prática musical do tempo de D. João IV.”
O “Portuguese Hymn“
O hino foi ouvido em Paris pela primeira vez em 1744 e foi então considerado de origem inglesa. A partitura terá uma primeira impressão em 1782, no livro inglês An Essay on the Plain Chant, de acordo com o maestro Luís de Freitas Branco, citado num artigo da professora Carlota Miranda, da Universidade de Coimbra. O artigo saiu no Boletim de Estudos Clássicos, em 1997, e tem por título “O Hino de Natal pseudo-português”.
Mas se o autor não é o rei português, quem poderá ser? “Não sabemos, pura e simplesmente”, afirmou Rui Vieira Nery, defendendo que a composição é posterior a 1675, “mais provavelmente” de inícios do século XVIII, podendo ser atribuível a John Francis Wade (1711-1786).
De acordo com uma nota no site da New York State Library, “investigações demonstram que o ‘Hino Português’, como era conhecido, foi provavelmente escrito pelo compositor John Francis Wade e publicado por este, pela primeira vez, na compilação Cantus Diversi, em 1751”.
A composição “tem provavelmente as suas origens nos meios católicos ingleses de setecentos” e “no final do século XVIII cantava-se na capela da embaixada de Portugal em Londres”, escreve a professora de Coimbra. “Talvez advenha daqui a errada denominação deste hino como Portuguese Hymn, por parte dos católicos ingleses.” Segundo Rui Vieira Nery, “até à legalização do culto católico em Inglaterra”, a embaixada portuguesa “era um dos únicos locais em que ele podia ser celebrado em território britânico”.
No mesmo artigo de Carlota Miranda consta uma tradução do hino, de que vale a pena citar a primeira estrofe, para melhor se entender o conteúdo:
“Vinde fiéis, alegres, triunfantes,
Vinde, vinde a Belém,
Vinde ver o Menino Rei dos Anjos.
Vinde, adoremos, vinde, adoremos
Vinde, adoremos o Senhor.”
Uma versão cantada por Luciano Pavarotti em 1978 encontra-se no YouTube, rivalizando em número de visionamentos com uma outra, mais recente e em inglês, protagonizada pela cantora pop Céline Dion.