Com tiros de caçadeira e uma granada, tal e qual como num cenário de guerra. Foi assim que um taxista de 60 anos matou a mulher, de 45, em plena via pública, no último domingo de 2015. Este filme desenrolou-se em Sacavém, Lisboa, quando o relógio já galgara as dez da manhã. Matou a mulher e suicidou-se a seguir.
Segundo a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), este foi o 29.º femicídio de 2015. A este número juntam-se ainda 33 tentativas de femicídios, sendo que este caso diz respeito apenas a um período entre 1 de janeiro e 20 de novembro. Quanto a números totais desde 2004, foram registados 428 femicídios e 497 tentativas de crime. O Observador preparou várias infografias para desconstruir e explicar esta realidade da sociedade portuguesa.
Muito abaixo do que aconteceu em 2014 (43), mas nem por isso uma tendência, diz a UMAR. Portugal viu morrer duas mulheres por mês (mais exatamente 2,4) durante 2015: janeiro, março e abril foram os meses mais sangrentos, com quatro mortes em cada um. Os dados do Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR (OMA) permitem compreender contextos, motivos, perfis e armas utilizadas em cada um destes crimes.
Um facto incontornável é a proximidade das vítimas com os criminosos: 15 das 29 vítimas morreram nas mãos de “marido, companheiro, namorado ou relação de intimidade”. Quanto à big picture (desde 2004), esse valor transforma-se em 265 das 428 mulheres mortas. O segundo caso mais notado diz respeito a crimes protagonizados por antigos companheiros: 10 em 29 (desde 2004: 96 em 428).
A maioria das vítimas tinha mais de 51 anos. A mais velha, de 84 anos, foi morta por asfixia pelo marido, em janeiro, na sua residência. A vítima mais jovem tinha apenas 23: perdeu a vida no local de trabalho, assassinada com uma arma de fogo. Relativamente aos homicidas, a faixa etária mais representada é a dos 36-50 anos.
Quanto ao local do crime, os dados continuam a demonstrar que a residência é onde ocorrem mais crimes. Em 2015, foram registados 18 femicídios em casa das vítimas num total de 29 crimes. O local de trabalho surge a seguir (5), enquanto a via pública (4) e um local isolado fecham o lote.
Como indica o mapa interativo em cima, o distrito do Porto registou mais femicídios (7), surgindo a seguir Lisboa (6) e Setúbal (4). Quanto a números globais desde 2004, mantêm-se as três cidades no topo, mas dão uma cambalhota: a capital salta para primeiro lugar (94), seguindo-se Porto (61) e Setúbal (45).
E justificações? Há várias. Vão desde um histórico de violência doméstica à não-aceitação da separação, passando por uma atitude de possessão.
Como já foi referido, entre 2004 e 2015 registaram-se 428 mortes. Em termos globais da análise dos registos ao longo dos anos conclui-se que a ocorrência do femicídio deixou de incidir, em particular, nos meses de verão, diz o relatório. Durante este ano, os meses mais violentos foram janeiro, março e abril, com quatro mortes em cada um. Os valores de 2015 igualaram os de 2009, mas ainda ficaram acima de 2011 (27) e 2007 (22). Os picos mais preocupantes aconteceram em 2008 (46), 2010 (44), 2014 (43) e 2012 (41).
Dos 29 femicídios registados, a UMAR verificou uma maior incidência nos escalões etários de mais de 65 anos (9) e 51-64 anos (8). “Dos dados analisados, concluímos que a violência contra as mulheres, também na sua forma mais letal, ocorre em todo o ciclo relacional das mulheres, já que constatámos a ocorrência deste crime em todas as faixas etárias. Não obstante, verificamos que o femicídio afeta mulheres sobretudo com idades superiores a 36 anos”, pode ler-se no OMA.
A arma de fogo é, sem surpresa, a escolha número 1 dos homens na hora de matar — 16 dos 29 crimes. A última morte de 2015, a de que demos conta no arranque deste artigo, foi só mais um caso, sendo que foi mais além com o recurso a uma granada. A seguir, surgem as armas brancas (5), estrangulamento (2) e agressão “bárbara” com objeto, segundo o relatório.
Dezoito num total de 29 crimes tiveram lugar na residência das vítimas. A seguir surgem local de trabalho e via pública, com quatro femicídios cada um. Os dois últimos crimes do ano, revela o OMA, tiveram lugar em dezembro na residência e local de trabalho das vítimas. Uma mulher tinha 40 anos e a outra 45.
TENTATIVAS DE FEMICÍDIOS
Foram registadas 33 tentativas de femicídio, sendo que este valor diz apenas respeito ao período entre 1 de janeiro e 20 de novembro. Uma vez mais, os dados do Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR (OMA) permitem uma imagem mais clara desta realidade, nomeadamente ao nível do perfil e relação entre vítima e criminoso, tipo de arma ou meio de agressão e local.
Lisboa destaca-se, e muito, na liderança deste ranking, com 12 tentativas de femicídio num total de 33. O mesmo é dizer que assinala o triplo do Porto, a segunda cidade com valor mais elevado (4). Depois seguem-se Aveiro, Braga e Faro, todas com três.
Relativamente a números globais desde 2004, foram registadas 497 tentativas de femicídio nos últimos 11 anos, sendo que Lisboa se apresenta como a líder destacada, com 104. A seguir, surgem Porto (77), Aveiro (47), Setúbal (36) e Braga (32).
Quanto à relação de proximidade, a tendência mantém-se: “Analisando-se a relação entre agressor e vítima verificamos que, no período em análise, a maioria das vítimas (88%) mantinha ou manteve uma relação de intimidade com o autor do crime”, pode ler-se no relatório. Quatro dessas 33 tentativas (12%) foram praticadas por filhos ou pai. Em 58% desses casos já havia um histórico de violência doméstica, enquanto 36% das situações estavam relacionadas com o facto de o homem não aceitar a separação.
Quanto à idade dos agressores, o grupo etário 36-50 anos é aquele que assume maior representatividade (30%: 10 em 33), seguindo-se o dos 24-35 anos e 51-64 anos, ambos representando 24% cada um.
Dos dados aferidos foi possível identificar que em 53% dos crimes de tentativa de femicídio noticiados foi reportada história de violência doméstica na relação, sendo omissa esta informação em 39% das situações analisadas.
A arma de fogo continua a ser a predileta para os agressores, mas aqui nestes casos a arma branca já está muito mais próxima. Os casos de asfixia surgem em terceiro lugar, com 4 tentativas. Já a imolação, espancamento e “queda”, que diz respeito a empurrões de janela ou ravina, surgem depois com duas tentativas. Uma nota ainda para o recurso a ácido por parte de um agressor.
A EVOLUÇÃO DA LEI
“O crime de violência doméstica é um ilícito recente no quadro jurídico-penal português”, começa por explicar ao Observador Elisabete Brasil, da UMAR. “Não obstante o artigo 152.º do Código Penal só em 2007 ter adotado a epígrafe ‘Violência Doméstica’, podemos afirmar que este foi o corolário de um processo iniciado em 1982, ainda que de forma indireta e muito ténue.”
Resumindo, a alteração penal de 1982 introduziu no Código Penal Português o crime de maus tratos, então no artigo 153.º. Depois, em 1995, “a natureza do crime passou a semipública, ou seja, o procedimento criminal passou a depender de queixa. Abandonou-se a referência à ‘malvadez e egoísmo'” mencionados no artigo anterior.
“Já em 1998 verificou-se uma nova alteração já decorrente da crescente consciencialização da gravidade dos comportamentos e de exigência de intervenção do Estado”, explica Elisabete Brasil. Em 2000, “o crime de maus tratos viria a retomar a natureza pública, iniciando-se o procedimento mal se tenha conhecimento do crime e independentemente de apresentação de queixa por parte da vítima”.
Este processo conheceria o seu pico de relevância em 2007, quando se separaram as águas: “Aqui, no artigo 152.º do Código Penal, que tinha a designação ‘Maus tratos e infração de regras de segurança’, assumiu-se a designação penal de ‘Violência Doméstica’. Separou-se os maus tratos da violência doméstica, que passaram a figurar no artigo 152.º.”
Veja aqui o enquadramento penal, outra legislação nacional e europeia e ainda mais informação de referência disponibilizada pelo site do parlamento.
Grafismo: Milton Cappelletti