O grupo de conselheiros económicos próximos do governo alemão defende que a Alemanha deve propor a criação de um Mecanismo de Insolvência de Soberanos na zona euro. Um mecanismo que, na prática, iria reconhecer que os países da união monetária podem cair em falência e iria impor perdas aos investidores privados em caso de necessidade. Estas são hipóteses que continuam sem se reconhecer formalmente na união monetária, uma situação que tem implicações vastíssimas para o sistema financeiro europeu. O plano foi apresentado em novembro, mas o único dissidente desse grupo de cinco economistas veio subir o tom das suas críticas: se o plano for em diante, será “a forma mais rápida de acabar com a zona euro“.
Em entrevista ao The Telegraph, esse dissidente, Peter Bofinger, lamentou que o Conselho a que pertence tenha defendido um plano que, na sua opinião, poderá desencadear uma “fuga às obrigações” do Tesouro de países como Portugal, Espanha e Itália – levando à subida em flecha dos juros destes países. Ainda assim, este é um plano que, segundo o jornal, recebe não só a concordância do Bundesbank (o banco central alemão), liderado por Jens Weidmann, como também do Ministério das Finanças, chefiado por Wolfgang Schäuble.
O plano (link aqui) foi avançado em novembro mas tem tido pouco eco na imprensa financeira fora da Alemanha. O que poderá mudar, agora que Peter Bofinger decidiu falar sobre o tema com o britânico The Telegraph.
Um ataque especulativo pode vir muito rapidamente. Se eu fosse um responsável político em Itália e fosse confrontado com este tipo de risco de insolvência, quereria regressar à minha moeda o mais rapidamente possível, porque isso seria a única forma de evitar uma bancarrota.
O que está em causa: dois paradigmas da zona euro
A criação do Mecanismo de Insolvência de Soberanos, proposto por este Conselho, seguiria a mesma filosofia das novas regras para a banca da zona euro – que estabelecem claramente que, em caso de dificuldades em bancos, os seus investidores privados (incluindo, também, os depositantes com mais de 100 mil euros) devem ser envolvidos na resolução do problema – leia-se, sofrerem perdas – antes de entrar um cêntimo de dinheiros públicos.
Da mesma forma que, com essas novas regras, a Comissão Europeia quer fomentar a “disciplina” nos bancos, o enquadramento proposto iria reforçar a “disciplina” nos governos, acreditam os “sábios” do Conselho (exceção feita a Bofinger).
Na opinião maioritária do Conselho, a criação da União Bancária e do Mecanismo Europeu de Estabilidade (o fundo de socorro da zona euro) “foram passos importantes para tornar a arquitetura da moeda única mais resistente a crises, mas são necessários mais elementos para dar credibilidade à cláusula de “não-resgates“. Isto é, a proibição de transferências e de resgates diretos entre países da zona euro – como prevê o Tratado Europeu.
Por outro lado, o Conselho propõe uma alteração que acabaria com o “estatuto de privilégio das exposições à dívida soberana” que existe na regulação bancária. Isto significa que, por não se reconhecer formalmente que a dívida pública dos países da zona euro tem risco, os bancos continuam a privilegiar o investimento em títulos do Tesouro porque estes são mais vantajosos do ponto de vista do cálculo dos rácios de capital e, também, no momento de obter financiamento junto do Banco Central Europeu (BCE). É mais vantajoso desses dois pontos de vista, nota o Conselho, comprar dívida pública do que fazer empréstimos a empresas.
Países podem sofrer “fuga às obrigações”, alerta Bofinger
Logo na divulgação do relatório do German Council of Economic Experts, em novembro, Peter Bofinger mostrou que tinha uma opinião divergente. As suas advertências foram citadas num anexo ao relatório. Sobre o primeiro ponto sugerido pelo Conselho, Bofinger alerta:
Um Mecanismo de Insolvência de Soberanos, muito provavelmente, não iria contribuir para estabilizar a arquitetura da união monetária mas, sim, iria desestabilizá-la.
O economista recorda, a este respeito, que os países da zona euro não podem ser amarrados a regras orçamentais tão rígidas, porque “a experiência com a reunificação alemã, a crise financeira global e, mais recentemente, a crise dos refugiados demonstrou que podem surgir – muito rapidamente – desafios inesperados e enormes que só podem ser geridos por um governo que esteja pronto e disponível para agir”.
Além de contribuir para que os Estados ficassem mais tolhidos na sua capacidade de responder a emergências, Bofinger diz que a criação desse regime de insolvências “levaria a uma fuga às obrigações, onde os investidores despejam no mercado, a qualquer preço, os títulos – de modo a evitar um haircut“. Por outras palavras, os investidores iriam identificar quais países teriam maior probabilidade de se verem envolvidos num processo de reestruturação da dívida (com recurso a privados) e deixariam de financiar esses países – exceto a troco de juros cada vez mais altos. O que, logicamente, tornaria ainda mais difícil a situação dos países em questão.
Os maiores riscos estão nos bancos da Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda e Itália.
Em contraste, a posição prevalecente no Conselho é que, “apesar de a introdução do Mecanismo Europeu de Estabilidade limitar os riscos de contágio em situações de crise, a existência de fundos de resgate cria o risco de que os governos subestimem os riscos, o que é negativo para a função disciplinadora dos mercados”. Assim, o Conselho defendeu que situações de “dívida excessiva devem ser respondidas com reestruturação por meio de um bail in“, ou seja, a imposição de perdas aos credores dos países.
Isso nunca aconteceu na zona euro, nem na reestruturação da dívida da Grécia, em 2012. Formalmente, essa operação foi uma “troca voluntária” de títulos de dívida grega (por outros com valor mais baixo e prazos mais longos), pelo que se manteve intacta a noção de que os Estados da zona euro não podem falir. Mais tarde, contudo, a noção de perdão da dívida (e saída da zona euro) voltou a estar em cima da mesa no verão de 2015. No auge da crise grega, nasceu uma nova zona euro: a zona euro reversível.
Dívida pública com risco colocaria bancos europeus em desvantagem
Bofinger recusa, também, o segundo ponto proposto pelo Conselho: acabar com o que este último chama de “privilégios regulatórios” para a dívida pública. Para o economista, a incorporação de riscos na dívida pública detida pelos bancos levaria a uma “desvantagem competitiva nos bancos da zona euro”. Porquê? “Porque não é expectável que isso levasse outros países a adoptar regulação semelhante”, lembra Bofinger.
O raciocínio do economista é que ninguém acredita que se a zona euro vier a fazer alterações neste sentido, os EUA, o Reino Unido ou os países da Ásia passarão, também, a castigar as exposições dos bancos à dívida norte-americana ou britânica nos balanços dos respetivos bancos.
As regras de capital propostas, associadas às exposições à dívida soberana, irão aumentar os custos de financiamento para os governos, tornando mais difícil que estes reduzam a sua dívida. Além disso, a proposta não iria contribuir para melhorar a rentabilidade dos bancos.
Contudo, esta não é a visão maioritária dentro do Conselho. Os outros quatro “sábios” acreditam que “a relação próxima entre os governos e os bancos, que se acentuou desde a crise, é vista como uma razão para a gravidade da crise da zona euro”. Assim, o Conselho quer reduzir os riscos de concentração nos balanços dos bancos, que tendem a emprestar mais aos seus Estados de origem, e aumentar a sua capacidade de absorção de perdas, para evitar que “a insolvência de um Estado leve, de imediato, à insolvência de um banco”.
As exposições aos soberanos “são consideradas inteiramente seguras e líquidas“, ao passo que outros créditos não-soberanos são sujeitos a haircuts na concessão de liquidez e têm associadas penalizações nas regras de liquidez e capital. Isto cria, segundo o Conselho, “incentivos para que os Estados se endividem em demasia e para que os bancos prefiram emprestar aos Estados”.
Saída de um país da zona euro tem de ser possível. Como “último recurso”.
O facto de Wolfgang Schäuble e Jens Weidmann, do Bundesbank, se reverem nestas ideias tem levado a “negociações sensíveis em capitais europeias-chave, o que está a causar arrepios em Roma, Madrid e Lisboa”, escreve o jornal britânico.
Em Roma, especialmente, a exposição dos bancos italianos ao Estado ascende, segundo o The Telegraph, a um valor na ordem dos 400 mil milhões de euros – títulos que os bancos levam ao BCE e obtêm nova liquidez sem haircut. Alterações a esse nível teriam um impacto transversal na banca e na finança europeias.
Outro país, Portugal, já poderá estar a sofrer as consequências deste tipo de considerações, já que o The Telegraph escreve que “o país está no olho do furacão devido à economia em desaceleração e um conflito com Bruxelas sobre a austeridade”.
Contudo, o German Council of Economic Experts (GCEE) acredita que, no final de contas, estas “melhorias” contribuiriam para fortalecer a unidade do projeto europeu e a justiça entre os Estados-membros, à luz dos tratados. Mas, “mesmo com estas melhorias, uma indisponibilidade fundamental de um Estado-membro para cooperar poderá criar uma ameaça existencial à estabilidade da união monetária. O GCEE não defende a criação de procedimentos formais para saída, mas defende que a saída de um país da união monetária deve ser possível como último recurso“.