Estamos com os atores quando faltam apenas dois dias para a estreia mas os nervos estão controlados. Há pormenores por afinar, claro, e a luz ainda não está perfeita mas o texto, tantas vezes analisado, está na ponta da língua, a interpretação segura. O Observador foi assistir a um dos últimos ensaios de “Os Justos”, a peça de Albert Camus com que o Teatro da Cidade, a mais recente companhia de Lisboa, se estreia esta quarta-feira, dia 30, em palco, na Cornucópia. Ficam em cena até 10 de Abril, dez dias em que se querem mostrar à cidade e com ela começar uma longa conversa. Bernardo Souto, Guilherme Gomes, João Reixa, Nídia Roque e Rita Cabaço, acompanhados de André Pardal e Ricardo Alas, esperam ter resposta. Querem um diálogo, não um monólogo.
Foi no conservatório, onde estudaram teatro, que estes atores se conheceram. Depois trabalharam juntos na Cornucópia, ao longo dos últimos dois anos, em peças como “Hamlet”, sob a batuta de Luis Miguel Cintra. O teatro atravessa um momento particularmente difícil em Portugal, cada vez há mais dificuldades de financiamento, os elencos tornam-se mais reduzidos, há menos peças. São novos, os trinta anos ainda estão por completar, não querem ficar limitados ou estar dependentes de eventuais convites para peças que podem nem lhes interessar. Querem crescer, com textos que os façam pensar.
“Juntámo-nos porque partilhávamos uns com os outros um pensamento artístico. No “Hamlet” trabalhámos todos juntos e, empurrados pelo Luis Miguel Cintra, começámos a encontrarmo-nos no sentido de perceber até que ponto as nossas ideias sobre o teatro eram convergentes. Há uma grande vantagem em estar com pessoas com quem te identificas: poderes fazer coisas que te dizem respeito e que são importantes para ti, sem seres obrigado a fazer coisas com que não te identificas. Queremos que isto não nos impeça de fazer outras coisas mas ter este porto seguro onde podemos fazer o que queremos”, diz Guilherme Gomes, que há uns meses deu vida a Hamlet.
Desde então foram meses a ler textos, a fazer ensaios de escrita, sem pressas, no intuito de perceber o que queriam mesmo levar à cena. “Tínhamos como prioridade tentar encontrar, artisticamente, um universo comum entre todos. Sobre o que era importante para nós falar, pensar, partilhar?”, lembra Rita Cabaço. Conta-nos que foi o ator Luís Lima Barreto a sugerir-lhes a leitura de “Os Justos”, de Camus, uma peça sobre um grupo de jovens revolucionários russos que, no início do séc. XX, assassina o grão-duque num atentado terrorista para acabar com a tirania que oprimia o povo. Não foi preciso lerem mais textos. A peça estava escolhida, com questões tão pertinentes há cem anos como hoje: Qual a legitimidade para matar? Haverá justiça num assassinato? Revolucionário ou sanguinário? Crime ou justiça? “O que importa nesta peça não é o terrorismo em si, mas temas como a dignidade individual, o valor da vida humana, a ética, a busca da justiça, do que é justo”, salienta Guilherme Gomes.
Ontem, hoje e amanhã
Não podiam adivinhar que dias antes da estreia dois atentados terroristas matassem tanta gente numa semana que começou em Bruxelas e acabou no Paquistão, tornando as palavras de Camus ainda mais urgentes. Querem distanciar-se, evitar o paralelo, mas sabem que é difícil, talvez mesmo impossível. “É inevitável não sentirmos o que aconteceu quando estamos a fazer isto. Mesmo não querendo arranjar paralelismos não conseguimos. Está demasiado presente para não nos identificarmos com tudo isto”, diz Rita Cabaço.
E aqui, nota Ricardo Alas, há o reverso da medalha: os terroristas são olhados de perto, humanizados. “Eles têm uma história, uma identidade, uma personalidade, questões pessoais além da organização, são indivíduos dentro daquela sociedade. Vemos os terroristas como uma massa. Mas são pessoas com um passado, uma história, são todos filhos de alguém”. Nídia acrescenta: “São todos filhos de algo. Os terroristas desta peça são resposta a um país tirano. E a pergunta que me faço é: os terroristas de hoje são filhos do quê?”
O mote está dado. Estão desde janeiro a trabalhar a peça mas as questões são ainda muitas. O microfone é esquecido, lançam-se num debate entre eles, mais feito de perguntas que de respostas. As ideias vão surgindo, a discussão é acesa. Discussão que, esperam, seja retomada todas as noites, nestes dez dias de palco, não só entre eles mas com o público.
Gostávamos que todas as noites houvesse uma conversa. Queremos aproximar as pessoas da discussão teatral, seria muito estimulante que as pessoas ficassem para falar connosco. Não queremos ver o teatro apenas como um meio de entretenimento, mas como um local de debate e de partilha de imaginários.”
O trabalho não se vai esgotar nesta peça. Têm já planeado um novo espetáculo, à volta da obra de Karl Valentin, que querem estrear em outubro, no Carpe Diem. À semelhança do que acontece nesta, não terá um encenador, tal como a companhia não tem um diretor artístico. Pelo menos por enquanto, funcionam em unidade, a criação é coletiva e é em grupo que assinam tudo, da encenação ao cenário e figurinos: “Partilhamos tudo. Isto é nosso, tudo, o bom e o mau. Todos temos responsabilidades sobre tudo”. Sublinham, porém, o presente, enorme, que a Cornucópia lhes deu: não só lhes cedeu o espaço (para a apresentação da peça e para os ensaios) como toda a equipa se juntou para com eles trabalhar: “Não dava para pedir uma coisa destas: ter o Rui a ajudar-nos com a luz, o Jorge com o cenário, a Cristina, a Amália e a Tânia… Já nos conheciam, compreenderam as nossas dúvidas, incertezas. Há uma relação afetiva que nos liga à Cornucópia.” Podem partir mas sabem que vão sempre voltar.
Em cena de 30 de março a 10 de abril. De 3ª a sábado às 21h e domingo às 16h. Sessão com língua gestual portuguesa no dia 3 de abril. Preço dos bilhetes: 6€