Oito anos, cinco governos, três primeiros-ministros, 398 milhões de euros e quase 6 quilómetros de túnel depois, o Túnel do Marão vai ser inaugurado este sábado. Para trás ficam acusações entre socialistas e sociais-democratas sobre o financiamento do projeto e a forma de realização da obra — como concessão ou empreitada. Uma polémica que culmina na inauguração, com um encontro entre Sócrates, que propôs e lançou esta obra, e António Costa, líder do executivo que a vai inaugurar, sem Passos Coelho, que a apanhou em fase crítica.
O Túnel do Marão, assim como outros acessos no interior do país, foi uma promessa de campanha de José Sócrates, se bem que o projeto já tinha sido defendido por Durão Barroso quando liderou o governo entre 2002 e junho de 2004.
Já depois de ganhar as eleições de 2005, quando o então primeiro-ministro anunciou os novos acessos àquela região, um grupo de autarcas foi recebê-lo dizendo que “estavam todos a ser enganados” e que “nada seria construído”. José Sócrates, conhecido pelos seus acessos de fúria, terá ficado incomodado com aquela receção, fazendo com que a viagem de Bragança a Lisboa não tivesse sido fácil para quem o acompanhou. Agora, volta ao Túnel do Marão, oito anos depois de ter assinado o contrato de adjudicação da concessão da obra.
No entanto, o tema nunca caiu no esquecimento. Com a paragem das obras na transição do Governo socialista para o Governo de Passos Coelho e com uma Comissão de Inquérito às Parcerias Público Privadas (PPP) na Assembleia da República, o Túnel do Marão, pela sua envergadura, mas também pelo que significava para os dois governos serviu de arma de arremesso entre PS e PSD.
De um lado, Paulo de Campos, ex-secretário de Estado das Obras Públicas de José Sócrates, considera que “os interesses financeiros dos bancos” se sobrepuseram ao interesse do Estado, segundo referiu ao Observador, enquanto Pedro Passos Coelho insistiu em declarações à Lusa esta semana que, “apesar dos inconvenientes resultantes do atraso na conclusão da obra”, poupou “cerca de mil milhões de euros ao erário público“.
Entre o início das obras em 2009 e 2016, a empreitada esteve parada cerca de quatro anos, distribuídos por diferentes períodos. Começou por ser atribuída ao consórcio Auto-Estradas do Marão, liderado pela Somague, num contrato de concessão que previa a construção e exploração desta empresa durante os 30 anos seguintes à conclusão da obra — que se estimava que estivesse pronto a 1 de fevereiro de 2012.
Segundo Paulo Campos, o acordo com este consórcio era de “chave na mão” e o projeto iria custa 341 milhões de euros. “Este foi o último grande contrato firmado antes da queda do Lehman Brothers (setembro de 2008) e o projeto conseguiu financiar-se com um spread muito baixo“, afirma o antigo governante socialista, indicando que a taxa de juro ficaria entre 0,7% e 1%. O empréstimo foi contraído junto do Banco Europeu de Investimento (42,5%), Caixa Geral de Depósitos (9,5%), Royal Bank of Scotland (9,5%), Bank of Scotland (9,5%), La Caixa (9,5%), Fortis (9,5%) e West LB (9,5%).
Uma sucessão de crises no Marão
Mas mesmo antes da crise dos mercados financeiros ter impacto no financiamento do Estado e dos bancos portugueses, começaram os problemas. Logo em 2009, a Águas do Marão interpôs uma providência cautelar contra a continuação da obra, alegando que esta poderia afetar a qualidade da água extraída daquela formação montanhosa. Conseguiu pará-la durante alguns meses. Esta empresa voltaria a fazer parar a obra algum tempo mais tarde, novamente durante alguns meses. A obra seria retomada em pleno no final de 2010, mas a data de fim da execução já tinha derrapado para outubro de 2012.
Nesta fase, Paulo Campos alega que o financiamento ao consórcio Auto-Estradas do Marão começou a ser pressionado pelos bancos, tendo em vista a subida da taxa de juro dos contratos. “Começaram a ser pedidos aumentos das taxas de juro e tenho e-mails de Sérgio Monteiro, que estava na Caixa Geral de Depósitos (Caixa BI) e depois se tornou secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, a dizer que só prosseguia se houvesse revisão das taxas, mas o Governo sempre resistiu“, afirmou Paulo Campos ao Observador.
Fonte do Governo de Passos Coelho disse ao Observador que é “incompreensível” e uma “vergonha” que se use o estatuto de técnico de Sérgio Monteiro na altura para justificar “o falhanço do Governo de Sócrates”.
Com o acelerar da crise em Portugal e a chamada da troika, o Túnel do Marão ficaria perdido entre problemas mais urgentes. No entanto, e sem financiamento para continuar, o consórcio suspendeu a obra em junho de 2011, durante 90 dias alegando “problemas financeiros”. Paulo Campos insiste que foi o Governo de Passos Coelho que “atirou a toalha ao chão e enfiou o acordo no saco. Custou-me muito que os interesses financeiros dos bancos tenham custado um atraso de quase 1.300 dias na obra e que mais de 100 empresas fossem afetadas neste processo”, afirma o antigo secretário de Estado socialista.
Mas Sérgio Monteiro disse na Assembleia da República, em abril de 2013, que o financiamento já tinha terminado antes disso. “O financiamento não parou com este Governo. Estava parado desde fevereiro de 2010”, declarou Sérgio Monteiro, indicando que Paulo Campos tinha também responsabilidade. “O senhor deputado não teve condições para conseguir que os bancos financiassem da mesma forma que eu não consegui”, acrescentou.
O relatório da Comissão de Inquérito às PPP — pedida pelo PSD, e que olhou para todas as parcerias público-privadas contratadas por José Sócrates entre 2012 e 2013 –, concluiu que “a utilização massiva de PPP em Portugal como forma de financiamento do Estado desvirtuou o seu objetivo fundamental: reduzir custos para o Estado e melhor satisfazer as necessidades públicas”. Uma conclusão que também encaixa na obra do Túnel do Marão.
Uma solução insólita para a finalização do túnel
“Temos uma montanha que divide dois distritos com um buraco no meio. Havia a necessidade de recuperar o investimento e, para isso, era preciso acabar a obra”, esclareceu fonte do anterior Governo ao Observador. A solução encontrada por Sérgio Monteiro — e insólita em Portugal — foi resgatar a concessão alegando justa causa devido ao incumprimento pela concessionária Autoestradas do Marão. O governo que privatizou quase tudo acabou por “nacionalizar” o Túnel do Marão.
A Somague partiu para os tribunais e contestou a decisão do Estado. E o tribunal arbitral, num primeiro acórdão, já reconheceu que o Estado pode ser obrigado a indemnizar a concessionária pelo valor investido antes do resgate da concessão. O montante de uma eventual concessão terá que entrar nas contas ao custo final da solução que veio a ser adotada pelo executivo PSD-CDS.
Uma parte importante dos encargos financeiros que o Estado teve de assumir à cabeça quando tomou conta da obra foi parar diretamente à Caixa Geral de Depósitos, o banco público que foi financiando a obra quando os bancos privados do sindicato bancário da concessão se recusaram a manter a torneira do financiamento aberta.
Em vez de lançar uma nova concessão, o Governo de Passos Coelho decidiu finalizar a obra através de empreitadas públicas. A supervisão do processo ficou a cargo das Estradas de Portugal (atual Infraestruturas de Portugal) e as obras ficaram divididas da seguinte forma:
- A construção da ligação da A4-Nó do IP4 ao Túnel do Marão, com uma extensão de dez quilómetros, foi adjudicada à empresa OPWAY Engenharia (29,5 milhões de euros) — um contrato que chegou a estar em dúvida por causa do colapso do Banco Espírito Santo que comprometeu a caução apresentada pela construtora do Grupo Espírito Santo.
- O consórcio Teixeira Duarte e EPOS ficou responsável pela empreitada em regime de concessão/construção para a execução do túnel (88,1 milhões de euros).
- O sublanço de ligação do Túnel do Marão a Parada de Cunhos, com dez quilómetros, foi entregue ao consórcio Ferrovial Agroman e Lena Engenharia, (28,8 milhões de euros).
O projeto conseguiu ainda manter o financiamento comunitário que contribuiu com quase 90 milhões de euros.
“O custo total da obra ficou em 398 milhões de euros, enquanto o contrato inicial dava um valor de 341 milhões de euros e vemos que as Estradas de Portugal se estão a financiar com spreads de 5%, ou seja, muito superiores àqueles que tínhamos conseguido em 2008″, argumenta Paulo Campos. No lado social-democrata, a justificação prende-se com os encargos da concessão de 30 anos à Somague. Em abril de 2015, Sérgio Monteiro afirmou que tinha havido “uma poupança que, comparada com o contrato de PPP anterior, representa cerca de mil milhões de euros a menos de despesa”.
Paulo Campos contesta estes números com um relatório da Ernst & Young, pedido pelo executivo de Passos Coelho, em que apenas os valores nominais se aproximam dos 800 milhões de euros, sem ter em conta a receita pública. “Passos Coelho está mais uma vez a enganar os portugueses”, diz.
Um túnel que traz mais segurança às estradas do interior
Um ponto em que tanto PS como PSD concordam são as vantagens que a construção deste túnel vem trazer às populações do interior. Apesar de apenas encurtar o percurso entre Porto-Bragança em 35 minutos, o túnel do Marão pode ser a solução para a elevada sinistralidade naquela zona, já que os condutores vão poder evitar zonas de curvas permanente e que no inverno se cobrem de neve, tornando a condução mais perigosa.
Apesar de se passar a pagar portagem — entre 1,90 e 4,5€, dependendo da classe do veículo –, as empresas e os condutores individuais estimam poupar já que o gasto em gasolina vai diminuir, passando-se de uma condução a pique, com subida da serra, a uma travessia em linha reta de 5,6 km. “Quando vejo a conclusão do túnel, tenho uma enorme alegria interior já que será possível ao interior disputar mais e melhor desenvolvimento para a região”, afirma Paulo Campos, dizendo que o túnel é marca dos executivos de Sócrates.
As vantagens do túnel foram também indicadas pelo anterior primeiro-ministro, que apesar de não marcar presença na inauguração de sábado, está na sua terra natal de Vila Real. “Vai melhorar a vida das pessoas, facilitar o seu dia-a-dia e o das empresas, desbloquear constrangimentos diários e assim contribuir também para uma maior competitividade da região, ajudando a criar emprego e potenciando um maior dinamismo do tecido empresarial”, disse o antigo primeiro-ministro, afirmando ainda vai trazer “mais segurança rodoviária” à ligação no Marão.
Após a conclusão da construção civil, o túnel passou por uma fase de testes de segurança. “Temos um plano exaustivo de ensaios e é o que estamos a fazer agora. O objetivo é pôr o mais rapidamente possível esta infra-estrutura ao serviço, mas em totais condições de segurança”, disse André Oliveira, coordenador do empreendimento, à Lusa. Nesta última fase da construção chegaram a trabalhar 580 pessoas no túnel e durante todo o período da empreitada não houve nenhuma vítima mortal.