No passado dia 4 de maio, um jovem aventureiro de 24 anos decidiu empoleirar-se na estátua de D. Sebastião que se encontrava à entrada da Estação Ferroviária do Rossio, em Lisboa, para tirar uma selfie. O plano parecia brilhante — era só subir, tirar a fotografia e já estava. Porém, a brincadeira acabou por provocar a queda da estátua de 126 anos e a sua destruição. A notícia correu os jornais nacionais e até já chegou lá fora. Publicações como o The Telegraph, o Daily Mail ou International Business Times, do Reino Unido, já publicaram a história e até a agência de notícias Reuters fez uma notícia sobre a tragédia de D. Sebastião.
A Infraestruturas de Portugal (IP), entidade que gere as infraestruturas rodoviárias e ferroviárias em Portugal e que é detentora da Estação do Rossio, já admitiu que será apresentada queixa contra o jovem responsável pela queda da peça, um “ato de puro vandalismo”, assim que os danos forem avaliados. Ao Observador, fonte oficial da IP disse que a avaliação “ainda está a decorrer tendo sido contactadas as entidades competentes”. “Fazer uma nova peça ou restaurar a existente são as possibilidades que estão a ser consideradas”, admitiu ainda a mesma fonte.
https://www.instagram.com/p/BFLuH05xksZ/?tagged=rossio
Quem viu a estátua, garante que pouco sobrou do jovem D. Sebastião, o que poderá dificultar a possibilidade de a peça vir a ser alvo de um restauro. Porém, os deuses parecem estar do lado de Sebastião. O Instituto Oftalmológico Dr. Gama Pinto, em Lisboa, tem em sua posse aquele que poderá ser o modelo original da escultura de Simões de Almeida (tio), construída de propósito para a fachada da Estação do Rossio. A história pode parecer improvável, mas a verdade é que não é.
Parte do Instituto Oftalmológico Dr. Gama Pinto fica instalado no antigo Palácio dos Condes de Penamacor, perto do Marquês de Pombal, em Lisboa. De acordo com Fátima Sena e Silva, membro do conselho de direção do organismo, no final do século XIX, o palácio serviu de residência a Edmund Bartissol, um engenheiro ferroviário francês que esteve envolvido na construção das linhas férreas da Estação do Rossio (e de muitas outras linhas espalhadas por esse país fora). É talvez por isso que o antigo Palácio dos Condes de Penamacor tem, há 126 anos, uma estátua de D. Sebastião exatamente igual à que se encontrava no Rossio.
Ao tomar conhecimento da destruição da escultura, o instituto entrou em contacto com a IP que, por sua vez, entrou em contacto com as autoridades competentes, nomeadamente a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC), que tem a seu cargo outras peças assinadas pelo mesmo escultor, Simão de Almeida (tio). Fátima Sena e Silva garante que a estátua que se encontra na posse do instituto é “exatamente igual” à que estava na estação, mas que está “mais preservada do que a do Rossio porque esteve aqui guardada durante mais de 100 anos“.
[A estátua do Instituto Oftalmológico Dr. Gama Pinto, que serviu de modelo à da Estação do Rossio:]
O instituto oftalmológico lisboeta foi visitado esta terça-feira por técnicos da DGPC e do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC), a quem coube avaliar a peça. “Analisamos a hipótese de se tratar de um estudo de Simões de Almeida, Tio, pelas afinidades existentes com estatuária pública do autor e a amizade com o arquiteto José luís Monteiro”, explicou ao Observador Maria de Aires Silveira, curadora do MNAC.
Segundo a curadora, a escultura, também ela feita de pedra de calcário macio, “não se trata de um molde, mas de uma peça mais elaborada, talvez a peça inicial”. Ou seja, a estátua do instituto oftalmológico poderá ter servido de base para a “realização da obra da fachada da estação ferroviária, efetuada pelos canteiros DuParcly & Bartissol”. “Certezas não existem, mas estamos a estudar a hipótese”, admitiu a curadora.
No que diz respeito à preservação, Maria de Aires Silveira não parece estar muito de acordo com Fátima Sena e Silva — de acordo com a curadora, o D. Sebastião do Instituto Oftalmológico Dr. Gama Pinto não tem um pé e apresenta algumas falhas.
Simões de Almeida, o tio de Simões de Almeida
A estátua, da autoria de Simões de Almeida (tio), responsável por outras esculturas que se encontram na Estação do Rossio, foi projetada para a fachada do edifício, mais especificamente para um nicho de cruzamento das arcadas de “referências orientalistas inspiradas em decorações do gótico tardio ou manuelinas”, explicou Maria de Aires Silveira.
José Simões de Almeida Júnior (“tio”, para o distinguir do seu sobrinho, Simões de Almeida, também ele escultor) nasceu a 24 de abril de 1844 em Figueiró dos Vinhos, em Leiria, no seio de uma família de fundidores (tanto o seu pai como o seu avô, trabalharam para a Fábrica Real do Ferro na Foz de Alge, nos subúrbios de Figueiró dos Vinhos, que fechou em 847). Ainda muito jovem, tornou-se aprendiz no Arsenal do Exército, onde o seu pai era chefe da oficina de fundição de ferro.
Familiarizado com as técnicas de fundição e de moldagem, aos 12 anos transitou para a secção de entalhamento, onde revelou grandes aptidões para o trabalho. Por esse motivo, o seu diretor, o Capitão de Mar e Guerra Francisco Gonçalves Cardoso, incentivou-o a frequentar a disciplina de Desenho na Academia Real de Belas Artes de Lisboa. Mais tarde, em 1860, matriculou-se em Escultura na mesma Academia, onde teve como Mestres Francisco de Assis Rodrigues e António Vítor Bastos, nomes incontornáveis da escultura portuguesa do século XIX.
Terminou o curso em 1865, com 21 anos, com uma classificação elevada, o que lhe permitiu partir no mesmo ano para Paris, como bolseiro do Estado, para estudar Escultura. Na capital francesa, frequentou as aulas do escultor francês François Jouffroy, considerado um escultor oficial, na Escola Imperial de Belas-Artes. Trabalhou com vários outros escultores consagrados, participou em exposições e recebeu cinco medalhas de prata, uma menção honrosa e um prémio pecuniário de duzentos francos atribuídos por ocasião das exposições escolares de 1868 e 1869.
“Simões de Almeida foi o primeiro escultor português a viajar para o estrangeiro com bolsa do Estado”, explicou Maria de Aires Silveira. “A sua aprendizagem em Paris e Roma deu-lhe uma formação diferente do academismo da Escola de Belas-Artes de Lisboa.”
Depois de uma breve estadia em Portugal, partiu para Itália em outubro de 1870. Em Génova, conheceu Giulio Monteverde, escultor italiano naturalista, por intermédio de Alfredo de Andrade, arquiteto português radicado em Itália. Em 1872, de volta a Portugal, foi reconhecido como Académico de Mérito, assumindo também nesse ano a docência da disciplina de Desenho na Academia de Belas-Artes de Lisboa, tornando-se professor efetivo a partir de 1881. Foi nesse período que trabalhou nas estátuas da Estação do Rossio, um projeto do amigo e arquiteto José Luís Monteiro.
Em 1905, por altura do falecimento de António de José Nunes Júnior, pintor e professor de Gravura da Escola de Belas Artes de Lisboa, foi nomeado diretor da instituição, cargo que ocupou até julho de 1912. Simões de Almeida morreu a 13 de dezembro de 1926 na sua casa da Amadora. Tinha 82 anos.
“As suas esculturas aliam o interesse pela temática romântica ao gosto pelo academismo formal e pelo espírito clássico dominado por formas, proporções, gestos e poses idealizados, enunciando uma estética naturalista que se revela no tratamento da textura e consequente claro-escuro (retratos e bustos)”, escreveu Joana Baião para o site do MNAC.
Estação do Rossio, uma lembrança de tempos áureos
A Estação Ferroviária do Rossio, aberta ao público em junho de 1890, foi projetada por José Luís Monteiro, arquiteto português nascido em Lisboa em 1848, depois de ter regressado a Portugal vindo de Paris, onde frequentou a Escola de Belas-Artes como bolseiro do Estado português. A viagem de regresso a Lisboa foi feita na companhia de António Carvalho de Silva Porto, pintor naturalista.
https://www.instagram.com/p/BFI7AWHPyp8/?tagged=rossio
A Estação do Rossio foi construída seguindo o modelo das grandes estações europeias, com uma zona de plataforma coberta por uma pala em ferro e sustentada por uma estrutura de colunas. O interior incluía ainda alguns elementos modernos, como dois ascensores (inicialmente com um sistema hidráulico), uma zona de bilheteira, uma alfândega e Guarda Fiscal. Tudo para mostrar o caráter internacional da estação. A ela, afluíam todas as linhas férreas nacionais e internacionais. Durante grande parte do século XX, serviu inclusive de paragem ao Sud Express, o comboio noturno que ligava várias cidades europeias a Paris.
Para a decoração, José Luís Monteiro inspirou-se na Estação de Saint-Lazare, em Paris. O interior simples contrasta com a decoração do exterior, onde se encontrava exposta a estátua de D. Sebastião. As decorações ao estilo gótico tardio e manuelinas seguem uma “linguagem arquitetónica que valoriza os revivalismos, numa época de grave crise moral e económica, marcada pela desilusão do Ultimatum inglês, em 1890”, explicou Maria de Aires Silveira. “Era portanto importante interessar as pessoas por épocas passadas, de períodos considerados áureos, como as Descobertas e a arte manuelina.”
O outro D. Sebastião de Simões de Almeida
A importância da escultura de D. Sebastião que se encontrava na fachada da Estação do Rossio prende-se também com facto de ser uma das poucas do rei português, desaparecido em Alcácer-Quibir em 1578. Mas não é a única da autoria de Simões de Almeida. No MNAC, encontra-se depositada uma outra escultura de D. Sebastião, “de uma expressividade sensível e claramente naturalista”, explicou a curadora do Museu do Chiado. “Um jovem que reflete sobre os destinos da nação e tem nas mãos um volume da História de Portugal.”
A peça, originalmente em gesso, foi esculpida em 1874 e mostra o rei de pé, cabisbaixo, segurando um livro com a mão direita, encostado a um suporte adornado por uma pequena coluna decorativa. “O traje cortesão renascentista, que usa, juntamente com um colar da cruz de Avis e uma adaga à cintura, acompanhado de uma capa encostada ao suporte, é pormenorizado nos pregueados que se ajustam ao corpo, nos calções ou nos folhos da gola maneirista. Esta pormenorizada observação do escultor e a apresentação do rei com uma dimensão humana é uma novidade e inscreve-se na linguagem artística do naturalismo.”
A estátua em gesso foi exposta pela primeira vez na Sociedade Promotora das Belas Artes em Portugal, no mesmo ano, tendo sido premiada com a Medalha de Prata. Na sequência da mostra, o rei D. Luís encomendou a Simões de Almeida que passasse a obra original para mármore de Catarra. A peça, que passou então a integrar a coleção real, foi enviada para Paris em 1878, para participar na Exposição Universal. Em 1924, a estátua, então no Palácio Nacional da Ajuda, foi solicitada pelo MNAC para passar a fazer parte da sua exposição permanente.
Ao contrário do que chegou a ser avançado no dia da tragédia da selfie, a peça do MNAC não se trata de uma cópia, mas sim de uma estátua completamente diferente da que se encontrava na fachada da Estação do Rossio. Essa recebeu um tratamento muito mais “simplificado, por se tratar de peça decorativa”, feita em calcário macio como as decorações dos arcos. “Teve um desfecho triste — um final fatal –, vítima de um caso de vandalismo ao património nacional classificado”, lamentou Maria de Aires Silveira
Artigo atualizado às 14h07 de 11/05 com novas informações sobre a estátua do Instituto Oftalmológico Dr. Gama Pinto