O burburinho típico que atravessa a sala onde decorrem os trabalhos do Congresso desapareceu por completo. No palco estava Francisco Assis — o crítico por quem se aguardava –, mas o silêncio foi rompido por alguns apupos e assobios, que fizeram o socialista ficar alguns segundos em silêncio, mesmo depois de já se terem calado os militantes que não gostaram de o ouvir assumir “uma opinião muito crítica em relação à forma como o partido tem vindo a ser conduzido”. Depois voltou o silêncio pesado e Assis continuou. Só teve aplausos no fim, de António Costa também — é o crítico-útil. Teve mais palmas do que um militante anónimo. Mas foi muito menos aplaudido do que Pacheco Pereira (este teve direito a 13 momentos de aplausos), que era aplaudido mesmo quando criticava o PS.

Os dois homens são formados em Filosofia. Tanto Assis como Pacheco têm experiência como eurodeputados e conhecem bem os corredores de Bruxelas. Num congresso que se antevia morno, foram os dois protagonistas deste sábado. Os momentos altos foram deles. Um é militante e crítico do PS. O outro é militante e crítico de outro partido. Como pode ver no vídeo em cima, as suas intervenções sobrepostas permitem perceber duas coisas: o que os congressistas queriam ouvir (Pacheco Pereira); e o que os congressistas preferiam não ter ouvido (Assis).

Pacheco Pereira continua a ser do PSD, apesar de ser uma das vozes mais críticas do seu partido — que já nem considera ter uma orientação social-democrata. Foi o rival apresentado como trunfo, adversário conveniente, servido não só para satisfazer o auditório, mas sobretudo por ser artilharia pesada contra Pedro Passos Coelho. Aliás, Pacheco Pereira fez questão de dizer que não foi ao congresso do PS, mas sim participar num debate no Congresso do PS. O socialista Assis, porém, subiu ao palanque ano e meio depois de não ter falado no congresso que entronizou António Costa, por a sua intervenção ter ficado para horas tardias.

Desta vez, a voz de Assis foi a única de peso a fazer-se ouvir contra a atual solução governativa no palco do Congresso. Não teve, até agora, nenhuma no mesmo tom, nem mesmo a do segurista Álvaro Beleza, que havia de surgir no mesmo púlpito pouco depois. O representante da ala segurista acabou por ser pouco incisivo nas críticas ao acordo de esquerda com o qual não concorda: mantém as reservas, mas prefere “não maçar” os congressistas com o que eles “já conhecem” e até admite que a coligação “tem sido sólida”. Já Assis, não se deixa convencer: “É certo que ela nos permitiu chegar ao poder” mas permitiu a “outros partidos condicionar[-nos] decisivamente”.

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No discurso que fez, Assis lamentou o “elevado grau de isolamento” a que foi votado “dentro do partido”. “Não é uma situação agradável ou sequer fácil para alguém que confundiu grande parte da sua vida pessoal com a vida do PS” e disse mesmo que o “sente na pele” diariamente. Apesar de “sozinho”, recusa-se a “silenciar as suas convicções profundas”.

Divergimos [PS] em quase tudo o que é essencial do Bloco de Esquerda e do PCP”.

O socialista insiste na tese de que o Governo de António Costa está refém do Bloco e PCP. “[Hoje, existe] um Governo em situação de liberdade muito condicionada e permanentemente vigiado” por aqueles que “pensam e agem de forma radicalmente diferente” do PS, diz Assis. À saída do Congresso, afirmou respeitar o BE e PCP, mas sublinhou a divergência “profunda” com os dois partidos numa questão que considera “essencial”: a política europeia.

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A posição do eurodeputado do partido acabou por ser saudada no círculo do líder do PS onde há quem considere que existir críticos como Assis é bom. “Se não isto era uma missa”, confidenciou um dirigente do partido ao Observador. A outra ala crítica, a dos que eram mais próximos da direção anterior à de Costa, a de António José Seguro, acabou por não marcar presença. Ou como diz outro alto dirigente do partido, “eclipsou-se”.

Quanto aos assobios que surgiram pouco depois de Assis ter começado a discursar, Augusto Santos Silva lamentou, dizendo que o socialista “tem toda a legitimidade de manifestar a sua opinião”. No entanto, em declarações ao Observador, Santos Silva desdramatizou: “Foram quatro ou cinco assobios. Acho mal, mas é a vida”. O deputado Jorge Lacão resumiu: “Houve uma afloração epidérmica inicial, mas cessou rapidamente”. E explicou ao Observador que não teve surpresas no discurso de Francisco Assis. “Defendeu os seus pontos de vista e foi o primeiro a reconhecer que tinha esses pontos de vista, que não encontraram eco no PS”.

Palmómetro: Assis vs. Pacheco

Quem não estava à espera de apupos e assobios era Assis, que ainda na semana passada em entrevista ao Observador foi confrontado com essa hipótese e respondeu:”Não. Nem penso que vá acontecer. Já passei por muitas coisas em 30 anos de vida política. Já passei por situações mais complexas. Por isso não tenho medo nenhum disso e acho que não há risco de acontecer. O PS é um partido democrático, tolerante e aberto, que sempre soube conviver com diferentes perspetivas”. Noutra entrevista que deu (ao Expresso), Assis recorria à ironia para dizer que tencionava falar no Congresso e que esperava “ter tanta possibilidade de participação no congresso” do seu partido “como o Dr. Pacheco Pereira. Ficaria muito desiludido se o meu partido estivesse mais disponível para o ouvir do que a mim, porque seria sinal de uma doença muito grave”.

O PS acabou por estar mais disponível para Pacheco Pereira que tinha estado na sessão de debate da manhã, para debater o socialismo democrático com Pedro Silva Pereira e Ana Drago (a ex-dirigente do BE que se associou ao Livre depois de criar uma plataforma de cidadania). O social-democrata foi muito aplaudido, mesmo que tivesse criticado a moção de António Costa ao dizer que nela encontrava “centro-esquerda moderado, mas de socialismo não há nada”. Uma consequência, disse o social-democrata, de ter o PS ter assinado o Tratado Orçamental europeu, que implicou subjugar “o coração da política do Estado e do Governo”. Este ponto de situação é “muito dificilmente reversível sem convulsões”, argumentou. Uma posição em tudo contrastante com as posições manifestadas por Francisco Assis.

A devolução de salários e pensões não é socialismo. A aceitação das regras europeias implica que o essencial da política económica e financeira não pode ser aquela que caracteriza o socialismo.”

Foi o discurso mais aplaudido do dia, com Pacheco — ainda que entre alguns reparos ao PS — a dizer exatamente o que os militantes socialistas se tinham preparado para ouvir: não há socialismo, mas porque Bruxelas não deixa. Aliás, o ex-líder parlamentar do PSD não tem mesmo dúvidas: é preciso rasgar o Tratado Orçamental sob pena de os partidos socialistas e sociais-democratas e o projeto europeu como o conhecemos desaparecerem. “Sem acabar com o Tratado Orçamental a política da Europa é oficialmente neoliberal”.

Assis acabou por verbalizar no púlpito as suas reservas a uma solução que muitos socialistas acabaram por aceitar, mesmo que originalmente não o defendessem. Augusto Santos Silva, por exemplo, foi inicialmente contra a solução. Mas aceitou-a. Hoje é ministro dos Negócios Estrangeiros. Por isso mesmo, Francisco Assis não foi ao pavilhão da FIL — onde decorrem os trabalhos do PS este fim de semana — com “expectativas de ser aplaudido”. “Mas vinha com a expectativa de ser ouvido com atenção. E fui”, disse o eurodeputado no final da sua intervenção. António Costa acabou por aplaudi-lo, bem como a sala. Já Pacheco foi curto e grosso na despedida: “Não me convidaram para vir cá dizer amabilidades”. Mas parece ter tocado mais no coração ou na razão dos socialistas, terminando a sua participação no Congresso do PS com uma forte salva de palmas.