Foi durante uma viagem de carro. Tiago a conduzir, a companheira Ana ao lado, as duas filhas do casal de 2 e 4 anos no banco de trás. Tiago esticou o braço, agarrou na cabeça de Ana e empurrou-a contra o tablier, várias vezes, seguindo-se “murros, murros, murros”. Aos murros seguiu-se um relatório hospital com destaque para um traumatismo craniano, fraturas na região frontal e deslocamento do maxilar.
Esta foi a última agressão de Tiago para Ana Maximiano. Foi a agressão que fez com que Ana fugisse de casa com as duas meninas e a filha mais velha, fruto de uma anterior relação. Hoje, a luta é outra. A mulher de 34 anos está há nove dias em greve de fome porque o companheiro, entretanto condenado por violência doméstica, é o detentor da guarda das duas crianças. A terceira seguiu para o Porto com um pai que viu “três vezes na vida”. Ana perdeu a custódia das filhas e diz que não percebe porquê.
Encontramo-la às 15h no Jardim de São Bento, junto à Assembleia da República, numa sombra reservada por ela e para ela, para a sua garrafa de água com açúcar mascavado e para o cartaz. “Já estive ali na escadaria da Assembleia mas está tanto calor que não aguentei e agora estou aqui”, conta ao Observador. Antes, Ana esteve mais acima na rua, em frente à residência do primeiro-ministro, mas foi-lhe sugerido que procurasse outro lugar. Membros da polícia propuseram-lhe que entrasse e que falasse com um assessor de António Costa, mas Ana disse que só falaria na presença do seu advogado. Pedido negado, Ana procurou outro local.
“Risco iminente”
7 de dezembro de 2015 foi o dia fatídico que a faz estar hoje sem comer há dias consecutivos. Até aí, a história de Ana era assim: tinha decidido levar a violência doméstica a tribunal e o processo estava em fase de acusação. Ao arguido foi aplicada uma medida de coação de proibição de aproximação a Ana a menos de 500 metros. Ele ficou com uma pulseira eletrónica, ela ficou com um aparelho, “tipo telefone”, que acionava um alarme se Tiago se aproximasse no raio dos 500 metros. Em caso de risco, o tal telefone tinha um botão de pânico.
As meninas continuavam com a mãe e o pai podia ver as duas filhas uma hora por semana, em visitas assessoradas pela Segurança Social na Biblioteca de Algés, por ser um sítio público. Diz Ana que até aí estava descansada, a justiça fazia-se, cada um com o que merecia. “Eles consideraram que havia o risco iminente de o meu ex-companheiro repetir o ato, por isso é que lhe puseram a pulseira”, sublinha Ana, e o telefone toca três vezes durante a conversa. Primeiro o advogado, depois a mãe. “É que eu desmaiei ontem e eles estão preocupados para ver se me estou a aguentar”, diz.
Mas foi a partir deste ponto da história que Ana deixou de se aguentar. No dia 7 de dezembro, deixou as duas crianças de 4 e 6 anos na escola. Ao colo tinha a mais nova e dirigiu-se ao café que costumava frequentar, explica. De repente, o tal telefone disparou. “Começou a apitar e dizia lá que ele estava a 300 metros. Acionei o botão de pânico e pedi a uma amiga minha que estava lá: ‘Olha, não te importas de ficar aqui com a menina porque ele está ali’, e saí do café”. Os 300 metros indicavam que Tiago estava dentro da escola das filhas. “Ele estava a tentar levar a menina de 4 anos, a filha dele. Aliás, ele já vinha a descer com a menina ao colo”, refere, exaltada.
Veio a polícia, veio um técnico da escola, veio a advogada de Ana. Segundo a mulher, a Equipa de Crianças e Jovens (ECJ) da Segurança Social autorizou o pai a levar a menina com ele e assim foi. Entretanto, o dono do café foi ter com Ana e disse-lhe que a menina de dois anos, amparada pela amiga, tinha adormecido, e que a senhora a ia levar para casa. “E as técnicas acusaram-me de ter abandonado a bebé! Ela só ia levar a menina para casa para não estar a dormir ali no café!”, justifica.
A mãe diz ainda que a sua advogada já tinha apresentado um requerimento ao Tribunal de Cascais com uma queixa à Segurança Social a questionar a idoneidade das técnicas da SS, por numa das visitas terem permitido que o pai se aproximasse da ex-companheira, por exemplo. Ana tentou usar isso para impedir que a decisão das técnicas valesse na retirada da criança, mas não se verificou.
“Nem pediram documentação”
“Ainda nesse dia [7 de dezembro], a técnica da ECJ comprometeu-se que ele tinha de entregar a menina às 16h30 nesse dia na escola. Eu dirigi-me à escola às 15h porque era a hora de saída da menina de 6 e a mais nova ficou a dormir em casa da minha tia, para não assistir ao conflito. Quando chego à escola, dizem-me que não posso levar a minha filha mais velha comigo e ela nem sequer estava no processo, porque é de outro pai. Dizem-me que não posso sair dali com a minha filha porque tinha de esperar pela técnica”, revela a auxiliar educativa num jardim-de-infância.
Lá se reuniram 3 técnicas, 2 polícias do Tribunal e membros da PSP. Decisão: entregar imediatamente as filhas aos pais. O pai da menina mais velha veio de Santa Maria da Feira para a levar e o pai das outras duas levou depois a que restava. Foram buscá-la a casa da tia de Ana. Mas como é que o pai da miúda de 6 chegou do norte a Lisboa tão rapidamente? “Disseram-me depois que lhe ligaram logo de manhã a avisar que isto ia acontecer. Já estava combinado. As técnicas ligaram para o tribunal a pedir a aplicação do artigo 91º” da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, aponta.
Artigo 91º: “1 — Quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, e na ausência de consentimento dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades (…) ou as comissões de proteção tomam as medidas adequadas para a sua proteção imediata e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais”.
A bem ou a mal, Ana teve de entregar as meninas, inclusive a que estava em casa da tia. “Nem me pediram documentação, não me pediram boletim de vacinas, nada… Uma delas tem alergia à amoxicilina, a outra tem tendência a pele atópica e isso exige cremes especiais, mas ninguém quis saber. Agarraram-nas, levaram-nas e acabou”, diz, já em lágrimas.
De dezembro a fevereiro, nada de visitas. Mas em fevereiro há uma audiência para averiguar o que aconteceu naquele dia. A medida aplicada em dezembro é provisória e durará seis meses e é reconfirmada como a certa pela juíza. Helena Leitão decreta que as crianças devem continuar com os pais, mas Ana pôde começar a ter visitas assessoradas às filhas pela associação Passo a Passo, uma hora e meia por semana. Nada que a deixe mais tranquila. “Ou seja, passei a ser eu a ter limites nas visitas. E eles a guarda. Mas a criminosa sou eu?”
Passam mais uns dias, mais umas semanas, e chega-se a março, mês em que o acusado passou a condenado por violência doméstica agravada, por alguns episódios terem acontecido na presença das crianças. Dois anos e dez meses de pena suspensa. E aqui estava a esperança do regresso. “A juíza remeteu a certidão para o Tribunal de Família. Passados 6 meses havia a revisão da custódia provisória do processo das responsabilidades parentais e aí a juíza já sabia que ele tinha sido condenado por violência”, sublinha, como se o desfecho seguinte fosse óbvio.
Enquanto for preciso
Entretanto, houve técnicas da SS afastadas do caso, pedidos do novo advogado de Ana a reforçar a “instabilidade” do ex-companheiro, relatórios a favor de Ana da associação Passo a Passo, endereçados para o tribunal. Já em junho, a audiência decisiva não correu como esperado. “A juíza disse que o tal relatório já estava efetuado mas não estava disponível via Citius. E disse: ‘Não temos dados suficientes, por isso prolongue-se a decisão por mais 6 meses'”, conta a mulher de 34 anos. Assim, se tudo correr como está, Tiago ficará com as duas filhas até 7 de dezembro. Sobre a mais velha, haverá nova audiência a 28 de junho.
Afinal, porquê a greve de fome? “Porque a juíza quer prolongar por mais 6 meses a entrega do poder ao pai. Eu quero as minhas meninas de volta”, diz. A greve começou na quarta-feira passada, quando Ana recebeu o despacho da juíza. Desde aí, já esteve em frente ao Conselho Superior de Magistratura, à Procuradoria-Geral da República, ao Palácio de Belém e agora está em São Bento. Tanto no primeiro como no segundo órgão, Ana foi ouvida e espera agora alguma conclusão.
A greve vai acabar quando esta guarda provisória chegar ao fim. Amanhã, Ana quer estar nas escadarias da AR, com ou sem calor, para que mais gente a veja. “Vou até onde for preciso. Tenho cansaço, tenho sono, tenho dores de estômago… Mas não tenho as minhas filhas, percebe? E eu tenho de as ter de volta. Porque fora tudo o resto, com as minhas filhas eu estou bem.”