“Nós queremos o nosso país de volta” — o slogan-chave de Nigel Farage e do seu United Kingdom Independence Party (UKIP) para a campanha do referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE — levou a melhor sobre todos os perigos económicos que a saída do mercado único comporta. A análise aos resultados, contudo, revelam um país profundamente dividido. Não só pelo resultado (52% contra 48%) mas essencialmente pela forma como os votantes se comportaram em termos geográficos e do ponto de vista sócio-economico.

Se olharmos para o mapa de voto do Reino Unido há três factos que saltam a vista:

  1. O “Ficar” ganhou de forma clara na Grande Londres, Escócia e Irlanda do Norte e perdeu no resto do país; a Inglaterra, com a exceção de Londres e de outros centros urbanos, como Manchester ou Liverpool, votou em massa no “Sair”;
  2. As zonas com maior poder económico votaram no “Ficar”, enquanto as zonas com mais problemas económicos votaram no “Sair”.
  3. As zonas de eleitores trabalhistas votaram a favor do “Sair”

Porquê? Vamos começar pelo primeiro ponto.

Londrinos, escoceses e irlandeses

A Escócia, por exemplo, votou 62% no “Ficar” enquanto 38% queriam “Sair”. Uma clara maioria, muito impulsionada pelo SNP (Scottish National Party). Os nacionalistas, que se encontram no poder, já afirmaram através de Nicola Sturgeon, a primeira-ministra da Escócia, a vontade de realizar um segundo referendo — este sobre a independência do país do Reino Unido. Numa declaração formal na sede do governo regional, Sturgeon afirmou que “fará tudo para que a Escócia se mantenha na União Europeia”: “Nós afirmamos claramente que não queremos sair”.

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Alex Salmond, o antecessor de Sturgeon, já tinha afirmado que o Brexit seria decisivo para o futuro da Escócia. “Isto muda todo o contexto da independência da Escócia”, afirmou à BBC.

O voto nacionalista escocês é um voto europeísta. Os nacionalistas escoceses desejam ter o apoio da Europa para reequilibrar as suas relações com a Grã-Bretanha — uma equação muito mais viável em termos diplomáticos com o Reino Unido fora da Europa. Mas esse desejo é puramente instrumental para atingirem o seu principal objetivo: a independência.

O SNP tem uma raiz social-democrata, é o terceiro maior partido britânico em termos de lugares na Câmara dos Comuns e passou a dominar a paisagem política escocesa, ganhando votos aos conservadores mas essencialmente aos trabalhistas. Daí que a sua recomendação de voto tenha tido uma grande influência no resultado final.

Curiosamente, a abstenção na Escócia foi um pouco superior ao total nacional e ficou longe dos 84,6% que votaram no referendo sobre a Escócia. Em termos nacionais, o Brexit foi o terceiro acto eleitoral com maior participação nos últimos anos com uma participação de 72,2% dos eleitores.

A Grande Londres votou também claramente a favor do “Ficar” (59,9%). Capital do país, um dos principais centros cosmopolitas do mundo, sede das principais empresas inglesas e de muitas multinacionais, Londres correspondeu ao que previam as sondagens e recusou a saída. O mesmo aconteceu com outras grandes cidades, como Manchester e Liverpool.

A Irlanda do Norte, claramente mais pobre do que a Grande Londres e a Escócia mas muito influenciada pela vizinha República da Irlanda e pelas ambições dos partidos nacionalistas irlandeses com raiz católica, votou a favor do “Ficar” mas com um resultado mais renhido: 55,8% contra 44,2%

Ricos vs pobres

Claramente, a Inglaterra votou a favor da saída. O primeiro sinal que as sondagens que previam uma vitória do “Ficar” às 22h poderiam estar erradas veio com a vitória clara do “Sair” em Sunderland (quando se previa uma vitória do “Ficar”) e a vitória por pouco do “Remain” em Newcastle (quando se previa um resultado mais folgado).

Mas não foi por acaso que isso aconteceu — e repetiu-se por todo o país, mostrando uma clara divisão. Como se pode ver neste gráfico do Guardian, elaborado com base no cruzamento de dados demográficos dos cadernos eleitorais com os resultados verificados em cada círculo eleitoral.

Há um padrão claro sócio-económico na tendência de voto do “Sair” e do “Ficar” que se pode resumir assim:

  • As zonas com maior poder económico votaram no “Ficar”, enquanto as zonas com mais problemas económicos (e de maior influência do Partido Trabalhista e dos nacionalistas do UKIP) votaram no “Sair”;
  • Os votantes do “Ficar” são os que têm mais qualificações académicas, mais rendimentos, pertencem às classes sociais mais favorecidas (essencialmente classe A e B), são mais jovens e nasceram no Reino Unido;
  • Já os votantes do “Sair” têm poucos estudos, salários mais baixos, pertencem essencialmente às classes sociais B e C1, são mais velhos e não nasceram no Reino Unido.

Dois exemplos em termos geográficos que acabam por ser paradigmáticos.

No leste de Inglaterra, onde o UKIP de Nigel Farage tem o seu único representante na Câmara dos Comuns, o “Sair” ganhou com mais de 57% dos votos. É também aqui que a taxa de desemprego dos jovens é mais elevada (33%) e onde existe mais imigração ilegal em virtude da proximidade com a costa francesa. É onde se situa o pequeno círculo da cidade Boston, no Licolnshire. Tem apenas 65 mil habitantes mas é uma das cidades com maior taxa de homicídios do país e com sérios problemas sócio-económicos. Nos últimos anos, Boston ficou igualmente conhecida por ser das cidades que pior lidou com a imigração, nomeadamente a que tem origem no leste europeu — um fator relevante quando um em cada seis habitantes de Boston não nasceu no Reino Unido. Contudo, nenhum desses imigrantes votou neste referendo. O resultado? 72% dos eleitores votaram a favor do “Sair”. Nos gráficos do Guardian, Boston é apresentado como o circulo eleitoral com menos rendimentos, menos qualificações académicas, menos rendimentos e com maior preponderância da classe social C1.

Boston foi acompanhada por Castle Point ou o Great Yarmouth — dois dos cinco círculos que mais votaram no “Sair” e que também situam-se no leste inglês.

Segundo exemplo. Uma cidade média como Doncaster (em South Yorkshire, a 30 quilómetros de Sheffield). Nesta antiga zona industrial com cerca de 158 mil habitantes, onde o rendimento médio anual está claramente abaixo das 25 mil libras anuais, o “Sair” ganhou com 60%.

No caso do “Ficar”, os melhores exemplos são os círculos eleitorais de Londres — como a exclusiva área de Kensington & Chelsea, uma das que tem maior poder de compra no Reino Unido, Wandsworth, Hammersmith & Fulham, Camden, Westminster ou Islington.

Veja-se o caso de Wandsworth. É um circulo eleitoral do centro de Londres, conhecido pelo parque de Battersea, no qual o “Ficar” ganhou com 75%, ligeiramente acima dos 69,9% previstos por uma sondagem do JP Morgan. Teve a maior percentagem de voto com mais qualificação académica, o segundo com mais rendimentos (só suplantado por Westminster) e dos que teve mais voto jovem.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado à Escócia, em que as maiores cidades, como Edimburgo (74% para o “Ficar” e 26% para o “Sair”) e Glasgow (67% para o “Ficar” e 33% para o “Sair”). Em termos gerais de indicadores sócio-economicos têm valores mais baixos do que os círculos da Grande Londres mas com números mais elevados do que a maioria das cidades do norte e do centro de Inglaterra.

Outros bons exemplos do voto forte do “Ficar” são círculos eleitorais com uma alta percentagem de habilitações literárias, como, por exemplo, o círculo de Oxford, em que o “Ficar” ganhou com 73% contra 27% do “Sair”. Conhecida pela sua universidade, Oxford tem também, em termos proporcionais, uma das populações mais jovens de Inglaterra.

O voto pouco convicto de Corbyn

As zonas de maior influência do Partido Trabalhista votaram genericamente no “Sair”, ignorando o apelo ao voto (pouco convicto) no “Ficar” do líder Jeremy Corbyn — o impopular líder da oposição que, juntamente com David Cameron, está a ser a ser responsabilizado pela vitória do Brexit pelos próprios dirigentes do seu partido.

O resultado de Sunderland (61% contra 39%) foi um bom exemplo disso mesmo. Há muitos outros no centro e no norte de Inglaterra — antigas áreas industriais onde os sindicatos que sempre foram a força do Labour têm os seus feudos históricos. Middlesbrough é outro bom exemplo: 65%-35% para o “Sair”.

Esta falta de adesão dos votantes trabalhistas é tão mais surpreendente quanto 90% dos 222 representantes do partido na Câmara dos Comuns era a favor da permanência na União Europeia.

Uma das explicações que está a ser apontada por diversos órgãos de comunicação social britânicos, como a BBC, relaciona-se com o facto de esses eleitores tradicionais dos trabalhistas terem sentido uma maior atração pela retórica do UKIP de Nigel Farage, que prometeu reduzir a imigração que aceita trabalhar por salários mais baixos e transferir o dinheiro que costuma ir para Bruxelas para o Serviços Nacional de Saúde do Reino Unido. Os apoiantes de Farage vão apostar fortemente nestes círculos eleitorais para roubarem deputados aos trabalhistas — é uma promessa que o UKIP já está a fazer.