As buscas ao grupo Mota-Engil verificaram-se em 2006. A constituição de arguido de António Mota ocorreu em 2009. Mas só no mês passado (a 5 de maio) foi concluída a investigação sobre o envolvimento do maior grupo de construção nacional e do seu líder no sistema de fraude fiscal organizada de várias centenas de milhões de euros que está na origem da Operação Furacão.
O resultado não foi diferente do que foi aplicado à maioria dos cerca de 700 arguidos do Furacão: suspensão provisória do processo mediante o pagamento total dos impostos em falta, mais juros de mora. Terminado o prazo de dois anos de suspensão, e no caso de não se verificar reincidência, o processo é arquivado.
Na prática, António Mota, a sua irmã Maria Manuela e a Mota-Engil aceitaram pagar ao fisco cerca de 6,1 milhões de euros em duas prestações para não serem acusados pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) da alegada prática do crime de fraude fiscal qualificada. Existiam ainda suspeitas dos crimes de abuso de confiança e de branqueamento de capitais mas o DCIAP entendeu que os indícios não se confirmaram.
O Observador contactou a direção de comunicação da Mota-Engil, mas não obteve qualquer resposta até ao momento.
A empresa Monte Adriano, três administradores desta e as construtoras que faziam parte do consórcio rodoviário Lusoscut (hoje Portuscale) beneficiaram de idêntico acordo com o DCIAP, pagando um total de 2,7 milhões de euros para não serem formalmente acusados pelo Ministério Público.
A discordância de Carlos Alexandre
O juiz Carlos Alexandre manifestou a sua discordância face aos acordos efetuados entre o DCIAP e os arguidos, mas acabou por sufragá-los porque a isso está obrigado em virtude de uma anterior decisão da Relação de Lisboa, lê-se no despacho do Tribunal Central de Instrução Criminal a que o Observador teve acesso.
O DCIAP entende que “o juízo de censura que a atuação” dos gestores desperta “encontra-se mitigado” pelo facto de não serem os autores da fraude (mas sim duas sociedades do BCP e do Grupo Espírito Santo) — e por se terem “prontificado a repor a verdade tributária”. Por outro lado, “a regularização da situação tributária, na forma que será exigida, transmite à comunidade a mensagem de que não compensa a simulação de factos diminuidores da tributação devida”.
O juiz Carlos Alexandre, por seu lado, tem uma visão diferente.
“Tendo acompanhado jurisdicionalmente até ao presente os inquéritos da denominada Operação Furacão, onde se investigam omissões de entrega aos cofres do Estado de centenas de milhões de euros, olhando a esta promoção de suspensão provisória, não podemos manifestar concordância com o Ministério Público (MP) de se reconhecer um ‘valor e se atribuir uma eficácia à regularização da situação tributária'”, tal que afaste a perceção social de “impunidade da chamada criminalidade económica”, escreveu o juiz.
Desde o início da Operação Furacão que Carlos Alexandre entende que os arguidos que paguem os impostos em falta têm de ser acusados do crime de fraude fiscal qualificada. Isto é, o magistrado tem a visão de que o pagamento dos impostos em falta não diminui a culpa e muito menos ‘apaga’ o alegado crime.
Este confronto entre o juiz e o procurador Rosário Teixeira levou o responsável pela Operação Furacão a recorrer para a Relação de Lisboa em 2008, quando o juiz recusou homologar um dos primeiros requerimentos de suspensão provisória do processo. No ano seguinte, aquele tribunal superior deu razão ao procurador, obrigando o juiz a aprovar os requerimentos do MP de suspensão provisória que se seguiram.
O caso da Mota-Engil
A história começa no final dos anos 90, quando António Mota, presidente do grupo Mota e Companhia (o nome de então do grupo antes da fusão com a construtora Engil), e a sua irmã, Maria Manuela Mota de Santos, aceitaram uma proposta do BCP (feita através da sociedade Servitrust) de utilizarem uma sociedade inglesa sem actividade para adquirir equipamento fora de Portugal.
O objetivo passava por fazer dessa sociedade instrumental (chamada Intrade – Brokerage and Trading Services, Ltd) a primeira compradora dos equipamentos de que o grupo Mota necessitava, revendendo-os posteriormente à casa-mãe em Portugal.
O problema, segundo o DCIAP, reside no facto de as faturas emitidas pela Intrade para a Mota e Companhia terem um valor significativamente mais elevado do que o valor real dos equipamentos adquiridos, o que permitiu à sociedade Intrade “formar um fundo remanescente, o qual poderia ser utilizado para satisfazer despesas não documentadas”, afirma o Ministério Público no requerimento apresentado ao tribunal.
Isto é, a Intrade passou faturas entre 2001 e 2005 que totalizam um valor de 32.215.468, 47 de euros, sendo este valor superior em mais de 7 milhões de euros ao valor real do equipamento comprado.
Esse valor, acrescido de cerca de 2,2 milhões de dólares, foi transferido para uma conta aberta na sucursal do BCP no paraíso fiscal das Ilhas Caimão em nome da Aryllus Holdings — sociedade esta que era controlada por António Mota e pela irmã. Segundo o DCIAP, “estes valores vieram a ser utilizados para o pagamento de despesas no interesse da sociedade”, lê-se no despacho do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Logo em 2007, a Mota Engil (o novo nome da sociedade) apresentou declarações de substituição em sede de IRC, declarando que parte dos acréscimos de faturação que foram transferidos para a conta bancária da Aryllis Holdings, LLC dizia respeito a despesas confidenciais. Pagou o respetivo imposto mas terá deixado cerca de 4 milhões de euros de fora.
O DCIAP entendeu que a Mota-Engil, António Mota e a sua irmã provocaram um prejuízo ao Estado ao não pagarem cerca de 3,8 milhões de euros de IRC por ocultação de receitas.
Há ainda uma segunda situação, protagonizada pela sociedade ESGER — sociedade do Grupo Espírito Santo (GES) que desempenhava funções às idênticas às da Servitrust.
Aquela sociedade do GES propôs a António Mota e à sua irmã um esquema muito semelhante ao acima descrito. Desta vez foi utilizada uma sociedade inglesa designada como Norex, que passou em 2002 um conjunto de faturas com um valor total de cerca 440 mil euros por serviços alegadamente fictícios.
Tal valor foi pago pela Mota-Engil depositado numa conta do Barclays em Inglaterra, aberta em nome da Norex, e transferido para uma segunda conta, da Compagnie Bancaire Espírito Santo, na Suíça, em nome da Harper Trading.
A conta da Harper recebeu entre 2001 e 2002 um total de 1.749.402, 38 €, segundo o DCIAP. Este valor representa, segundo o MP, receitas ocultas da Mota e Companhia que deveriam ter sido tributadas em sede de IRC. Por isso mesmo, o DCIAP garante que os “arguidos geraram um prejuízo para o Estado de 1.623.297, 14 €“.
No total, por via dos esquemas propostos pela Servitrust e pela Esger, o prejuízo para o Estado alcançou os 6.111.406, 45 € — valor este que o grupo Mota aceitou pagar em duas prestações.
A primeira dessas prestações, no valor de cerca de 3,1 milhões de euros, deveria ter sido paga em maio, enquanto a segunda deverá ser paga até ao final do ano. O Observador questionou o grupo Mota-Engil sobre a realização do pagamento relativo à primeira tranche mas não obteve qualquer resposta.
Abuso de confiança e branqueamento de capitais arquivados
António Mota e a sua irmã foram igualmente investigados por suspeitas dos crimes de abuso de confiança e branqueamento de capitais, mas estas suspeitas foram arquivadas.
O DCIAP entende que, no caso do crime de abuso de confiança, só existiria prática criminal se os pagamentos indevidos feitos pelo grupo Mota-Engil ficassem na posse de António Mota e da sua irmã e “sem que existisse uma deliberação social [das empresas] que autorizasse tais atribuições”. É verdade que parte dos fundos da Mota-Engil acabaram por ir parar a uma conta de uma sociedade offshore controlada por Mota e pela sua irmã, mas os fundos serviram para pagar “despesas não documentadas” no interesse das sociedades, afirma o MP.
O mesmo raciocínio foi feito para os indícios de branqueamento de capitais, visto que o MP considerou que o objetivo da utilização de uma sociedade offshore e de contas bancárias localizadas em paraísos fiscais visava a “não manifestação junto da administração tributária dos proventos das sociedades do Grupo Mota Engil” “e não a dissimulação desses rendimentos” — a base de qualquer crime de branqueamento de capitais.
O caso Lusoscut
A Mota-Engil esteve igualmente envolvida de forma parcial numa segunda situação de alegada evasão fiscal detetada durante a investigação da Operação Furacão. Está em causa um investimento realizado pela concessionária rodoviária Lusoscut na aquisição, suporte de tesouraria e venda da sociedade AA Quelhas. A concessionária, que ganhou o concurso para a construção, exploração e manutenção da SCUT do Grande Porto, era liderada pela Mota-Engil mas tinha outras cinco construtoras como acionistas — por exemplo, as sociedades Monte Adriano e Hagen.
De forma a atenuar o esforço financeiro de 2,3 milhões de euros que as construtoras investiram na AA Quelhas, foi usada uma sociedade inglesa sem atividade que emitiu um conjunto de faturas com esse valor mas respeitantes a serviços fictícios.
As construtoras acabaram por ter benefícios fiscais considerados pelo MP como ilícitos, pois não só essas faturas geraram IVA dedutível como verificou-se um incremento artificial dos custos, “gerando um prejuízo para o Estado estimado, por critérios de equidade, no montante de 500 mil euros” para cada empresa, lê-se no despacho do Tribunal Central de Instrução Criminal.