Juntas de Freguesia ganharem prémios de inovação parece cenário de ficção científica. Mas há uma que o desmente: a da Estrela, em Lisboa, que nos últimos dois anos recebeu quatro distinções (nacionais e europeias) por apostar na inovação digital. O presidente Luís Newton, 38 anos, tem uma explicação simples: “no limite”, a junta é uma startup. “Se calhar, o que o destino nos reserva é o mesmo que reserva a outras startups: vem um tipo grande e compra a ideia”, diz ao Observador.

Uma Junta de Freguesia que tem perto de 20.000 habitantes a competir com empresas como a Vodafone e a Sonae parece estranho. Mas foi o que aconteceu. É tão invulgar que o autarca (que preside à Junta que em 2015 foi considerada “líder no setor público em Portugal”) não leva a mal a surpresa que isso chegou a causar — e que ainda causa.

Quando fomos nomeados para o primeiro prémio de todos [IDC CIO Award 2015], que depois acabámos por vencer, no dia da entrega tinha havido uma apresentação dos vários projetos candidatos aos prémios em disputa. Estavam a chamar pessoas da Sonae, da Vodafone, etc. De repente, “Junta de Freguesia da Estrela”. E começam todos a olhar uns para os outros: ‘O quê? Está uma Junta de Freguesia a disputar um prémio de inovação?’. Que uma Junta tenha projetos sociais já muita gente compreendia, agora estar a disputar um prémio de inovação na área da administração… O burburinho que se sentiu na sala era enorme. Na altura pensei: estamos mesmo nos primórdios da coisa”, conta Luís Newton ao Observador

Os “primórdios da coisa” não foram assim há tanto tempo: foram no ano passado, dois anos depois de a Junta ter sido criada, no âmbito da Reforma Administrativa de 2013 (em que Luís Newton participou, pelo seu partido, PSD), e que veio reorganizar o mapa das freguesias. Quando se candidatou, em 2013, Luís Newton — nascido e criado na Estrela — desenhou um projeto com dois objetivos: aproximar a Junta de Freguesia dos moradores e otimizar os serviços e a produtividade dos trabalhadores. Nos dois casos, o digital viria a ser o meio para atingir os fins.

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A essência disto é uma inversão completa daquilo que é a filosofia de gestão de uma autarquia que, atualmente, é uma mini Câmara Municipal. É abandonarmos aquela burocracia em papel, instituirmos um conjunto de procedimentos numa dimensão digital que depois permitem que toda a gente participe”, diz.

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No ecrã inferior direito, está aberto o GeoEstrela, com indicações de ocorrências reportadas pelos moradores. Nos restantes, o mapa da freguesia por ruas, reportando diferentes tipos de serviços (lavagem, varredura, remoção de ervas): a cor vermelha represente as ruas com maior necessidade de intervenção (serviços mais necessitados), a cor verde o contrário

A Junta de Freguesia da Estrela tem vindo a apostar em vários projetos digitais desde 2013: já lançou o GeoEstrela (uma app que procura dar voz aos moradores), o Estrela Limpa (que tem como objetivo otimizar os serviços de varredura, lavagem e remoção de ervas nas ruas da freguesia) e o Estrela Participa (que convida os moradores a darem sugestões de projetos ou alterações possíveis à freguesia). Os três projetos têm base digital e foram construídos com duas exigências: serem “replicáveis e escaláveis”, diz Luís Newton.

Uma das condições que coloquei logo de início com todos os projetos que temos vindo a desenvolver é que têm de ser replicáveis e escaláveis. Não vou estar a gastar dinheiro dos contribuintes para fazer uma coisa que só pode funcionar na Estrela. Têm de ser baratos, têm de poder funcionar em qualquer sítio, seja qual for a dimensão. Eu tenho neste momento índices de participação na minha plataforma superiores a plataformas de câmaras municipais, que têm dez vezes a população da minha freguesia. Por isso é que isto tem gerado muito interesse dos privados e até vamos anunciar em breve uma parceria muito grande exatamente por isso”, anuncia o autarca.

Em junho, o trabalho da Junta de Freguesia da Estrela foi “reconhecido como um dos três melhores projetos Europeus no âmbito do Setor Público”, no CIOCITY 2016, evento que decorreu em Amesterdão. “Estava sentado com tipos da Audi e de companhias aéreas e eles olhavam para mim e diziam-me: explique-me lá o que é uma Junta de Freguesia, que eu ainda não percebi muito bem. E, já agora, como é que você está aqui a disputar isto connosco”, diz Luís Newton.

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“Vais expor fragilidades e estragar a tua carreira política”

O primeiro projeto a dar um prémio à Junta de Freguesia da Estrela foi o GeoEstrela, uma plataforma que permite aos moradores reportar problemas que encontrem diariamente na freguesia (desde lixo acumulado a graffitis por apagar ou buracos na calçada, por exemplo), e que está disponível na Internet e em forma de app gratuita.

Aos moradores cabe reportar a ocorrência e tirar uma fotografia do problema. “Demora 30 segundos”, diz Luís Newton. “A partir daí é com a Junta”, desde que o problema esteja dentro das suas competências de ação — porque há casos, como o lixo volumoso, onde a competência é da Câmara Municipal, acrescenta. A taxa de eficácia nas respostas (às ocorrências a que cabe à Junta, e não à CML, responder) ronda os 85%.

As resistências à ideia não foram poucas. Quando falou com outros autarcas sobre a intenção de levar a cabo um projeto que incentivava os moradores a reclamar e a fiscalizar a ação da Junta, houve colegas que lhe chamaram “maluco”.

Disseram-me coisas do tipo: “Vais expor as fragilidades da Junta. Não dá para chegar a todo o lado. És um puto novo, vais estragar a tua vida e a tua carreira política. A malta nova com as coisas das tecnologias… mantém-te a brincar com o Facebook e com essas coisas”, conta, acrescentando ainda que os entraves que sentiu à inovação “não conheceram barreiras partidárias, existiram em quase todo o espetro político”.

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O projeto começou a ser desenhado com duas coisas em mente: a aplicação “tinha de ser uma coisa muito simples – um tipo está a ver uma coisa qualquer, está com a frustração de algo que o está a incomodar e tem de conseguir protestar, no espaço de 30 segundos”; e a “transparência”. E é por causa dela que hoje, no GeoEstrela, “um morador tira uma fotografia e qualquer pessoa a pode ver. No final da intervenção, as pessoas recebem um e-mail com outra fotografia do local, a dizer algo como: “Isto foi feito. Está de acordo?”. É importante para as pessoas se poderem pronunciar e gerou na comunidade uma reação muito interessante. As pessoas foram ganhando tolerância, hoje querem participar e já não são exclusivamente críticos. Já dizem a minha Junta“, explica Luís Newton.

Inicialmente, qualquer anónimo podia reportar ocorrências na aplicação. O que levou, por exemplo, a que a primeira reclamação no GeoEstrela tenha sido a de um “espertalhão” que reportou “um cacilheiro em excesso de velocidade em pleno rio”. Isso, diz Luís Newton, “mostra que algumas pessoas não acreditavam que isto podia funcionar, andavam a experimentar. Mas as coisas foram evoluindo e as pessoas [hoje] percebem que isto funciona e que as pessoas na Junta respondem”.

No início, as ocorrências diárias variavam entre as dez e as 15. Hoje, andam pelas 50. “O território está pior? Não, nunca esteve foi bom. Só que agora tenho conhecimento real do que se está a passar. E é para isso que eu trabalho, as pessoas elegeram-me para eu resolver os problemas, não foi para fingir que eles não existem”, atira.

Objetivo? Ser “a melhor freguesia da Europa”

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José Luís Salema, 65 anos, morador da Estrela

Quem não mostrou qualquer resistência a acolher o GeoEstrela foi José Luís Salema, de 65 anos, antigo oficial dos Comandos reformado, que mora na freguesia da Estrela “há uma série de anos”. Já antes do projeto reclamava com a Junta de Freguesia e com a Câmara Municipal de Lisboa. Rapidamente aderiu à plataforma e até se tornou colaborador da Junta de Freguesia. Hoje, é uma espécie de “morador-fiscal”.

Nos meus passeios pela freguesia estava sempre a encontrar uma série de problemas. Ia reportando primeiro pelo telefone, depois quando começou a aparecer o GeoEstrela pela Internet. Há um ano encontrei o presidente e disse-lhe que se quisesse que lhe desse uma ajuda, estava à disposição. Ele já tinha ouvido falar de mim porque eu chateava para aqui diariamente: era um buraco, era a planta que não estava bem, eram os canteiros”, lembra.

Acabaram por voltar a conversar dois meses depois, em setembro de 2015, e o presidente da Junta disse-lhe que precisavam dele “para fazer o trabalho de um cidadão interessado”. Começou a trabalhar a 1 de outubro, “com horário das 08h às 16h”. Percorre a freguesia a pé, sempre com trajetos diferentes e improvisados, à procura de problemas. “Até hoje sou capaz de ter feito 2200 quilómetros só na Junta de Freguesia e a pé”, diz.

Todos os dias vejo coisas. Os problemas mais graves estão praticamente resolvidos, penso eu. Aqui fazemos a manutenção diária de tudo — o princípio é o contrário da CML, porque se as ruas de Lisboa estão caóticas é por falta de manutenção (também vou apertando na Internet com os tipos da câmara). Mas a nossa freguesia tem melhorado bastante — e sinto-o também porque as pessoas me dizem”, afirma.

“Está tudo melhor — os jardins”, por exemplo. E os graffitis, contra os quais têm lutado acerrimamente. “Acabámos com os graffitis: é uma guerra sem quartel. Porque os graffitis de que falo não são como os do outro, o Vhils, que são coisas bonitas. São tags, assinaturas deles”.

Agora que a manutenção tem sido feita, é melhorar e atingir o patamar de melhor freguesia da Europa. Não é do País, da Europa”, atira.

Há quanto tempo é que a sua rua não é varrida?

No processo de passar a burocracia e as informações dos serviços da Junta do papel para o digital, uma das coisas que o Luís Newton percebeu é que era preciso criar uma ferramenta digital para organizar os serviços de varredura, lavagem e remoção de ervas nas ruas da freguesia. Porque facilitava a organização do trabalho e porque evitava ter um funcionário parado a “lamber papel” para organizar o serviço.

Na prática, o Estrela Limpa permite aos funcionários e encarregados (mas também ao presidente da Junta), com meia dúzia de cliques, verem que ruas estão por lavar, varrer ou remover ervas há mais tempo, quais são as que estão com piores níveis de serviço e a quais é preciso dar prioridade.

A plataforma, a nível interno, tem várias informações que são valorizadas pelo Presidente da Junta: a “indicação de previsão meteorológica” é uma, porque “afeta a lavagem — não vou mandar varrer ou lavar se vem um dilúvio, porque é um desperdício de dinheiro”, explica. Outra é poder acompanhar que tipos de serviço (varredura, lavagem ou remoção de ervas) estão a ser feitos com menor qualidade — para tomar decisões sobre compra de maquinaria ou para que área se contratam trabalhadores, por exemplo. E ainda ver quem foram os encarregados responsáveis por cada serviço em cada rua, ao longo dos meses.

Porém, o presidente da Junta da Estrela quis que também os moradores pudessem saber há quanto tempo a sua rua não é lavada ou varrida, por exemplo. E vieram mais reações incrédulas. “Imaginem o que é que os outros autarcas me disseram quando lhes disse que ia tornar público o nosso mapa de cobertura de intervenções de lavagem e varredura. Isto não podia pegar, se não era o fim do mundo. Vamos avançar com uma mudança muito grande agora, porque há uma plataforma a funcionar por baixo disto tudo, só que essa ainda não é pública. Mas isto tem que ser devagar se não os meus colegas autarcas dão-me um tiro”, ironiza.

Além destes projetos, há ainda o Estrela Participa, que está numa fase mais embrionária. Trata-se de um novo modelo de Orçamento Participativo, que permite que os cidadãos sugiram propostas não apenas durante dois a três meses.

Na Câmara “trabalhávamos como no tempo da pedra”

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Joaquim Figueira, na “sala de operações”

Um dos encarregados que trabalha diariamente com estes serviços é Joaquim Figueira. Joaquim chegou à Junta de Freguesia da Estrela “há dois anos e quatro meses, por aí”, vindo da Câmara de Lisboa, onde trabalhou durante 27 anos. Não foi para a Junta porque se propôs: nenhum encarregado da CML se propôs para se mudar, tendo sido ali colocado.

Sempre achei que [na Câmara] trabalhávamos um bocado em cima, como no tempo da pedra. As escalas de serviço eram isto [mostra uma folha de papel por preencher] e só nós é que as percebemos: quem vir isto não percebe nada. Entretanto apareceu esta novidade de irmos para as Juntas e eu até fiquei assim, um bocado… [pensei que] se na Câmara é assim, na Junta ainda vai ser muito pior. Enganei-me”, conta.

Para o encarregado, “houve um período de adaptação, porque na Câmara não tínhamos computador, era tudo feito manualmente. Houve um bocado de dificuldade mas foi ultrapassada”. Hoje, “todos os colegas compreendem o que está” nos mapas digitais, “nas escalas já não se compreende — um escreve de uma maneira, outro de outra e não pode ser rasurada, se não tem de se fazer outra… Aqui pode-se corrigir rapidamente, os colegas têm acesso rápido e temos ganhos de tempo e qualidade. Acelerou muito em termos de eficiência e até poupança de papel”, diz.