O terceiro dia da Convenção do Partido Republicano será marcado por alguns discursos de políticos de notoriedade reconhecida, como o populista veterano Newt Gingrich ou o ultraconservador Ted Cruz, que durante as primárias foi o maior adversário de Donald Trump. Mas é no fim da penúltima sessão da convenção que está a decorrer em Cleveland, no Ohio, que vai acontecer uma das intervenções mais aguardadas: Mike Pence, a escolha de Donald Trump para vice-Presidente.
Em muitos aspetos, os dois não podiam ser mais diferentes. Enquanto Donald Trump já habituou o mundo ao seu estilo exuberante e frequentemente agressivo, não se conhecem momentos de exaltação ao sereno Mike Pence, governador do Indiana desde 2013. E ao mesmo tempo que Donald Trump é visto por alguns republicanos, na melhor das hipóteses, como um conservador pouco convicto, Mike Pence tem marcado a sua forte oposição ao casamento homossexual e à interrupção voluntária da gravidez — causas que Trump, em tempos, chegou a apoiar — ao longo da sua carreira, primeiro como apresentador de rádio e depois como político. Além disso, enquanto a religiosidade não é uma das marcas mais fortes de Donald Trump, Mike Pence é um evangelista que, segundo o The New York Times, se descreve como “cristão, conservador e republicano, por esta ordem de importância”.
Por tudo isto, não é de admirar que Mike Pence tenha apoiado Ted Cruz e não Donald Trump nas primárias do Partido Republicano. No entanto, isso não conta a história por completo. O Indiana, estado de Mike Pence, acabou por ser aquele que confirmou a vitória de Donald Trump, a 3 de maio. Apenas quatro dias antes, Mike Pence deu uma entrevista a uma rádio local onde, com algumas reticências e vírgulas pelo caminho, declarou o seu apoio ao texano ultraconservador. Isto porque, antes de fazê-lo, não pôde deixar de elogiar Donald Trump. Eis o que disse:
Quero dizer claramente que gosto e respeito todos os três candidatos republicanos [naquela altura, o terceiro era John Kasich]. E quero em particular felicitar Donald Trump, que tem dado voz à frustração de milhões de trabalhadores americanos com a falta de progressos em Washington D.C.. Estou grato pela sua voz no debate nacional. Eu não sou contra ninguém. Mas vou votar em Ted Cruz.”
O que nos leva a outra diferença entre Donald Trump e Mike Pence: enquanto aquele fala de forma direta e descomplexada, muitas vezes de improviso, o segundo tenta pesar cada palavra. Outrora, isso seria tomado como prudência. Mas, na era da política à la Trump, é hesitação.
Donald Trump: “Nós somos pessoas diferentes”
Foi mesmo isso — hesitação — que se viu na única entrevista que os dois deram em conjunto desde que Mike Pence foi anunciado como braço direito de Donald Trump. Durante 20 minutos, estiveram sentados lado a lado, com a jornalista Lesley Stahl, do programa 60 minutes, da CBS. Ao longo desse tempo, a entrevistadora investiu nas diferenças entre os dois candidatos — e pode dizer-se que teve retorno.
Por exemplo, quando o assunto foi o estilo de Donald Trump, que muitas vezes insiste no recurso ao insulto para lidar com os seus adversários — crooked Hillary, algo como Hillary trapaceira, é o que usa mais frequentemente para se referir à sua adversária. A pergunta foi inicialmente lançada a Mike Pence, mas Donald Trump preferiu interromper o seu parceiro e falar por cima dele. “Nós somos pessoas diferentes”, resumiu. “Hillary Clinton é uma mentirosa. Hillary Clinton é uma trapaceira. Eu chamo-lhe Hillary trapaceira. Mas eu não lhe pedi para fazer o mesmo e acho que ele não deve fazê-lo”, disse. “Ele não é esse tipo de pessoa. Isso não soaria bem nele.”
Também a guerra do Iraque, que teve o voto favorável de Pence em 2003, quando este era deputado pelo Indiana, foi assunto. “Nós fomos para o Iraque, que foi muito mal gerido. Nós nunca devíamos ter ido para lá”, disse Donald Trump, referindo-se ao facto de também Hillary Clinton ter votado a favor da invasão do Iraque. Logo de seguida foi confrontado por Lesley Stahl com o voto do homem que ele escolheu para vice-Presidente. “Não quero saber, isso foi há muito tempo”, desculpou-se. “Ele pode cometer um erro de vez em quando”, disse, entre sorrisos. Para Hillary Clinton, o tom foi outro: “Ela não”.
Outro dos temas de discórdia referidos na entrevista entre os dois foi o acordo de comércio trasantlântico, o TTIP, o qual Donald Trump, protecionista, rejeita. A verdade é que em 2014, no Twitter, Mike Pence puxou precisamente para o lado oposto, escrevendo que o “o comércio significa empregos e também significa segurança” e que “chegou a altura para todos pedirmos uma adoção célere do TTIP”.
Trade means jobs, but trade also means security. The time has come for all of us to urge the swift adoption of the Trans Pacific Partnership
— Governor Mike Pence (@GovPenceIN) September 8, 2014
Ainda mais recentemente, em dezembro de 2015, sobre a proposta de Donald Trump de impor um fecho temporário das fronteiras dos EUA a todos os muçulmanos, Mike Pence caracterizou essa medida como “ofensiva e inconstitucional”.
Calls to ban Muslims from entering the U.S. are offensive and unconstitutional.
— Governor Mike Pence (@GovPenceIN) December 8, 2015
Na entrevista ao 60 minutes, Donald Trump admitiu que a sua opção por Mike Pence teve em vista “a união do partido”. “Eu sou um outsider“, disse, definindo-se mais à frente como um candidato muito “anti-establishment“. E Mike Pence? “Ele é muito do establishment de várias maneiras, mas isso não é algo mau”, respondeu, pressionado pela jornalista.
Enquanto isso, Mike Pence esperava pela sua altura para falar — que raramente chegou e, quando finalmente chegava, o seu parceiro tratava logo de o interromper.
“Eu acho que temos uma ótima química entre nós”, disse Donald Trump para resumir a relação com o seu vice-Presidente. “Senti isso logo desde o início”, disse, sem aprofundar.
“Pence não consegue salvar Donald Trump de si próprio”
Ficou claro que Donald Trump e Mike Pence são, como o primeiro disse, “pessoas diferentes”. Mas é precisamente isso que se costuma procurar num vice-Presidente. Veja-se, por exemplo, o que se passou nas eleições presidenciais de 2008. Quando era acusado de ter pouca experiência internacional e de ser relativamente jovem, Barack Obama chamou o veterano John Biden para o seu lado. Quando o acusavam de falta de carisma e de pouco appeal junto do eleitorado feminino, John McCain foi buscar Sarah Palin ao Alaska.
Terá sido isso que a equipa de Donald Trump pensou quando escolheu Mike Pence para seu número dois. Na sua tentativa de unir o Partido Republicano depois de umas eleições primárias fraturantes, Donald Trump escolheu um conservador que ficou conhecido por promover aquela que ficou conhecida como a “Lei da Liberdade Religiosa”. Entre outras coisas, esta legislação permitia que empresas recusassem serviços tendo como base uma justificação religiosa. Assim, uma empresa de catering podia recusar-se a servir num casamento entre duas pessoas do mesmo sexo.
Ao fazer esta escolha, Donald Trump e a sua equipa deixaram claro que o eleitorado que procuram é essencialmente aquele que à partida já está conquistado — os estados tipicamente republicanos, sendo o Texas o maior exemplo — e também aquele que tem demonstrado descontentamento de forma mais ativa nos últimos anos: o eleitorado branco, das classes média ou baixa, sem educação superior, religioso e conservador.
Para trás ficou a possibilidade de apelar às minorias étnicas, entre elas os hispânicos, que têm sido tão descurados na retórica de Donald Trump. apesar de serem cada vez mais indispensáveis numa eleição para Presidente dos EUA — o próprio relatório post-mortem do Partido Republicano após a derrota eleitoral de 2012 sublinhava essa necessidade. Assim, resta saber se, com Mike Pence ao seu lado, Donald Trump conseguirá conquistar os votos do eleitorado conservador, que ainda hoje olha para ele com desconfiança, e assim compensar a falta de popularidade noutros segmentos da sociedade norte-americana.
Mas, acima de tudo, resta saber se o recatado e conservador Mike Pence conseguirá ter alguma influência sobre Donald Trump. Sobre isso, um editorial da National Review, a revista que serve de oráculo aos conservadores norte-americanos, demonstrou pouca margem para otimismo. “Pence não conseguirá, sozinho, organizar a campanha a nível nacional que Trump ainda não preparou”, lê-se nquele texto. “Ele não consegue convencer os americanos de que Trump é qualificado para ser líder do país. Ele não consegue impedir que Trump se distraia com vinganças pessoais (…). Resumidamente, ele não consegue salvar Donald Trump de si próprio.”