O segundo dia da Convenção do Partido Republicano ficou marcado pela confirmação oficial de Donald Trump como candidato do GOP às eleições de 8 de novembro, dando assim fim a uma improvável campanha em que um outsider da política tomou controlo de uma das instituições mais antigas da política norte-americana e moldou-a a seu gosto. Enquanto isso, ficou à vista de todos que nada consegue unir as elites do partido e aqueles que agora ganham protagonismo como o maior inimigo que têm em comum: Hillary Clinton.
Menos de uma hora depois de confirmar oficialmente Donald Trump como o candidato do Partido Republicano, Paul Ryan tomou o palco e fez um dos discursos mais aguardados do segundo dia da Convenção do Partido Republicano. Afinal de contas, enquanto speaker da Câmara dos Representantes, Ryan é atualmente o republicano que ocupa a posição mais cimeira no sistema político norte-americano. E, claro, porque até há pouco tempo, era uma das vozes mais assertivas a dirigir críticas contra Donald Trump, o homem que entrou no Partido Republicano de rompante, alterou tudo à sua volta e saiu por cima, no final de contas — embora 721 delegados tenham votado noutros candidatos, o que, de acordo com o The New York Times, fez desta a maior expressão de dispersão dentro do partido desde 1976, quando houve uma convenção aberta.
“Nós, republicanos, fizemos a nossa escolha”, disse, resignado. “Tivemos algumas discussões? Claro que tivemos. Mas sabem o que eu chamo a isso? Sinais de vida. Sinais de um partido que não anda ao sabor do vento.” Ou seja, na ideia de Paul Ryan, um partido diferente do Partido Democrático.
“Estamos em tempos em que homens e mulheres nos dois partidos querem claramente uma mudança”, reconheceu. “E o que é que o Partido Democrata oferece? Um terceiro mandato de Obama, liderado por outro Clinton!”, ironizou. “E ainda dizem que temos de estar desejosos que isso aconteça.”
Tornou-se claro que Paul Ryan estava ali, na Quicken Loans Arena, em Cleveland, Ohio, para falar mal do Partido Democrata — e mais óbvia ainda foi a sua fuga para a frente. Afinal, enquanto falava mal de Hillary Clinton, não tinha de dizer bem de Donald Trump — que referiu apenas uma vez no seu discurso — aproveitando também para referir o vice do magnata nova-iorquino. “Só com Donald Trump e Mike Pence é que temos uma oportunidade de ter tempos melhores”, disse, algo insipidamente, sobre o candidato presidencial que demorou a apoiar publicamente. “Honestamente, ainda não estou pronto”, chegou a dizer em maio, posição que alterou depois de uma mini-novela marcada por encontros em privado com o Trump.
As primárias republicanas não foram um passeio à beira-mar. O estilo agressivo, o ritmo incessante em que eram trocadas acusações e uma linguagem por vezes estranha ao debate político nestes patamares apanhou vários desprevenidos. Ainda sobram resquícios desses dias — e a prova disso foi como Mitch McConnell, o líder dos republicanos no Senado e outrora abertamente crítico de Trump, foi recebido em palco. Pouco antes de falar, McConnell não foi presenteado com palmas, mas antes com uma série de assobios e de apupos. Como se estivesse a jogar fora de casa.
Mas cedo o desconforto foi camuflado com nova fuga para a frente: criticar Hillary Clinton. “Ela mentiu sobre os emails, mentiu sobre o servidor, mentiu sobre Benghazi, chegou a mentir sobre estar debaixo de tiros de snipers e até mentiu sobre porque é que os pais lhe chamaram de Hillary”, enumerou. “Faço-vos uma pergunta simples. Num momento em que tantos se sentem traídos pelo seu próprio Governo, por que razão é que os democratas haveriam de propor um nome como o de Hillary Clinton para Presidente?” McConnell chegou a arrancar gargalhadas à plateia quando comparou Hillary Clinton a Muhammad Saeed al-Sahhaf, o antigo ministro da Informação de Saddam Hussein, conhecido nos EUA como Baghdad Bob, e que ficou ilustre por dar a guerra de 2003 por vencida quando na verdade as coisas não eram bem assim. “Desde o Baghdad Bob que não havia ninguém com uma relação tão complicada com a verdade”, gracejou.
Sobre Trump, McConnell também foi parco em palavras. Já na reta final do seu discurso referiu algumas medidas apoiadas pelo seu partido (construção do oleoduto de Keystone, corte de financiamento do Planned Parenthood e suspensão do Obamacare) e argumentou que, ao contrário de Hillary Clinton, Trump estaria do lado dos republicanos na altura de aprovar essas leis. “Ele assinaria a favor”, garantiu naquele que foi um breve intervalo nas críticas à ex-Secretária de Estado.
Hillary Clinton: Culpada de tudo, até de afinidades com Lucifer
Mas foi noutro discurso que o tom anti-Hillary subiu mais alto em toda a noite. Chris Christie, o governador de New Jersey que abandonou as primárias republicanas em fevereiro e que pouco depois decidiu apoiar Donald Trump, tornou a Quicken Loans Arena num autêntico tribunal popular. Ao longo da sua intervenção, propôs ao público que se pronunciasse sobre decisões e ações passadas de Hillary Clinton.
Ruína e destabilização da Líbia, atualmente um “ninho” para grupos terroristas como o Estado Islâmico? “Culpada!”, gritou a multidão. Rapto de mulheres e crianças pelo Boko Haram, na Nigéria? “Culpada.” Submissão à China e agravamento do mercado de trabalho para a classe média norte-americana? “Culpada.” Permitir que Bashar al-Assad continuasse a guerra na Síria, que já custou 400 mil vidas? “Culpada.” E por aí fora. Em menos de nada, o público entoava um cântico que já tinha marcado o primeiro dia da convenção: “Fechem-na à chave! Fechem-na à chave!”. Alguns empunhavam cartazes que simplesmente diziam “Hillary para a prisão”.
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Outro candidato vencido por Trump, o neurocirurgião Ben Carson, chegou mesmo a aproximar Hillary Clinton de Lucifer. Isto porque na sua tese de licenciatura Clinton entrevistou e citou Saul Alinsky, autor do livro “Rules for Radicals”. Naquela obra, Alinsky escreveu de forma provocatória que “Lucifer foi o primeiro radical reconhecido pelo homem por se rebelar contra o establishment“. “Nós vivemos numa nação onde cada moeda que está nos nossos bolsos e cada nota que está na nossa carteira diz ‘Confiamos em Deus'”, afirmou. “Portanto, estaremos dispostos a eleger alguém que enquanto Presidente tem como referência alguém que valoriza Lucifer? Pensem nisso.”
(Segundo o Politifact, nas suas memórias publicadas em 2003, Clinton disse que “concordara com algumas ideias de Alinsky” mas que também discordava de forma “fundamental” sobre como “mudar o sistema”, que Alinsky acreditava ser possível apenas a partir de fora)
“Para o meu pai, o impossível é apenas o princípio”
Porém, se até então havia falta quem falasse sobre Donald Trump, o filho mais velho do magnata nova-iorquino tratou de preencher esse vazio. Naquele que foi um dos discursos mais longos da noite e possivelmente aquele que mais impacto teve junto do público, Donald Trump Jr. desfez-se em elogios às capacidades do seu pai e à sua força de vontade. “Já vi, vezes sem conta, aquele olhar dele quando alguém lhe diz que algo não pode ser feito”, contou. “Eu vi esse olhar há cerca de um ano, quando lhe disseram que era impossível ele ter sucesso na política. Hmm… Mas teve-o”, disse, com visível satisfação. “Para o meu pai, o impossível é apenas o princípio.”
Trump Jr. procurou reforçar a ideia de o seu pai ser próximo do “comum americano”, referindo-se à maneira como trabalhava na sua empresa. “Não se escondia atrás de uma secretária, num escritório. Passou a sua carreira ao lado de americanos comuns, dava-se como homens das obras e ouvia o que eles tinham a dizer. Muitas vezes mais do que os tipos de Harvard ou Warton, que se escondiam em escritórios longe do trabalho a sério”, contou. Proximidade essa que também promoveu junto dos seus filhos, enquanto os criava dentro da própria empresa. “É por isso que somos os únicos filhos de um multimilionário que estão tão confortáveis numa escavadora como nos seus próprios carros”, garantiu, abrindo alas a um interessante e inédito exercício de fact-checking.
Sobre o Partido Democrata (ao qual não disse o nome, referindo apenas “o outro partido”), Trump Jr. disse que “é um partido de riscos”. Quanto a Hillary Clinton, tornou a colá-la a uma imagem de desonestidade sem precedentes. “Ela seria a primeira Presidente a não conseguir passar num simples background check“, disse.
Por fim, falou a favor de uma reforma do sistema de saúde; defendeu que os americanos devem ser postos “em primeiro lugar” e falou pela adoção de leis “que farão o nosso país grandioso de novo”. E de um Presidente “que não permitirá que uma cultura do politicamente correto ponha em perigo a segurança das nossas crianças e daqueles que mais amamos” e que “não se verga a interesses e que financiou a sua própria campanha só para prová-lo”.
E terminou: “Esse presidente só pode ser o meu mentor, o meu melhor amigo, o meu pai. E quando o elegermos, vamos ter isso. Vamos tornar a América grande de novo. Maior do que alguma vez foi!”. E, assim, Donald Trump Jr. abandonou o palco com aquele que foi o discurso que mais empolgou o segundo dia da Convenção do Partido Republicano.
Ivanka Trump: "I'm so proud of my father." Trump officially wins the Republican nomination https://t.co/v9JJRYEVCB https://t.co/HWCKrZ7l2M
— The Situation Room (@CNNSitRoom) July 19, 2016
Este não foi, porém, o único momento de Donald Trump Jr. da noite. Horas antes, foi ele quem confirmou a nomeação do pai como candidato do Partido Republicano às presidenciais de novembro, à medida que cada estado anunciava o número de delegados que depositava, consoante os resultados das eleições primárias, em cada candidato. Na condição de delegado pelo estado de Nova Iorque, foi o filho mais velho do magnata nova-iorquino que anunciou os delegados que faltavam para este ultrapassar o limiar de 1 237 necessários para ter a nomeação. “Parabéns, pai, nós amamos-te” gritou na altura de falar. Resta saber se o resto do partido algum dia pensará — e dirá— o mesmo.