Daqui a alguns/muitos anos, quando os restaurantes especializados em cozinha peruana em Portugal se tiverem multiplicado ao nível dos congéneres italianos, japoneses ou indianos, é possível que alguém pare para digerir ou pensar, e se pergunte: mas, caramba, porquê o Peru? Afinal, por que diabo andamos a comer ceviches, causas e tiraditos a 9000 km de distância da origem?

Nessa altura seremos nós, os que andamos a escrever sobre estes assuntos nos tempos que correm, a puxar dos galões e pela cabeça para elucidar quem já tiver crescido a saber escolher entre pratos nikkei e chifa sobre o era uma vez da cozinha peruana em Portugal. Vamos recordar os primeiros jantares do género no (saudoso) Isaura, na Avenida de Paris, vamos identificar o Qosqo como o pioneiro dos restaurantes peruanos em Lisboa e, quiçá, responsabilizar Kiko Martins e A Cevicheria pelo catapultar do ceviche para a ribalta gastronómica nacional. E algures no meio dessas memórias deverá surgir o Segundo Muelle, que — voltemos ao presente — acaba de abrir em Lisboa, pela mão do Grupo Portugália.

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No Segundo Muelle é possível provar uma combinação de três ceviches diferentes, cada qual com a sua marinada e tipo de peixe. (foto: © Divulgação)

E a verdade é que a forma como este restaurante veio parar ao piso térreo da antiga estação central dos CTT, na Praça Dom Luís I, diz muito sobre o papel das instituições oficiais peruanas na ascensão da respetiva gastronomia por esse mundo fora. “Fomos contactados pelo embaixador do Peru para visitar uma feira de franchising na área da restauração e viemos de lá completamente apaixonados pela comida peruana”, explica Maria Martins, responsável de comunicação do Grupo Portugália.

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Calhou bem, já que no Grupo Portugália — responsável pela histórica marca homónima mas também pelas cervejarias Trindade e Ribadouro e pelos restaurantes Brasserie de L’Entrecôte — o bichinho da expansão andava a fazer-se sentir há já algum tempo, como conta Maria Martins.

Temos de estar atentos ao que se passa à nossa volta. A expansão é uma forma de ganhar espaço e criar sinergias: quanto mais diversificado for o negócio mais temos a ganhar como empresa. Esta foi a primeira marca, talvez a mais difícil, outras poderão seguir-se.”

O que também não calhou mal foi o facto de o mesmo grupo possuir um espaço amplo e bem localizado — entre o Mercado da Ribeira e a nova sede da EDP –, onde não fazia sentido instalar nenhuma das outras marcas que representa. “Estava a pedir um conceito novo”, justifica Maria. E assim foi. Segundo os responsáveis todo o processo terá demorado “cerca de seis meses” e nos primeiros dias de agosto o Segundo Muelle abriu as portas ao público.

Uma futura praça de restauração

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A reconversão da antiga estação central dos CTT em Lisboa num empreendimento com 103 apartamentos de luxo, de diversas tipologias, contempla a instalação de diversos restaurantes no piso térreo do edifício, com esplanadas viradas para o respetivo pátio interior. Ou seja, nascerá naquele local uma pequena praça de restauração, com outros espaços a seguir o exemplo do Segundo Muelle, e a assentar arraiais por ali. Já no topo do edifício, atrás da famosa torre do relógio, está previsto nascer bar com vista panorâmica.

Porquê o Segundo Muelle?

Da visita à tal feira de franchising no Peru nasceu aquilo que Maria Martins chama “uma empatia especial” com Daniel Manrique, o criador do Segundo Muelle. Manrique, que passou boa parte da adolescência a pescar e surfar na praia de San Bartolo, a sul de Lima, onde o seu avô construíra uma casa, começou o negócio no início dos anos 90 numa pequena garagem no bairro de San Isidro, na capital do Peru. Chamou-lhe Segundo Muelle em honra do segundo molhe de San Bartolo, o local exato onde se concentravam as melhores ondas e o peixe mais fresco da região.

Inspirado pelas receitas da família, os seus dotes de cozinheiro auto-didata — função que acumulava com as de anfitrião, empregado e até fornecedor — impressionaram de tal forma a clientela que a fama do restaurante depressa cresceu para lá das suas humildes quatro mesas. A expansão foi, naturalmente, o passo seguinte. Dessas quatro mesas passou a dez, no segundo espaço. Ao fim de oito meses tinha 25 mesas a seu cargo e, meses volvidos, para 45. O resto é história. E de sucesso: mais de duas décadas volvidas o Segundo Muelle apresenta números assinaláveis, 18 restaurantes espalhados por seis países: Peru, Equador, Costa Rica, Panamá, Espanha e agora Portugal.

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De uma garagem em San Isidro, o Segundo Muelle chegou a 18 restaurantes espalhados por seis países. (foto: © Divulgação)

O que se come?

Para se chegar à ementa final da sucursal lisboeta, houve várias sessões de provas das receitas originais de Daniel Manrique, que são, no total, quase uma centena. Nelas tomou parte um ilustre peruano a viver em Lisboa — nada mais nada menos que o futebolista do Sport Lisboa e Benfica André Carrillo. Foram selecionados cerca de 30 pratos que, na ementa, não se apresentam com a habitual divisão entradas/pratos principais, mas antes organizados pelas diferentes raízes da cozinha peruana.

Glossário de cozinha peruana

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Ají – Pimentos que podem ser, ou não, picantes. Há-os de diferentes cores e intensidades.
Causa – Prato frio feito à base de puré de batata que, no caso do Segundo Muelle, é recheado com carne de sapateira.
Ceviche – É o prato emblemático do Peru, feito à base de peixe, geralmente branco, cortado aos cubos e marinado numa mistura cítrica a que se chama leche de tigre. O milho e a batata-doce são acompanhamentos típicos.
Chicharrón – Uma expressão frequente na cozinha peruana, serve para designar pedaços de carne ou peixe panados, que podem ser servidos a solo, em sanduíche ou como complemento de outro prato (no Segundo Muelle, por exemplo, surgem na causa)
Chifa – A vertente da cozinha peruana de influência chinesa.
Nikkei – A vertente da cozinha peruana de influência japonesa.
Papa – Não designa Sua Santidade, antes a batata. Mas diga-se que a batata, no Peru, é tão importante como o Papa, já que o país produz cerca de 3000 variedades diferentes do tubérculo.
Pisco – A aguardente nacional, usada para fazer um cocktail com muitos adeptos por todo o mundo, o pisco sour.
Suspiro Limeño – Uma dulcíssima sobremesa local que mistura doce de leite, merengue e canela.
Tacu Tacu – Um prato que vem do tempo dos escravos e que é uma espécie de panqueca de arroz e feijão com diversos recheios possíveis. No Segundo Muelle é recheado com banana e marisco.
Tiradito – É uma espécie de sashimi peruano, peixe laminado servido com um molho à base de ají, seja ele picante ou não.

Assim, começa-se pelos clássicos, seguem-se os pratos de mar, depois as receitas mediterrânicas (trazidas por espanhóis e italianos), as orientais e, finalmente, as crioulas, que representam a vertente mais familiar e nativa do receituário nacional. Tudo somado, escrever que a oferta é diversificada não é apenas prosa de circunstância — dos ceviches à causa, dos tiraditos aos tártaros, dos makis ao risotto, que pode ser de arroz ou quinoa, sem esquecer as sobremesas, onde pontifica uma bomba de doçura e calorias, o suspiro a la limeña, há frescura e calor, peso e leveza, peixe ou carne e salgado ou doce. É só escolher.

A vertente bar também não foi descurada e vai bem além do habitual e renomado pisco sour — destaque, neste campo, para os chilcanos, feitos à base de pisco, ginger ale e sumos que podem ser de lima, melancia, maracujá, laranja ou frutas do bosque. E é precisamente junto ao bar que se encontra um painel espelhado com as aves migratórias do Peru, que é, a par com os azulejos azuis-esverdeados, os únicos símbolos comuns a todos os Segundo Muelle. O resto da decoração não deixa, contudo, de remontar para a história da marca, com as cordas navais a formarem uma espécie de concha no teto do restaurante.

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Na ementa também não faltam makis. Estes representam a vertente nikkei, ou japonesa, da cozinha do Peru. (foto: © Divulgação)

“O próprio Daniel Manrique gostou tanto da obra que já nos queria roubar o arquiteto”, revela, sorridente, Maria Martins. O que também o impressionou, segundo a mesma responsável, foi a qualidade do peixe nacional. Não será ele a tirar partido da matéria-prima — e com 18 restaurantes em dois continentes é natural que não seja — mas delegou num dos seus discípulos peruanos a função de, nestes primeiros tempos, orientar a cozinha lisboeta, para garantir que tudo sai de acordo com os seus princípios. Prove-se e comprove-se.

Nome: Segundo Muelle
Morada: Praça Dom Luís I, 30, Loja 4B (Cais do Sodré), Lisboa
Telefone: 93 116 9158
Horário: De domingo a quinta das 12h às 00h. sextas, sábados e vésperas de feriados das 12h à 01h
Preço Médio: 25€ por pessoa
Reservas: Aceitam
Site: www.segundomuelle.com