Quando Brian Epstein olhou para os “jeans” e os blusões negros dos The Beatles, o grupo que acabara de contratar, achou que aquilo não era maneira do quarteto se apresentar em palco. Nascido numa família desafogada de Liverpool (o pai tinha várias lojas de discos), e amigo de se vestir bem, Epstein pegou nos quatro rapazes, levou-os a um alfaiate de renome e mandou fazer-lhes fatos iguais. Era assim que os Beatles passariam a apresentar-se em palco: não só com cabeleiras iguais, como também vestidos e calçados da mesma maneira. E durante vários anos, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr passaram a ir para os concertos levando cada um uma malinha com uma camisa, um fato, uma gravata e umas botas exatamente iguais.
[Veja os Beatles ao vivo no The Cavern, em Liverpool, em 1962]
Esta é uma das muitas histórias contada por Ron Howard no seu novo documentário sobre a banda, “The Beatles: Eight Days a Week”, que ao reviver os anos loucos em que os Beatles andaram em digressão por todo o mundo, entre 1962 e 1966, quando deram o seu último concerto pago, no estádio Candlestick Park, em São Francisco, mostra também como a essa homogeneidade de imagem dos Fab Four correspondia uma sólida unidade interna. Que levava, por exemplo, a que toda e qualquer decisão fosse a votos entre os quatro, e tomada por consenso. Como diz Paul McCartney no filme, “Os Beatles eram um monstro com quatro cabeças”. Na base deste espírito “Um por todos, todos por um”, está o facto deles serem da mesma geração, da mesma cidade, da mesma classe social e terem as mesmas referências musicais.
[Veja o “trailer” de “The Beatles: Eight Days a Week]
Curiosamente, Ron Howard não é um fã de babar na gravata dos Beatles, embora sempre tenha gostado deles. Quando foi contactado para rodar este documentário pela produtora One Voice One World, que tinha juntado, ao longo dos anos, muitas fotografias inéditas do grupo e filmes em Super 8 dos concertos feitos por fãs, o realizador de “Apollo 13” e “Rush-Duelo de Rivais” ficou interessado por esse lado do funcionamento interno dos Beatles, da sua enorme coesão humana e profissional; e como ela tinha sido fundamental para os ajudar a resistir e a sobreviver aos constrangimentos da fama, e a aguentar o exaustivo calendário de concertos – sem falar nas outras solicitações – entre 1962 e 1966, quando os Beatles, fartos e fatigados, decidiram abandonar a estrada para se concentrarem naquilo que mais gostavam, a gravação dos seus discos. Só voltariam a juntar-se para tocar ao vivo no topo do prédio da Apple, em Londres, a 30 de janeiro de 1969. No ano seguinte, dissolveram-se.
[Veja o “trailer” alternativo]
Howard teve tudo o que quis para fazer “The Beatles: Eight Days a Week”: fotografias, arquivos sonoros, documentos e imagens conhecidas, pouco vistas ou inéditas, toda a colaboração de Paul McCartney, Ringo Starr (que são entrevistados) e das viúvas de George Harrison e John Lennon, Yoko Ono e Olivia Harrison, depoimentos de pessoas que trabalharam com os Beatles ou lhes foram muito próximas (caso do jornalista de rádio americano Larry Kane, que os acompanhou em exclusivo – e a princípio, com relutância — na triunfal digressão pelos EUA e Canadá, no Verão de 1964) e de admiradores célebres e de longa data, desde Elvis Costello a Whoopi Goldberg, passando pelo compositor Howard Goodall ou Sigourney Weaver (que aparece, ainda adolescente e anónima, entre o público de um concerto nos EUA), todos derretendo-se em sincera e emocionada devoção.
[Veja a entrevista com o realizador Ron Howard]
Tal como é muito difícil fazer um mau documentário sobre os Beatles, dada a abundância de material de arquivo e as pessoas andas vivas com quem se pode ir falar, é também difícil fazer um documentário original de pasmar sobre eles. Em “The Beatles: Eight Days a Week”, Ron Howard faz um bom trabalho de aproveitamento do vasto acervo que lhe foi cedido – destaque para os filmes amadores que mostram como era estar entre o público num concerto dos Beatles –, que interessará ao zelota coca-bichinhos do grupo como ao admirador mais moderado. E há ainda o extra, no final, do lendário concerto de 30 minutos dos Beatles no Shea Stadium em Nova Iorque, a 15 de Agosto de 1965. Com imagem e som tratados digitalmente, o que nos permite, finalmente, ouvir a música e não apenas a berraria do público (entre os operadores de imagem estava o então desconhecido Gordon Wills).
[Veja os Beatles no Shea Stadium em Agosto de 1965]
O documentário deixa bem claro como e porquê os Beatles fizeram a transição dos palcos para o estúdio. Fartos de tocar em condições precárias, desconfortáveis e com pouca segurança, e de não se ouvirem em palco devido à histeria dos fãs, agastados com a crescente agressividade de alguma comunicação social, atentos aos sinais de um mundo em mudança e cada vez mais violento, cansados do excesso de solicitações profissionais e comerciais e decididos a concentrar toda a sua criatividade e vontade de experimentar nos discos, ou mudavam de vida e de objetivos, ou acabavam. E Ron Howard mostra também, além do seu incomensurável talento musical e da sua invulgar coesão “orgânica” em palco, no estúdio e no dia-a-dia, o carisma, a despretensão, a simpatia e a alegria genuínas, para dar e vender, dos Beatles. E como tudo isso junto os tornou no gigantesco e feliz pára-raios da geração do pós-guerra nascida para a era da cultura de massas.