Entrevista inicialmente publicada em novembro de 2016. 

“Não sei se era isto que querias saber…”

A resposta foi dada vezes sem conta. Aos 84 anos, V.S. Naipaul não ganhou um novo amor pelas entrevistas, muito pelo contrário. Continua a detestá-las tanto quanto detestava há 59 anos, quando lançou o primeiro livro, The Mystic Masseur. E o jornalista José Mário Silva, a quem coube conduzir a entrevista desta quinta-feira no FOLIO, sabia disso. Sentado na ponta de uma mesa estreita, parecia inseguro e a voz saia-lhe trémula. Não é que tivesse “feito um voto de silêncio” como o pai de Willie Somerset, personagem do romance de Naipaul Uma Vida Pela Metade, que fez questão de lembrar. Não, José Mário Silva estava apenas “sem palavras” por estar perante uma “figura como Vidiadhar Surajprasad Naipaul”.

V.S. Naipaul nasceu em 1932 em Trinidad e Tobago. Ansioso por se libertar da prisão que considerava ser a sua própria família, saiu de Trinidad assim que pôde, instalando-se em Inglaterra. Estudou em Oxford e trabalhou como jornalista para a BBC. Foi nos estúdios do canal de televisão que começou a escrever o primeiro livro, The Mystic Masseur, lançado em 1957, quando tinha 25 anos. Foi armado cavaleiro pela Rainha Isabel II em 1999 e recebeu o Prémio Nobel da Literatura dois anos depois, em 2001. Escreveu 30 livros de ficção, não-ficção e ensaios, muitas vezes sobre personagens isoladas, residentes num país que lhes é estranho.

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A entrevista foi conduzida pelo jornalista José Mário Silva

Com 84 anos, V.S. Naipaul é uma espécie de lobo-do-mar solitário, com muitas histórias e pensamentos que prefere guardar só para si. Com uma vontade cada vez maior de escrever, nos tempos livres costuma ler os grandes clássicos. Na mesa-de-cabeceira tem agora Virgílio e Horácio, “que gosta de ler em latim para manter a mente ativa”, como fez questão de contar à audiência Nadira Naipaul, mulher do escritor, depois de se ter sentado à beira do palco para a ajudar o marido a responder às questões colocadas pelo público.

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Passaram muitos anos desde que começou a escrever — “escrevo há tanto tempo que não consigo responder a isso”, chegou a dizer — e a idade já pesa. E isso notou-se. Chegou a Óbidos numa cadeira de rodas e por vezes era difícil perceber o que dizia. Mas a ironia mordaz distinguia-se à distância. Implacável, sempre que não gostava da pergunta que ouvia dizia: “Tenta outra vez”, como que desafiando José Mário Silva a fazer mais e melhor. A ir mais longe, como ele. Quando respondia o que queria e não o que o jornalista lhe pedia, questionava: “Isto ajudou a responder à tua pergunta?”.

A conversa entre os dois, que decorreu na Tenda de Autores, arrancou com o mote deste ano do festival — utopia –, um conceito que o escritor de Trinidad começou desde logo por descartar. “Para mim não significa nada, nunca significou nada”, afirmou. “As pessoas falam muito sobre isso, mas eu nem sequer penso no assunto.” Contudo, Naipaul não hesita em dizer que o mundo não precisa de utopias: “Não precisamos de ideias para desfazer o mundo, mas que reforcem o afeto que temos pelo mundo.”

Questionado sobre a sua própria visão do mundo, Naipaul admitiu que tenta evitar esse tipo de “questões difíceis”. “Mas penso que a escrita torna o mundo simples, e espero ter conseguido fazer isso através da minha escrita.” “Escreve para entender o mundo?”, perguntou-lhe então o jornalista José Mário Silva. “Para perceber o que acontece do lado de fora. Tento fazer isso.”

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Grande parte das obras de Naipaul não estão traduzidas em português. A Quetzal editou há pouco tempo “Num Estado Livre”, o livro que lhe valeu o Booker Prize em 1971

Saber ver as coisas com olhos de gente

Para V.S. Naipaul, um dos grandes “mistérios da escrita” é o processo de escolher um tema para ser retratado nas páginas de um livro. E também o mais difícil porque não se pode ser um escritor “e não ter nada do que falar”. “Escolher o tema é metade do trabalho”, explicou. “Isso é algo que não posso fazer por ti. Não posso dizer-te o que fazeres. Tens de continuar e começar a sentir, miraculosamente, que estás em paz com o teu trabalho. Isto ajudou a responder à tua pergunta?”

Ao longo de 59 anos de carreira literária, Naipaul nunca deixou um livro a meio, uma linha por escrever. Sempre que começou um novo livro, acabou-o. Porque, se assim não fosse, “não seria um escritor”. “Quero sempre acabar um livro. É como defino a minha carreira: acabo livros.” Os primeiros que terminou foram baseados na sua infância em Trinidad e Tobago e nas suas experiências familiares, mas nega que tenha recorrido “demasiado” a esse material.

“Tinha uma ideia do mundo em que vivia. O material estava por todo o lado, à minha volta. Bastava olhar à minha volta e estava ali. Não precisava de procurar dentro de mim, dentro da minha infância, da minha família.” Porque é preciso saber olhar para se ser escritor — com olhos de ver. Sentada no palco, Nadira Naipaul fez questão de frisar esse lado do escritor. “Quando ele estava a escrever The Masque of Africa, visitamos o Gabão, que é um país muito perigoso”, contou. “Arranjaram-lhe um helicóptero e do céu conseguia ver-se que a selva era tão densa que eu pedi-lhe para não irmos. E ele disse-me: ‘É por isso que eu sou escritor e tu não. Eu preciso de ver as coisas ou então não escrevo sobre elas’.”

Pode parecer fácil, mas Naipaul considera o processo de escrever, criar uma história, como muito “complexo” e até mesmo difícil de explicar. “Estou a descrever um processo complexo e não quero simplificá-lo. Não consigo dizer-te o quão difícil foi — foi tão difícil — no início escrever uma página. E se falar sobre isso desta forma casual, estou a ser injusto — injusto em relação ao meu trabalho, em relação a encontrar a minha própria voz. Não sei o que te dizer mais sobre isto. O que fiz, fiz a partir do instinto. Queria escrever um livro, e isso é um desejo importante.”

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Nadira Naipaul casou com o escritor em 1996, depois da morte da primeira mulher, Patricia

Questionado sobre o porquê de escrever sempre sobre personagens isoladas — outsiders –, o autor disse ter percebido, há já vários anos, que é esse o seu tema. “É o material com que lido, mas estou disposto a lidar com ele desta forma porque se pensar demasiado sobre isso vou sempre dizer mais qualquer coisa.” Sobre o facto de os países de que fala nos seus livros serem sempre imaginários e não reais, explicou que “para tornar um país real, é preciso estudar história, geografia”. “Não quero fazer isso, nunca quis fazer isso.”

Nadira Naipaul, que ajudou o marido com as perguntas que iam sendo colocadas, sentiu-se quase na obrigação de intervir quando o tema dos “países reais” veio à baila e partilhar como Naipaul ficou chocado com o que viu no mundo islâmico quando estava a escrever o livro de viagens Among the Believers: An Islamic Journey. “Quando ele viaja, tem de ver. Os muçulmanos — todo o tipo de pessoas — querem contar-lhe as suas histórias. Ele precisa sempre de chegar perto da verdade“, frisou.

Depois de terminada a entrevista, Naipaul ainda assinou alguns livros da audiência. Calado, limitou-se a autografar os exemplares que lhe iam colocando em frente. No final, ficou a sensação de ser verdade o que disse a José Mário Silva em relação à idade. “A idade empurra-nos em direção ao silêncio. As pessoas querem que não faças nada. Tento evitar isso continuando em frente. A necessidade de escrever mais e mais é uma preocupação constante. Outra vez, outra vez e outra vez”, disse. “Mas é horrível dizer isto desta forma. Está bem assim para ti?